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Caparaó recebe seminário sobre Indicação Geográfica de Cafés

Alto Caparaó

O evento, que começa hoje, apresentará a indicação geográfica como estratégia para o desenvolvimento da cafeicultura, que é a principal atividade agrícola com 40% de participação no Estado do Espírito Santo.

Quem promove o Seminário de Indicação Geográfica de Cafés é o Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas do Espírito Santo (Sebrae ES),  uma iniciativa do Projeto de Cafés Especiais do Sebrae ES.

O evento será realizado no município de Dores do Rio Preto voltado aos produtores de café, parceiros da cafeicultura e líderes das regiões das origens de cafés no Estado.

De acordo com o diretor de atendimento do Sebrae ES, Ruy Dias de Souza, o objetivo do Seminário é criar um ambiente favorável para a promoção dos cafés no Espírito Santo. “O evento busca mostrar as tendências nacionais e internacionais do produto. Além de identificar e valorizar as origens de produção. O objetivo é agregar maior valor aos cafés de qualidade produzidos no Estado”.

Com as palestras “Apresentação das Regiões de Origens do Café do ES”, “Indicação Geográfica como estratégia para o Desenvolvimento Regional” e “Experiência da Indicação de Procedência do Café de Alta Mogiana” o Seminário busca levar ao público de produtores, na sua maioria, conhecimento técnico especializado. Além disso, haverá um debate, momento em que os participantes poderão levantar questões e tirar suas dúvidas.

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O palestrante Gabriel Fabres Beliqui do Instituto Inovates acredita que “o objetivo é demonstrar os benefícios da Indicação Geográfica (IG) para o café e dar o panorama das regiões produtoras no Espírito Santo. A palestra mostra o potencial de se estruturar estas Indicações Geográficas em nosso estado”.

A região do Caparaó vem buscando conquistar a Indicação Geográfica e contempla em torno de 13 munícipios produtores de café, nos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo, a maioria deles com pequenos produtores.

Serviço
Seminário de Indicação Geográfica dos Cafés do ES
Data: 27 de julho de 2016, das 8h30 às 15h
Local: Pousada Macieira, Pedra Menina – Dores do Rio Preto
Inscrições: No local do evento

TEXTO Da redação • FOTO Alexia Santii/Agência Ophelia e Divulgação A Cafeteria (Sítio Santa Rita)

Cafezal

Caça ao melhor natural do Brasil

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Desbravamos as trilhas da Mantiqueira de Minas para conhecer o café que surpreendeu juízes do maior concurso de cafés especiais do País e despertou a atenção do mundo

Vista de cima, as lavouras de Cristina, na região da Mantiqueira de Minas, parecem formar infinitas trilhas que levam sempre para o mesmo tesouro: o café. Por lá, o produtor Sebastião Afonso da Silva conseguiu desvendar o caminho para alcançar a façanha que lhe rendeu o título de recordista do Cup of Excellence Naturals, concurso que premia o melhor café natural do País.

Sebastião é dono de algumas propriedades na cidade, mas foi no terreno em que aprendeu a cultivar café que conseguiu produzir o lote vencedor da competição realizada pela Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA). A amostra em questão atingiu 95,18 pontos, de acordo com a metodologia da associação americana Specialty Coffee Association of America (SCAA), e despertou o interesse do mundo.

Vista aérea da Fazenda Pinhal, localizada em Cristina, região da Mantiqueira de Minas

Vista aérea da Fazenda Pinhal, localizada em Cristina, região da Mantiqueira de Minas.

Foi atrás desse tesouro que nossa equipe seguiu por uma estrada difícil, mas logo o cafeicultor chegou para indicar o caminho e ensinar a desviar do barro deixado pela chuva que tinha caído no dia anterior. Sebastião nos guiou ladeira acima, até o Sítio Baixadão, rejeitado anos antes por sua altitude – a mais elevada entre as suas propriedades, chegando a 1.300 metros –, e disse que precisou provar o valor do lugar e o potencial das alturas.

Antes de enveredar pela produção cafeeira, ele cultivou arroz com sua família. “Nós éramos em 21 irmãos, meu pai criou todos plantando em terra arrendada”, revela. Apenas quando o arroz se tornou inviável para a família, eles tentaram a cafeicultura. Logo, Sebastião se rendeu ao amor pelo grão, adquirindo aos poucos terrenos de outros irmãos, entre eles o Sítio Baixadão. “Comecei com 1.400 pés de café e tomei gosto só de cuidar daquela primeira lavoura.” Enquanto fala sobre a união da família, fica nítida a importância do laço com os irmãos, que incentivam até hoje suas novas empreitadas. Como acontece com Antônio Marcio, que inscreveu um dos lotes do Sítio Baixadão no concurso, ao lado do irmão.

O produtor Sebastião Afonso e seu filho Helisson comandam os trabalhos nas lavouras.

O produtor Sebastião Afonso e seu filho Helisson comandam os trabalhos nas lavouras.

Quem também carrega nos genes e no brilho dos olhos o amor pelo café é o primogênito de Sebastião, Helisson. “Ele é meu braço-direito. Já sabe tudo”, derrete-se o produtor. O garoto, de 20 anos, comparece todo dia cedo à lavoura e vai aonde for preciso, dirigindo a caminhonete da família, o único carro que consegue chegar aos cafeeiros mais altos nos dias chuvosos. Com o apoio do filho, que tem na ponta da língua cada dado da produção, Sebastião enumera detalhes que fizeram da sua produção uma das revelações do ano.

Surpresa e aprendizado
Muito antes da competição que premiou os cafés naturais ‒ colhidos e secos com casca ‒ de Sebastião, no entanto, os cafeeiros das variedades catuaí amarelo e vermelho tiveram que vencer um ano marcado pela seca. As altas temperaturas e a falta de chuva de 2014 trouxeram consequências até mesmo para árvores vistosas como as de Sebastião, que tiveram 30% de perda em seus frutos na pós-colheita.

O problema no enchimento dos grãos assustou o cafeicultor, que teve que alterar também seu foco no beneficiamento, até então voltado para os cafés cerejas descascados. “Eu nunca tinha feito um trabalho voltado para os naturais, mas neste ano não teve jeito de despolpar”, conta. Foi nesse momento que Sebastião percebeu que poderia transformar dificuldade em aprendizado.

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O cafezal e o terreiro onde os grãos são preparados. Fruto e grão verde da Fazenda Pinhal.

Tudo apontava para o processo natural e, mais do que isso, para a paciência em aguardar o ponto ideal da maturação dos frutos. O produtor classifica seu cafezal como “meia face”, ou seja, não recebe sol o dia inteiro, o que favorece a umidade e o desenvolvimento mais lento dos grãos. “O pessoal fica admirado de eu estar colhendo café ainda em novembro”, relembra Sebastião, que apostou ao extremo na colheita tardia, conhecida como late harvest.

Agora, o agricultor, que nunca havia separado os cafés daquela lavoura em específico para análise, pretende prosseguir com um beneficiamento dedicado somente ao talhão campeão. “Essa propriedade provou que favorece os grãos. A gente ajuda, mas a qualidade mesmo vem da natureza. O produtor tem que se dedicar a manter a qualidade na pós-colheita, é nisso que está o segredo de fazer café”, acredita.

Diz o ditado que é “o olho do dono que engorda o boi” e no Sítio Baixadão não é diferente. “Eu gosto de estar a par de tudo. Quando chego e a turma está no serviço eu não mando… Sempre digo que ‘nós vamos fazer isso juntos’. Se você chegar aqui de surpresa não vai encontrar ninguém de roupa limpinha, não”, conta. Por isso, depois de onze intensos dias da última colheita, o produtor lembra que assumiu a linha de frente no terreiro, responsabilidade dividida somente com Helisson.

Para o natural, foram dois dias no processo que incluiu secagem em terreiro pavimentado, em estufa – em dias de chuva –, com finalização no secador mecânico, na Fazenda Pinhal, onde se concentra o beneficiamento de todas as suas lavouras.

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O degustador Wellington orienta os cafeicultores em prova organizada pela cooperativa.

Colhendo frutos
Seguimos para a Cooperativa Regional dos Cafeicultores do Vale do Rio Verde (Cocarive), onde o provador Wellington Carlos Pereira nos recebe anunciando: “A maturação lenta, com certeza, favoreceu a doçura do café do Seu Sebastião”. A característica é típica da região, mas por causa da seca acabou dando lugar a uma acidez mais elevada. “Nós visamos qualidade desde 2001, incentivando produtores neste mercado”, esclarece Ralph de Castro Junqueira, presidente da Cocarive que faz parte da Associação dos Produtores de Café da Mantiqueira (Aprocam). A entidade promove a Indicação de Procedência (IP) da Mantiqueira de Minas, selo usado pelos cooperados.

Os frutos desse trabalho são colhidos em concursos como o último Cup of Excellence dedicado aos naturais, quando a vitória de Sebastião se misturou à de outros doze lotes vencedores da Mantiqueira.

O incentivo tem história. Sebastião tem no currículo também a conquista, em 2009, do Prêmio Ernesto Illy de Qualidade do Café para Espresso, com seu catucaí amarelo e vermelho, cerejas descascados, além dos recentes 2º lugar do concurso da Cocarive e, em seguida, 1º lugar no concurso realizado pela Região da Mantiqueira de Minas, em 2014.

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Sebastião e Helisson contemplam o lote de seu café campeão. Galpão da cooperativa onde são armazenadas as sacas e bags dos grãos destinados à exportação.

O contato entre cooperado e cooperativa se intensificou quando, durante nossa visita, os produtores tiraram dúvidas e participaram de prova dos cafés. O momento rendeu comentários e surpresa com os novos sabores notados pelos campeões na produção. Depois de conhecer aquele grão desde o nascimento até a xícara, já estávamos satisfeitos, mas o dia guardava uma última surpresa.

Em meio a sacarias prontas para exportação, encontramos o lote premiado sendo preparado para seu futuro leilão (em tempo: o leilão foi realizado no dia 4 de março e o lote do produtor foi comprado pelo valor recorde de US$ 48.552,
arrecadação total). “É esse o nosso café”, exclamava Helisson para o pai enquanto lia “Sítio Baixadão” no pacote embalado a vácuo pela equipe do concurso. Com orgulho sem igual, pai e filho puderam observar mais do que a excepcional pontuação de 95.18. O lote exibia a sensação definida por Sebastião. “A partir do momento em que você faz uma coisa de que gosta, você presta muito mais atenção nos seus erros para não repeti-los. É assim que fica mais fácil fazer tudo bem-feito.”

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Trabalhador transportando as sacas.

Ficha técnica

Fazendas Sítio Baixadão, Fazenda Pinhal, Sítio Nossa Senhora da Mata, Fazenda Santa Teresinha, Sítio Pasto da Pedra
Localização Cristina – MG
Região Mantiqueira de Minas
Altitude média 1.200 metros
Produção anual 2.900 Sacas
Área total 329 hectares
Área plantada com café 85 hectares
Número de cafeeiros 20 mil pés
Colheita manual, de junho a novembro
Processamento cereja descascado e natural
Secagem terreiro pavimentado e secador mecânico
Variedades catucaí, bourbon, acaiá, catuaí amarelo e vermelho
Selo indicação de procedência da mantiqueira de minas

(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).

TEXTO Thaís Fernandes • FOTO Guilherme Gomes e Tipuana Imagens Aéreas

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“A comida está se tornando mais uma questão cultural do que meramente de subsistência”

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Alain Coumont, fundador da rede de padarias belga Le Pain Quotidien, esteve no Brasil e visitou a Fazenda Santa Margarida, da Martins Café, em São Manuel (SP), fornecedora dos grãos comercializados em suas lojas. Acompanhamos a passagem do padeiro-empresário pelo campo e conversamos sobre a filosofia da marca de trabalhar com produtos orgânicos e locais sempre que possível e os desafios de manter qualidade e sustentabilidade em suas mais de 200 lojas, distribuídas em dezenove países mundo afora.

No Brasil desde 2012, a Le Pain Quotidien tem hoje quatro lojas no País e planeja expansão, com a abertura de mais dois estabelecimentos até o início de 2016. Segundo Alain, oferecer os melhores ingredientes se estende não só à comida servida em seus restaurantes, mas também ao café. Para ele, a razão é simples. “Eu sirvo no meu restaurante a comida que eu como ou que eu quero comer. Nós temos muito cuidado em fornecer um produto de qualidade para o ritual diário das pessoas.”

Você começou a sua carreira como chef e, como não conseguia encontrar um bom fornecedor de pão para o seu restaurante, resolveu abrir a própria padaria. Para você, como deve ser um bom pão?
Para mim, um bom pão é feito com os mais simples ingredientes: farinha orgânica, sal, água e bastante tempo. É sincero e saudável, com uma fatia firme e uma boa casca.

Quando vocês iniciaram a expansão da Le Pain e onde foi aberta a primeira loja fora da Bélgica?
Eu abri a primeira Le Pain Quotidien em outubro de 1990, na rua Antonie Dansaert, em Bruxelas, na Bélgica. De lá, nós partimos para abrir o nosso primeiro restaurante, em Nova York, em 1997.

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Como você se sente fazendo parte da cultura do pão, contribuindo para a qualidade desse alimento tão essencial no dia a dia e inspirando as pessoas por meio da comida?
Eu me orgulho em saber que a simplicidade do nosso pão faz com que as pessoas se lembrem de desacelerar, permite que elas façam melhores escolhas e que se sintam bem com aquilo que estão comendo. Sentar à mesa para compartilhar o pão com quem você gosta é uma grande honra à tradição. Então, um pão como o nosso é mais do que um produto para nós, é um estilo de vida.

Hoje, a Le Pain Quotidien possui várias padarias em algumas das principais cidades do mundo. Como foi a transição de uma pequena padaria na Bélgica para a expansão, com tantas lojas e a grande proporção que o negócio tomou hoje?
Nós sempre buscamos ser bons, não grandes, então, sempre tomamos cuidado para crescer orgânica e responsavelmente. Cada um de nossos restaurantes é construído com cuidado e atenção para os detalhes. Não sentimos uma transição drástica em nenhum momento ao longo de nossa jornada. Na medida em que expandimos, é muito importante para nós manter em mente as nossas raízes. Tem sido, certamente, uma jornada e tanto, com novos desafios todos os anos. De certa forma, eu sinto que nós sempre nos mantivemos verdadeiros, fiéis às nossas raízes. Há muitas similaridades, apenas em uma escala maior.

O que mudou e como vocês mantiveram a qualidade dos pães mesmo em diferentes lugares do mundo?
Nosso comprometimento com a autenticidade e a qualidade dos ingredientes é o que tem sustentado o nosso sucesso através dos anos. Nós treinamos o time local de nossas padarias e nos mantemos próximos dele pelo mundo para assegurar o respeito ao mesmo processo artesanal que empregamos desde o começo.

Você veio ao Brasil e visitou a Fazenda Santa Margarida, da marca Martins Café, para conhecer melhor o seu fornecedor. Como o café está relacionado a sua vida e como foi essa visita? Foi a sua primeira vez em uma fazenda de café?
Foi minha terceira vez visitando uma fazenda de café. Eu também estive em nossas fazendas fornecedoras no México e no Vale de Villa Rica, no Peru, que abastece a maior parte dos restaurantes da Le Pain Quotidien.

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O que mais despertou a sua atenção durante a visita à Santa Margarida?
O conhecimento da família Martins sobre tudo o que diz respeito ao campo, com um cuidado especial com o meio ambiente e a biodiversidade. E ainda o fato de que eles habilmente torram o café na fazenda para vender diretamente para consumidor, restaurante ou cafeteria. Mais local e genuíno é impossível!

O que fez você escolher a Martins Café como fornecedora?
A Martins tem uma longa história na produção de cafés e os valores deles estão alinhados com os nossos. Com um ótimo produto disponível localmente, só fazia sentido compartilhar isso com os nossos clientes brasileiros. O perfil desse café, em particular, é ideal para os nossos visitantes em São Paulo.

O que você acha dos cafés brasileiros?
Para mim, em geral, eles possuem acidez bem baixa e são achocolatados… Eu gosto.

De onde vem o café comercializado em outras lojas Le Pain Quotidien pelo mundo?
A maior parte dos cafés fornecidos às nossas lojas vem da fazenda no Peru. No entanto, sempre que possível, nós gostamos de apoiar produtores locais em mercados onde o café da região está disponível.

Qual a importância de investir em um café de qualidade em uma padaria ou restaurante?
Nossa filosofia de servir a melhor qualidade de ingredientes se estende não só à nossa comida, mas também ao nosso café. Temos muito cuidado em fornecer um produto de qualidade para o ritual diário das pessoas.

Como você gosta de tomar o seu café? Qual é o seu ritual da manhã?
Pela manhã, é um shot duplo no latte com leite de soja orgânico e um traço de cúrcuma. E, claro, uma boa fatia de sourdough (pão de fermentação natural), com manteiga fresca e geleia orgânica.

Para você, qual é o maior desafio em produzir uma comida saborosa de maneira sustentável nos dias de hoje, de forma respeitosa com a sua filosofia, os produtores, a terra e os seus consumidores?
O negócio de restaurante não é uma ciência inacessível. Pessoalmente, eu sirvo no meu restaurante a comida que eu como ou que eu quero comer. É por isso que nós compramos e fornecemos principalmente ingredientes orgânicos e proibimos todo tipo de químicos em nossa rede de alimentos, desde conservantes até sabores artificiais e corantes. Nós vivemos em um mundo acelerado, mas, felizmente, com o aumento do padrão de vida no mundo todo, a comida está se tornando mais uma questão cultural do que meramente de subsistência. As pessoas saem mais e é aí que nós entramos. Nós cozinhamos, você relaxa e nós lavamos os pratos.

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(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).

TEXTO Hanny Guimarães • FOTO Guilherme Gomes

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A caminho da maturidade

A Fazenda Santa Izabel, em Ouro Fino (MG), segue em nova fase, em que investimentos em pesquisa e tecnologia se somam ao olhar experiente de profissionais e ao desenvolvimento da cafeicultura.

Região montanhosa do Sul de Minas.

Região montanhosa do Sul de Minas.

“A fazenda é centenária. Já se criou gado, cavalo, mas a vocação mesmo sempre foi o plantio de café.” É com orgulho que o administrador e técnico agropecuário José Benedito Angelo apresenta a Fazenda Santa Izabel à nossa equipe. Localizada em Ouro Fino (MG), no Sul de Minas Gerais, a propriedade de 312 hectares passou por três fases distintas, segundo José Angelo, que há 25 anos trabalha nessa terra.

Primeiro, a produção do café aconteceu paralela à criação de gado de leite e corte. Em seguida, o empresário Marco Suplicy, dono da rede de cafeterias Suplicy Cafés Especiais, de São Paulo (SP), assumiu a propriedade e começou a estruturar o cafezal em busca de qualidade, quando produtores da região desacreditavam da estratégia. “As pessoas diziam que estávamos loucos, que iríamos perder dinheiro, mas nós sempre acreditamos que estávamos revolucionando a agricultura da região”, conta José Angelo, lembrando-se dos tempos em que ele e Marco adaptavam as ideias de melhoria na fazenda.

A tradicional produção de café na região vê avanços que chegam com conhecimento e desenvolvimento de tecnologia de produtores como o americano Byron Holcomb.

A tradicional produção de café na região vê avanços que chegam com conhecimento e desenvolvimento de tecnologia de produtores como o americano Byron Holcomb.

 A roçagem na área de produção orgânica da Fazenda Santa Izabel acontece ao menos uma vez por mês. O manejo é indispensável para a manutenção saudável da cultura

A roçagem na área de produção orgânica da Fazenda Santa Izabel acontece ao menos uma vez por mês. O manejo é indispensável para a manutenção saudável da cultura.

Cultura de base
Em 2012, a Fal Coffee, empresa baseada nos Estados Unidos, parte do gigantesco grupo saudita de investimentos Fal Holdings, adquiriu a propriedade de Marco, como estratégia de melhoria nos processos de qualidade, com controle do campo à xícara. Por meio da Nobletree, torrefação baseada no bairro de Red Hook, no Brooklyn, controlada pela Fal Coffee, os cafés produzidos nas fazendas brasileiras adquiridas – a companhia comprou também, em 2014, a Fazenda Monte Verde, de Carmo de Minas (MG) – e os grãos negociados em outras regiões produtoras mundo afora ganharam o mercado americano.

Toda a operação necessitava de um braço-direito para ajeitar a casa, estabelecer processos para melhorar pontos fundamentais na produção e implementar novos projetos que pudessem elevar a qualidade dos grãos cultivados. Foi aí que o então diretor executivo da Fal Coffee e cofundador da Nobletree, John Moore, convidou o diretor de agronegócios Byron Holcomb para tocar as propriedades no Brasil.

Biólogo, Byron tem extensa experiência com o café. A paixão pelo grão começou durante o trabalho voluntário no Corpo de Paz, em 2003, em uma comunidade produtora no distrito de Los Frios, na República Dominicana. Quando Byron deixou o Corpo de Paz, em 2005, ele se deu conta de que o café já havia transformado sua vida e, em 2007, conseguiu comprar um pedaço de terra (15 acres) na região, onde poderia praticar a atividade e ajudar a desenvolver a cafeicultura local. Ainda assim, ele sentia que faltava mais conhecimento na área e foi atrás de informação, trabalhando em grandes empresas do setor no mercado norte-americano. Ele passou pela Batdorf & Bronson Coffee Roasters, pela Counter Culture Coffee, pela Dallis Brothers Coffee, até chegar à Fal. Em maio de 2013, mudou-se para o Brasil com a esposa, Laura Holcomb, com a mesma vontade de fazer a diferença por meio do café de quando começou.

o novo prédio administrativo da fazenda, com sala de degustação, classificação e laboratório de testes de torra

O novo prédio administrativo da fazenda, com sala de degustação, classificação e laboratório de testes de torra.

Nova fase
Com boas ideias, conhecimento e recurso alto para investimentos, a Fazenda Santa Izabel ganhou um novo capítulo em sua história. As mudanças começaram pela raiz, ou melhor, pela lavoura. Byron e José Angelo introduziram jardins de variedades para desenvolver testes de genética nos cafeeiros. “A qualidade na xícara é resultado de três pilares: genética, terroir e processamento”, explica Byron. Ao todo, a dupla instalou três jardins (um orgânico e dois convencionais) com sessenta plantas e dezesseis variedades, e estuda o resultado na bebida final.

A expansão do cafezal, hoje com 550 mil plantas, seguiu por áreas de pasto e abrigou duas áreas de plantação orgânica, exigência do grupo Fal. São 15 hectares plantados com as variedades icatu e catiguá MG2, mas planeja-se a entrada da catucaí 2SL que, segundo José Angelo, tem se mostrado uma opção interessante. “O orgânico é um jeito de pensar diferente”, comenta Byron, enquanto observa os trabalhadores durante a roçagem, fazendo o controle de braquiária na área. O manejo acontece pelo menos uma vez por mês, tamanha a intensidade de crescimento da erva. “É um outro ethos, um olhar mais holístico, temos que ter outra cabeça para cuidar do orgânico”, acrescenta.

Com 25 anos dedicados à cafeicultura e com conhecimento de sobra para compartilhar, o administrador José Angelo (acima) diz que todo dia aprende algo novo e que isso muda a maneira como ele vê o café. Abaixo, abóbora colhida por ele na horta orgânica

Com 25 anos dedicados à cafeicultura e com conhecimento de sobra para compartilhar, o administrador José Angelo diz que todo dia aprende algo novo e que isso muda a maneira como ele vê o café. Também abóbora colhida por ele na horta orgânica.

Em uma fazenda de montanha, cenário comum das produções do Sul de Minas, é quase impossível a mecanização total dos processos. Entretanto, os chamados terraços instalados na lavoura, nove no total, estão mudando a cara da paisagem, ao menos na Santa Izabel. Byron explica que os terraços são patamares feitos na montanha onde o café está plantado para que um trator passe com mais facilidade, fazendo os manejos culturais. “Se você tiver seis tratos e conseguir mecanizar cinco já é um grande avanço. Você ganha melhor rendimento na safra, barateia custos e aumenta a segurança do trabalhador”, pontua. Os funcionários da fazenda, a propósito, na filosofia de Byron, são protagonistas. Para ele, a construção de uma estrutura horizontal, onde há espaço para diálogo entre os profissionais de todas as pontas, abre possibilidades para a produção de um café melhor. O prédio administrativo da fazenda, recém-inaugurado, por exemplo, dispõe de modernos equipamentos para o preparo do café. A ideia é mostrar para os funcionários – 42 fixos e sessenta na colheita – como o café que eles trabalham no campo se reflete na xícara e ouvir sua opinião. “Eu acredito que quem trabalha na fazenda tem que tomar café bom da fazenda. Dessa forma, o funcionário entende o que está fazendo, de ponta a ponta”, diz.

No novo escritório, com grandes janelas de vidro que descortinam a paisagem da propriedade, há, ainda, uma mesa de classificação, sala de degustação para negociadores e um espaço para reuniões, onde também acontecem cursos para compradores. O objetivo é mostrar quanto a fazenda influencia o café. A estrutura contempla, ainda, vestiários feminino e masculino para quem volta do trabalho na roça.

Os investimentos são vistos de fora a fora. Na área de processamento, o maquinário brasileiro mescla-se ao equipamento colombiano, unidades descascadoras que não utilizam água. A escolha se deu não só por eficiência, mas também pela questão ecológica, com o uso racional dos recursos naturais. “Nós estamos fazendo o básico. Onde tem mato, nós estamos deixando subir, fazendo corredores biológicos. A máquina descascadora e a desmuciladora reduzem o uso da água. Temos lagoas para resíduos da água do processo. Não há retirada de mato nativo e queremos começar a construir cerca viva, mas ainda há muito mais coisas que gostaríamos de fazer. Podemos contribuir mais para o meio ambiente”, pondera Byron, buscando equilibrar biologia de ecossistema e negócios.

Pedro Zibordi Neto, responsável pela compra e degustação no armazém da Fal Café; e o maquinário colombiano para processamento do grão na Fazenda Santa Izabel

Pedro Zibordi Neto, responsável pela compra e degustação no armazém da Fal Café; e o maquinário colombiano para processamento do grão na Fazenda Santa Izabel.

Rumo ao futuro
Do processo, os grãos (60% cereja descascado, 30% natural e 10% verde) seguem para os terreiros de secagem, outro ponto de virada em direção à qualidade. Um grande investimento foi feito na estufa de 3.700 metros quadrados. A estrutura tem elevação de 3%, portas e cortinas para a circulação de ar e capacidade, junto com uma segunda estufa menor (1.200 m²), para atender à demanda da safra (2 mil sacas por ano, com estimativa de crescimento para 4 mil, em produção total) e, em breve, receber cafés de produtores da região, fortalecendo a melhoria de processos localmente. Em geral, os grãos secam em estufa por três dias e depois são finalizados em secadores mecânicos.

A classificadora Silmara Patrícia de Souza, fazendo o controle de qualidade na xícara.

A classificadora Silmara Patrícia de Souza, fazendo o controle de qualidade na xícara.

Metade da produção vai para o mercado internacional, 95% desse destino segue para a torrefação do grupo nos Estados Unidos, a Nobletree, e o restante vai para torrefações na Califórnia, na Nova Zelândia e na Inglaterra. A distribuição pa ssa pelo armazém da Fal Café – empresa integrante da Fal Coffee –, localizado em Ouro Fino, adquirido no final do ano passado pelo grupo. O espaço recebe cafés não só das fazendas Santa Izabel e Monte Verde, mas de dez municípios da microrregião do Sul de Minas, grande parte composta de produtores da agricultura familiar, segundo Pedro Zibordi Neto, responsável pela compra e degustação, com mais de 31 anos de experiência no setor. “Agora entraremos em fase de expansão, desenvolvendo faturamento e estrutura. É um desafio, mas o desejo é o mesmo, valorizar a agricultura familiar local. Despertar nesse produtor a valorização do produto e melhorar a qualidade do café da região”, diz Pedro.

A preocupação com o desenvolvimento de bases tem olhar no futuro. Byron compara o avanço da cafeicultura com o do ciclismo, outra paixão que nutre com igual intensidade. Para ele, o mercado da bicicletas conseguiu se estabelecer de maneira madura, de forma que os ajustes vistos hoje são pequenos, mas fazem a diferença. É o que ele vem buscando no trabalho nas fazendas do Brasil – o reconhecimento levou a Santa Izabel à 11ª colocação no Cup of Excellence – Pulped Naturals 2015, concurso que premia os melhores cafés arábica despolpados ou cerejas descascados –, e o que ele acredita que pode ser o próximo passo da cafeicultura. “O avanço virá quando o café se tornar uma arte mais madura. É preciso entender o grão. O cafeicultor deve, primeiro, buscar uma xícara mais limpa, mais higiênica. Quando ele alcançar isso, aí, sim, ele pensa em agregar complexidades por meio de tecnologias e técnicas diferentes, como fermentação. Isso é maturidade, é o futuro”, afirma o produtor, já com o pensamento na cafeteria que a Nobletree inaugura no World Trade Center nos próximos meses e que vai selar o trabalho do grupo, fundamentado de ponta a ponta na cadeia cafeeira.

Reinaldo Honorato Neves mostra os cafés prontos para exportação no armazém, que é equipado com controle de umidade e maquinário de ponta

Reinaldo Honorato Neves mostra os cafés prontos para exportação no armazém, que é equipado com controle de umidade e maquinário de ponta.

Ficha técnica

Fazenda Santa Izabel
Localização Ouro Fino (MG)
Região Sul de Minas
Altitude Média 1.050 metros
Produção Anual 2 mil sacas (média atual)
Área total 312 hectares
Área plantada 124 hectares
Número de cafeeiros 550 mil
Colheita manual
Período de colheita de maio a agosto
Processamento via úmida (cereja descascado 1, cereja descascado 2, natural-passa, tree dried e verde descascado)
Secagem estufa e secadores mecânicos
Variedades icatu, bourbon amarelo, catuaí amarelo e vermelho, mundo novo, catiguá MG2, obatã (+ 15 diferentes em teste nos jardins de variedades)
Certificações IBD Orgânico

(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).

TEXTO Hanny Guimarães • FOTO Lucas Albin / Agência Ophelia

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Um novo robusta

Fazendas do Espírito Santo mostram que é possível produzir conilon com qualidades sensoriais

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Paisagem das montanhas do Espírito Santo, onde há produtores apostando no conilon especial.

Conhecido como a ovelha negra dos apreciadores de cafés especiais, o café robusta é um tipo de grão com material genético menos complexo, que resulta em bebidas com notas sensoriais menos atraentes, com presença de amargor, menos doçura, menos acidez e salinidade. Como não resulta em xícaras tão adocicadas, geralmente é utilizado como “tempero”, para dar acabamento a blends e bebidas cafeinadas. Também conhecido como conilon (ambos são variedades da espécie Coffea canephora), ganhou essa má fama no mundo dos cafés gourmets não apenas por sua tipicidade, mas pela maneira como é cultivado e tratado após a colheita. Sem cuidados, acaba chegando ao consumidor com características ainda piores, comprovando o preconceito estabelecido.

Há cerca de cinco anos, um pequeno grupo de pessoas está tentando mudar o rumo dessa prosa. E está conseguindo. Trata-se do projeto Conilon Especial, capitaneado pela Conilon Brasil, uma empresa focada no treinamento e na difusão de conhecimento sobre o tema, que também presta consultoria para cafeicultores. O grupo conta com o apoio do Incaper (Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural), das secretarias municipais e estadual de agricultura do Espírito Santo e de alguns cafeicultores que estão acreditando nessa nova fase do robusta. A meta? Mostrar aos produtores de café do Espírito Santo, do restante do Brasil e, quiçá, do mundo, todo o potencial desse tipo de grão quando selecionado geneticamente e cultivado adequadamente.

O grão verde cultivado e tratado adequadamente.

O grão verde cultivado e tratado adequadamente.

Herança de gosto amargo
O desafio dessa turma não é pequeno. O Espírito Santo é atualmente o maior produtor de café robusta do País e o maior produtor em área plantada do mundo. No entanto, o conilon, variedade descoberta pelos agricultores da região há cerca de quarenta anos, é desenvolvido desde então com o foco apenas na produtividade e esse modus operandi parece estar cercado por uma muralha difícil de ser derrubada.

Entenda-se aqui por um cultivo focado na produtividade aquele em que a planta, que já é naturalmente mais resistente, é criada como uma criança na rua, que acaba se virando sozinha. Em geral, o cafezal não é podado nem adubado, não passa por manejo do mato, por controle de pragas e de doenças e é pouco irrigado. Essa maneira de tocar a lavoura, herdada dos primeiros cafeicultores de robusta dali, é também um estímulo para o uso maior de aditivos químicos, fertilizantes e agrotóxicos. A colheita é feita antes de o fruto estar maduro; ele é deixado no terreiro sem cuidados, recebendo umidade excessiva, que costuma causar fermentação. Depois todos os grãos vão para um secador de lenha direta, ambiente que chega a atingir 300ºC. E aí, mesmo aquele vermelhinho que estava doce no pé, depois de passar por tantas intempéries, ficará com o mesmo gosto de fumaça e cinzas, adstringência da fermentação e sensação medicinal e de sujeira na boca que os outros. Esse é um retrato da produção tradicional no Estado. Um café de baixa qualidade, utilizado pela grande indústria para compor blends, café instantâneo, café em sachês, refrigerantes e energéticos.

O casal Laurindo Bride, de 87 anos, e Ághata Loss Bride, de 83 anos, produtor da região.

O casal Laurindo Bride, de 87 anos, e Ághata Loss Bride, de 83 anos, produtor da região.

Nadando contra a corrente
Como, então, convencer o produtor de café de que isso tudo está errado se esse lote malcuidado, que perdeu grande parte de suas características, é comercializado com a facilidade de quem vende água no deserto? Como mostrar que isso é ruim para ele, para a natureza e para o consumidor? “Esse café tem muita liquidez. O mercado compra mesmo com um monte de defeitos, torra tudo bem escuro e vende para o consumidor”, explica Marcelo Cortelletti, proprietário do Sítio Boa Sorte (em Santa Tereza), que possui 70 mil plantas de conilon.

Marcelo é um dos que estão nadando contra a corrente. Começou a ouvir aquela história de café de qualidade em um grupo de que participa, a Associação dos Produtores Rurais do Rio Perdido. A entidade, que reúne 66 pequenos produtores da região norte do Estado, começou uma parceria há cerca de quatro anos com a Conilon Brasil para orientar produtores como Marcelo.

Acima, viveiro onde os clones mais avançados são reproduzidos para a venda; plantações consorciadas com bananeiras, coqueiros e mamoeiros são típicas na região.

Acima, viveiro onde os clones mais avançados são reproduzidos para a venda; plantações consorciadas com bananeiras, coqueiros e mamoeiros são típicas na região.

Como parte do trabalho, que ainda está na fase de conscientização dos cafeicultores, a empresa, com sedes em Jaguaré e em Vitória, promove a cada quinze dias cursos e palestras sobre qualidade do café, além de provas de qualificação em R-Grader (que capacita classificadores e degustadores a provar e avaliar os robustas de qualidade). “A ideia é focar no produtor, para que ele entenda que a forma de produzir o café influencia diretamente na bebida. Se não há cuidados, a xícara perde sabor, doçura, acidez e potencializa a salinidade”, explica Arthur Fiorotti, um dos sócios da empresa.

Em um laboratório bem equipado, Arthur e sua equipe fazem análises de cafés, realizam degustações e oferecem orientação aos cafeicultores. “O cafeicultor tem apenas que manter a qualidade que o grão já tem no pé”, explica Romário Gava Ferrão, pesquisador do Incaper. Doutor em genética e melhoramento de plantas, estuda há 28 anos o tema e é o coordenador estadual do programa de cafeicultura. Para ele, a solução é simples. Por isso, desenvolveu uma cartilha, com os 10 mandamentos para produzir o conilon de qualidade, distribuída gratuitamente aos produtores.

Os frutos podem atingir tamanhos de peneiras altas.

Os frutos podem atingir tamanhos de peneiras altas.

Alguns meses depois da primeira conversa com a Conilon, Marcelo já passou a colher os frutos apenas bem maduros, a fazer uma separação mais criteriosa e aperfeiçoar a secagem. Antes Marcelo levava apenas 22 horas para secar o café e já vendia o lote. Hoje leva em torno de 46 horas. “Tem de ter uma atenção muito maior, é um trabalho mais dedicado”, conta. Dois anos depois, Marcelo não se arrepende: já teve 68% do investimento feito pago apenas com a primeira safra.

Seu compadre Luís Carlos Gomes, de 57 anos, também faz parte da associação e está no mesmo movimento. “Estamos começando a ter uma ligação com o consumidor, o nosso café está deixando de ser apenas uma commodity”, diz. Luís acompanha de perto a produção e apresenta com orgulho cada cafeeiro de sua plantação. “A ideia é melhorar a condição da planta, fazer poda, adubar de forma diferente. Além do cuidado na secagem do café, que faço em terreiro suspenso para ventilar por cima e por baixo”, explica. Chamam atenção também a estufa sobre o terreiro. “Para proteger da chuva e do sereno, pois trabalhar a céu aberto tem umidade alta, muito orvalho”, diz. Ele planta café desde 1999. Hoje se orgulha do café que produz e enche o peito ao oferecê-lo às visitas.

“Na associação, conversamos muito com os outros produtores, mas é uma luta inglória, pois não se conhece ainda o conilon especial. O custo também é um entrave. É preciso investir em equipamentos, secador com fornalha de forno indireto, mas há opções mais baratas, que não requerem estrutura muito sofisticada”, conta Luís. Ele tem consciência das dificuldades de encarar essa novidade. Mas sabe que não há por onde escapar. “A qualidade é um caminho sem volta. No momento, remunera melhor os cafeicultores. Mas, num futuro não muito distante, vai significar a permanência deles no mercado”, acredita Ênio Bergoli, secretário de Estado da Agricultura, Abastecimento, Aquicultura e Pesca do Espírito Santo.

Arthur Fiorotti e Marcelo Cortelletti analisam café no terreiro suspenso de Luís Carlos Gomes (a esquerda).

Arthur Fiorotti e Marcelo Cortelletti analisam café no terreiro suspenso de Luís Carlos Gomes (a esquerda).

Resultado no bolso e na xícara
Esse empenho, ao final, é recompensado. O valor agregado no preço da saca pode ser de 12,5% a 15%. Uma saca de R$ 280 pode passar a R$ 340. Sem contar as várias portas no mercado externo que já estão abertas, à espera dessa produção. “Existe uma limitação de suprimento de arábica, por isso, há muitas empresas fazendo testes com robustas de qualidade”, explica Arthur Fiorotti. Há ainda um estímulo (moral e financeiro) para quem aposta no novo formato. “Já temos concursos estadual, regionais e municipais de qualidade de conilon, com remuneração adicional para os cafés que se destacam. E, no ano passado, foram realizados os primeiros embarques em escala de conilon de qualidade para o exterior”, explica o secretário Ênio Bergoli.

Essa mudança, que se propõe profunda para o mercado de café, também poderá ser notada pelos consumidores. A produção de conilon especial cria uma série de possibilidades para o apreciador de café, que terá, em breve, a chance de consumir mais blends feitos apenas de grãos qualificados (arábicas e robustas). A Espresso provou o café produzido por Luís Gomes, considerado um café de cerca de 80 pontos, índice bem alto para um café 100% robusta. E notamos aroma doce, com toque de amêndoas, boa doçura, bom corpo, baixa acidez, e salinidade de média para baixa, bastante equilibrado. Uma boa surpresa.

“Há um preconceito muito grande com o blend, mas quem ganha é o consumidor”, defende Evair de Melo, do Incaper. “E só estamos começando. Assim foi com o vinho californiano no início, o da Austrália, o do Vale do São Francisco. E agora são uma realidade. Não existe verdade absoluta. Há muitas coisas para ser encontradas.”

Luís Carlos Gomes, do Sítio São Bento, acredita, porém, que o mais importante é a satisfação pessoal do produtor de café. Todo o esforço, o investimento, a dedicação de mais horas de atenção e cuidados à lavoura e à pós-colheita valem mais quando o cliente gosta da bebida. “Não existe prazer maior que este: alguém tomar a segunda xícara do nosso café”, diz.

Terreiro com estufa onde o café fica protegido da umidade do ar.

Terreiro com estufa onde o café fica protegido da umidade do ar.

Ficha técnica
Sítio São Bento
Localização Santa Tereza (ES)
Região Vales e Serras de Santa Tereza, norte do Espírito Santo
Altitude média 540 m a 820 m
Extensão do cafezal 127 hectares
Número de cafeeiros 350 mil plantas
Colheita seletiva
Processamento natural e cereja descascado
Secagem pátio e terreiros suspensos
Porcentual dos tipos 25% conilon e 75% arábica
Variedades clones de Vitória, e outros selecionados no próprio sítio, como conilon amarelo (espontâneo)

MAIS INFORMAÇÕES www.incaper.es.gov.br

(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).

TEXTO Giuliana Bastos • FOTO Guilherme Gomes

Cafezal

É mineiro empreendedor

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A linda época da florada na região, os cuppings, as histórias dos produtores e os passeios pelas fazendas são algumas das atrações da viagem à origem: a Harvest Celebration.

A região do Cerrado investe em projeto ousado de mostrar a atitude dos cafeicultores na busca da qualidade do grão no dia a dia

Quantidade. Volume. Tecnologia. Por esse tripé a região do Cerrado Mineiro é muito conhecida. Qualidade. Microrregiões. Diferentes sabores. Essa é a recente meta que vem movimentando cafeicultores, agrônomos e empresários locais. O novo Cerrado Mineiro é formado por jovens empreendedores que encontraram no café com valor agregado um grande aliado para a fase de mudança por que a região vem passando.

Pioneiros na Denominação Geográfica de Café, conquistada em 2005, o selo deu ao produto o status de padrão e sabor únicos. Porém, hoje o investimento está sendo feito em diferentes perfis de café, com bebidas de características distintas e grãos que contam a história de cada produtor e fazenda.

O Cerrado Mineiro começou a produzir café somente nos anos 1970 quando produtores de outras regiões, devido a dificuldades climáticas, passaram a buscar outras áreas para o plantio. O investimento em novas técnicas agrícolas de irrigação e colheita passou a ser o sucesso local, que avançou rapidamente como uma referência no setor cafeeiro.

Esse passo à frente em tecnologia e produtividade deu à região status de potência, mas não necessariamente, à época, de qualidade. Em busca de um reposicionamento, o Cerrado Mineiro passou então a conectar os jovens que trabalhavam no setor e recriou sua identidade: Café Produzido com Atitude. Encabeçado pela Federação dos Cafeicultores do Cerrado o novo projeto tem como base mostrar que os cafés têm práticas sustentáveis, têm a Indicação Geográfica e, por fim, a qualidade, com a cara do produtor que os cultiva.

Com o intuito de colocar um holofote sobre o trabalho que vem sendo realizado, recentemente a Federação criou uma viagem à origem para que torrefadores e formadores de opinião pudessem conhecer mais sobre a região composta de 55 municípios e 4.500 produtores de café. A revista Espresso acompanhou a primeira experiência e pôde conhecer de perto o que vem sendo feito por produtores e técnicos locais para celebrar a colheita dessa safra.

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A etapa final da viagem é marcada por um café nas montanhas da microrregião de Serra Negra.

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À direita, o barista Igor Salles e o produtor Ruvaldo Delarisse.

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Pesquisa e certificação
A primeira parada foi na Fazenda Epamig – Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais – onde fica uma lavoura de 60 hectares de café com variedades diversas para testes e um banco de germoplasma. Estávamos na época da florada, quando os cafezais ficam repletos de flores brancas e, claro, muitas abelhas. O foco da fazenda hoje é a alta tecnologia e a qualidade. Segundo Juliano Tarabal, diretor de Marketing da Federação, “o local é o maior em pesquisa do Estado, com área típica de Cerrado e com técnicas de irrigação e adubação muito desenvolvidas, além de testes de variedades novas, como a catiguá, que está despontando em produtividade e qualidade”. Ali próximo à área de plantio há o Centro de Excelência do Café da Região do Cerrado Mineiro, onde os cafés são provados de forma profissional em laboratórios.

Hoje, ao contrário de anos passados, o Cerrado Mineiro encontrou potencial ao trabalhar as principais microrregiões, que são dezenas, e que podem ser subdivididas ainda em terroirs mais específicos. Na prova dos cafés é possível perceber as diferentes características sensoriais que são determinadas, entre outras coisas, por microclima, solo, altitude e processamento do café.

Quem está se beneficiando dessa nova fase do Cerrado Mineiro é a família de Mario Lucio Donizete dos Reis, que há dez anos trabalha com café, e que, junto a outros setenta produtores, faz parte do Assentamento de São Pedro, de quinze hectares por família, na microrregião de Esmeril. Os produtores são certificados, na sua maioria, por programas como o Rainforest Alliance, Fairtrade, Certifica Minas, e participam de capacitações do Sebrae, promovidas pelo projeto Educampo.

O produtor Mario Lucio revela ser “apaixonado por café”. Trabalham na lavoura ele, o pai, a mãe e um irmão. A colheita é 100% mecanizada, com a produção de até 45 sacas por ano. Nesta safra, é a primeira vez que ele participa de um prêmio, o da própria Região do Cerrado Mineiro (ver o boxe nesta página). Os cafeicultores se organizaram na Associação dos Pequenos Produtores do Cerrado (APPCER), em 2010, devido à demanda por cafés certificados de compradores e para melhorar a qualidade e conseguir valores melhores para o grupo. Em 2012 foram 10 mil sacas de café vendidas por este sistema, com 55 produtores associados.

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Uma paisagem típica do Cerrado.

Duas décadas
Mas nem só de pequenos produtores vive o Cerrado Mineiro. Cafezais extensos a perder de vista são o que mais se vê nesta região. Para eles é preciso montar uma estrutura enorme de atendimento à exportação. Por isso, hoje, um braço importante local é a Cooperativa dos Cafeicultores do Cerrado (Expocaccer), com capacidade para armazenar 800 mil sacas. O armazém é um mundo de grãos de café, com muitas divisões e logística integrada da fazenda aos locais de transporte – parte primordial para garantir a entrega do produto na ponta final. Com vinte anos de atuação, a cooperativa possui uma linha de produção ininterrupta localizada em Patrocínio (MG) – o maior produtor de café do Brasil, com uma área de 35 mil hectares.

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Mario Lucio e Zilá dos Reis são produtores de café há dez anos, na Fazenda Engenho Velho, na microrregião de Esmeril.

Do chapadão para o mundo
Um grande ícone desta região quando se fala em café de qualidade é o premiado produtor Ruvaldo Delarisse. Ao sair do Paraná há trinta anos com a família, o cafeicultor encontrou na próspera microrregião do Chapadão de Ferro solo vulcânico e 1.300 metros de altitude. Lá plantou 125 hectares de café e produz natural e cereja descascado, em 4.500 sacas beneficiadas. Já finalista do Cup of Excellence – o principal concurso internacional de café – Ruvaldo é tímido e guarda segredo dos seus testes pela lavoura. Tem mais de trinta certificados que pendura com carinho na casa da fazenda, atestando a qualidade: “Fazer café uma vez é uma coisa, por dez anos é outra”, ele diz. As variedades mundo novo, catuaí e topázio produzem a maior parte de café de qualidade, que ele identifica e personaliza para cada cliente. “A gente está sempre aprendendo”. Um dos seus sonhos foi alcançado neste ano: que seu café atingisse a pontuação acima de 85. No concurso chegou a 91 pontos e ele ganhou o primeiro lugar na categoria natural.

Uma das características da microrregião é a maturação mais lenta do café no pé, em comparação com outros locais. Na época da colheita, Ruvaldo conta com dez pessoas que trabalham na fazenda na colheita mecanizada. Mesmo assim, seu custo médio por saca é alto, de R$ 300, mas com esse investimento em qualidade ele consegue vender seu produto 50% acima do preço de mercado. Uma das cafeterias brasileiras que têm parceria com ele é a Lucca Cafés Especiais, que há anos vende seu blend nas lojas do Paraná. Do Chapadão de Ferro para o mundo. Objetivo mais do que alcançado.

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Parte dos produtores da Associação dos Pequenos Produtores do Cerrado (Appcer), formada em 2010

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Provadores internacionais realizam cupping no Centro de Excelência.

Inédito: Prêmio para a qualidade
O Primeiro Prêmio da Região do Cerrado Mineiro teve como tema a Celebração da Colheita Safra 2013/2014 e escolheu a sede de Uberlândia por ser uma das 55 cidades que compõem a Indicação Geográfica da Região do Cerrado Mineiro. Organizada pela Federação dos Cafeicultores do Cerrado, em parceria com o Sebrae, a classificação dos melhores lotes de café levou em conta os aspectos elegância, singularidade e intensidade nas categorias natural e cereja descascado, e seguiu os critérios Ética e Rastreabilidade, que avaliam e pontuam por meio de auditoria a estrutura da fazenda produtora. Das 220 amostras recebidas, de vinte cidades, foram premiados seis produtores, três de cada categoria. No Natural, o campeão foi Ruvaldo Delarisse (foto à esquerda), do município de Patrocínio (MG). Em segundo lugar ficou Hélio Tutida e em terceiro a Coopcaf. Já na categoria Cereja Descascado, venceu em primeiro lugar Lúcio Gondim Velloso (foto à direita). Em segundo lugar Tomás Eliodoro e, em terceiro, Eduardo Pinheiro Campos. Os cafés terão uma comunicação diferenciada na saca, com um selo da região produzido especialmente para integrar essas embalagens, sacas e os materiais de apoio e divulgação do cafeicultor.

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Ficha técnica*

Região Cerrado Mineiro, Minas Gerais
Produtores: 4.500
Produção anual: 5 milhões de sacas
Área total de cultivo: 170 mil hectares
Municípios produtores: 55
Algumas das Microrregiões: Patrocínio (Chapadão de Ferro, Boa Vista, Macaúba e Esmeril); Araguari; Monte Carmelo; Serra do Salitre; Carmo de Paranaíba; Coromandel; Campos Altos; Araxá.
Mais informações www.cerradomineiro.org

TEXTO Mariana Proença • FOTO Cupping: Luciana Santos / outras: Marcelo Andrê

Cafezal

Você sabe o que faz um caçador de café?

Como são treinados os coffee hunters, os superespecialistas que percorrem as fazendas brasileiras em busca de grãos especiais

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Especialista Ensei Neto analisa café distribuído no terreiro do Rancho São Benedito; à esquerda, cafezal próximo à casa dos produtores.

Precisa-se de profissional com olfato e paladar aguçados, visão global, conhecimentos em botânica, química e geografia, boa condição física e, acima de tudo, paixão por uma boa xícara. Quem se candidata? Os superespecialistas em café, também conhecidos como coffee hunters (expressão em inglês para “caçadores de café”). O ofício, que já existe há cerca de dez anos nos Estados Unidos, está ganhando força no Brasil, acompanhando o crescimento do mercado de cafés especiais.

As duas preciosidades, os experts e os grãos, estão diretamente relacionadas. “O mercado no Brasil está se ampliando e se consolidando, é natural que haja uma procura maior por profissionais de visão holística”, explica Ensei Neto, que oferece um treinamento exclusivo para esses conhecedores. Ele conta que no início a profissão era vista como exótica, mas que frequentemente fazia um percurso similar para apresentar nossa produção de cafés a grupos de estrangeiros em busca de grãos com características peculiares.

Aos poucos, a demanda foi tomando forma. Mais apreciadores consumindo cafés únicos, mais baristas estudando a melhor forma de prepará-los, mais proprietários de cafeterias desenvolvendo blends próprios, mais produtores torrando seu próprio café e tendo de entender esse outro lado da cadeia produtiva do café, com o qual nunca haviam se deparado. Um ciclo positivo para todos os profissionais envolvidos no setor. Uma área que, no Brasil, é responsável por mais de 50 milhões de sacas. Sorte dos superespecialistas em café, que têm todo um universo para explorar a poucos quilômetros de distância. Sorte dos consumidores, carentes de informações e de grãos que proporcionem experiências únicas.

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Sérgio Junqueira Dias, proprietário do Sítio Canaã State Coffee, em Carmo de Minas (MG).

Botina no pé e bússola na mão

Com a consolidação, uma dificuldade: de qual fonte beber? Mais uma vez um passo atrás, mas sempre em frente, o mercado brasileiro buscou referência fora. Ensei conta que alguns de seus amigos, especialistas de outros países, começaram a ser reconhecidos como coffee hunters por apresentarem uma formação profissional bastante completa, com conhecimentos em engenharia, biologia, gastronomia e que, para se aprofundarem, passavam anos em fazendas vivenciando o dia a dia do cafeicultor. “Eles conseguiram assim adquirir uma visão como a de águia, de voo panorâmico, ao mesmo tempo entendendo onde e como cada peça se encaixa, com um sentimento claro do que os consumidores querem”, explica Ensei.

Esse é o mote do treinamento desenvolvido pelo especialista. O “coaching” inclui visitas técnicas a fazendas e armazéns, discussões, além de provas, torra e avaliação de cafés em laboratórios. É um intensivão que acontece apenas uma vez ao ano, com sete dias de campo escolhidos a dedo entre junho e julho, temporada de colheita no Brasil. Na segunda fase, os alunos ficam cinco dias mergulhados em laboratório para a torra, prova e análise dos grãos no Centro de Preparação de Café, do Sindicafé-SP. “É intenso, mas vale a pena”, afirma André Almeida, de 32 anos, responsável pela compra de cafés da Cafeteria do Museu, em Santos. “Não estou acostumado a visitar fazendas e, com o treinamento, pude ter acesso a esse outro lado e passei a entender a lógica da produção de qualidade e investir mais na oferta desse tipo de café.”

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Grupo de alunos estuda atentamente as características topográficas do Rancho São Benedito, em Dom Viçoso (MG), em visita com o proprietário Márcio Heleno Junqueira.

Virada na carreira

A experiência, no entanto, não vale para qualquer um. São centenas de quilômetros percorridos, centenas de horas de visitas a fazendas sob sol escaldante, dezenas de frutinhas provadas no pé (incluindo algumas não tão prazerosas) e muitas, muitas xícaras de café. Além da boa vontade, é necessário um conhecimento aprofundado, que inclui a identificação de componentes geográficos e sua influência no desenvolvimento do grão, além das diferentes etapas do processamento do café – da escolha da variedade ao ponto de torra ideal para cada lote.

Os agrônomos acabam se dando bem, mas a carreira pode ser um caminho interessante também para baristas, cafeicultores, degustadores, classificadores, entre outros. No mercado internacional, por exemplo, há mestres de torra que, na procura por cafés especialíssimos para suas torrefações, acabam aprofundando tanto seus conhecimentos no tema que já são considerados coffee hunters.

Proprietários de cafeterias também são bem-vindos. É o caso de Rodrigo Menezes Ramos, do Ateliê do Grão, em Goiânia. Para oferecer mesclas exclusivas focadas em microlotes, o empresário investiu em pesquisa e, de tempos em tempos, parte em direção a pequenas propriedades de café. Um exemplo é o Grand Cru Volcano, um catuaí de origem vulcânica, da região do Cerrado Mineiro. Em seu rótulo, informações como a origem, o nome do produtor e até a latitude do cafezal. Todo esse esmero é o resultado de dois elementos: a paixão de Rodrigo pelo café – segundo ele, quase equivalente à que tem pelo Corinthians – e tudo o que apreendeu no curso de Ensei.

Também dono de uma cafeteria, a Genot Cafés Especiais, em Natal (RN), Paulo Guillén é outro que está transitando de aficionado para especialista. “É a segunda edição do curso de que participo e tem me ajudado muito a perceber a qualidade e a encontrar os perfis dos lotes que quero oferecer”, diz. Ele conta que, além de aprender a degustar, o projeto Coffee Hunters “impulsiona o trabalho com cafés especiais, pois possibilita um contato direto com o produtor”.

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Vista panorâmica da Fazenda Sertão, em Carmo de Minas (MG), terra fértil para analisar o posicionamento dos cafezais.

Qualidade possível

Participar desse dia a dia com o cafeicultor faz toda a diferença. Nas visitas às fazendas, vão-se os livros e as apostilas e esse conhecimento se torna uma realidade compreensível. Foi o que aconteceu na visita ao Rancho São Benedito, em Dom Viçoso, Sul de Minas. Todos na premiada fazenda, focada na produção de cafés especiais, estavam aflitos. A preocupação com a chuva que se aproximava era evidente. A equipe chegou pela manhã à fazenda, ainda ensolarada. Mas o céu começava a escurecer. “Sinal de colheita complicada”, explica Ensei.

Deu tempo, no entanto de seguir em direção ao cafezal, apinhado de bourbons e catucaís em cereja, lindas, docinhas, mas ainda no pé, à espera dos colhedores. No terreiro, um lote já estava secando. Termômetro em punho, Ensei aproveita para explicar sobre a temperatura mais adequada para os pátios. Sorte: o grupo sai ileso e termina a visita antes de a chuva chegar.

Na visita ao Sítio Canaã, lição importante já na entrada, onde um terreiro exibia um pequeno lote de café secando e exalando aromas agradáveis. “Tudo o que é bom cheira ao que é”, crava Ensei. Um pouco depois, o grupo estava degustando e se surpreendendo com o café na sala de prova da fazenda. Na Fazenda Sertão, uma oportunidade interessante: conhecer um dos terreiros mais altos do Brasil, cuja ventilação e faceamento para o sol foram temas de algumas conversas ao longo do dia. “Café top, raro, caro se trata com carinho”, brinca o produtor Francisco Izidro Dias Pereira, cuja fazenda está entre as mais premiadas do País.

Após as visitas, um tempinho para descansar, jantar, uma rodada de espressos e filtrados em cafeterias próximas e, de volta ao hotel, hora do chamado Fórum Noturno. A reunião em torno do tema preferido do grupo é uma espécie de avaliação do que se apreendeu no dia. Apesar do cansaço, as ideias e conclusões do que se viu parecem fervilhar. Diferentemente das visitas, onde os alunos estão apenas observando e perguntando, a conversa é o momento em que se pode falar, trocar ideias, compartilhar outras experiências e referências externas. Um filme que aborda o tema tratado, um caso que aconteceu em outra região, uma safra que enfrentou o mesmo problema da atual.

É o momento também de definir a agenda dos próximos dias. A viagem seguiria para a cidade de Jacarezinho, o Norte Pioneiro do Paraná, mas essa visita teve de ser cancelada por causa das fortes chuvas que atingiram o local durante aquele período. Intempéries típicas do trabalho agrícola e da vida em meio à natureza. O jeito foi seguir para a Fazenda Palmares, em Amparo (SP), e para a Fazenda Santa Margarida, onde os experts acompanharam de perto o trabalho que Mariano Martins está desenvolvendo para lavar seus cafés à moda da América Central. Alguns meses depois, a oportunidade de torrar e provar alguns dos cafés vistos no pé. E mais alguns sentidos são explorados. Mais conhecimentos adquiridos e a conclusão de que a experiência foi apenas um dos muitos passos para se tornar um coffee hunter. Mas valeu.

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Francisco Isidro Dias Pereira, proprietário da Fazenda Sertão, uma das mais premiadas da região de Carmo.

O que um superespecialista em café deve saber?

• A influência dos componentes geográficos e dos processos de produção na xícara
• Reconhecer as diferentes variedades de cafeeiros e seus frutos, suas características agronômicas e fisiológicas, e potencialidades para a qualidade da bebida
• Compreender os impactos dos diferentes tipos de secagem de café na xícara
• Compreender critérios para escolher os processos de seleção dos grãos de café (por tamanho e formato, por densidade e por cor)
• Identificar os principais defeitos e problemas de natureza intrínseca e extrínseca
• Torrar, avaliar e desvendar potencialidades de cada lote de café
• Compreender as curvas de torra padrão para cada lote
• Desenvolver diferentes perfis de torra para cada lote
• Estimar os efeitos na xícara devido às características do grão, do processo industrial e do tipo de extração.

Os 10 mandamentos do coffee hunter

1. Amarás o café sobre todas as coisas
2. Não terás medo de ficar horas a fio sob sol de rachar ou sob chuvas torrenciais
3. Acharás divertido analisar fotoperíodos, ciclos fenológicos e cartas psicrométricas (que indicam as propriedades do ar, como temperatura, umidade e ponto de orvalho)
4. Gostarás de chupar a frutinha do café no pé para perceber quais são seus açúcares predominantes (frutose, glicose ou sacarose)
5. Terás orgulho de olhar o fruto no cafeeiro e descobrir de que variedade ele é
6. Olharás feio para quem pisar no café do terreiro
7. Descobrirás quais defeitos o café apresenta antes de degustá-lo
8. Torrarás o café artesanalmente, sem deixá-lo escuro e brilhoso
9. Apreciarás o café em todos os preparos, dos modernos, como Hario V60, Chemex e aeropress, até os clássicos e tradicionais
10. Degustarás cafés sempre hiperconcentrado, percebendo todas as suas características, inclusive os métodos de processamento pelos quais passaram

Ficha técnica*

Fazenda Rancho São Benedito
Localização Dom Viçoso, Minas Gerais
Microrregião Serra da Mantiqueira
Região Sul de Minas
Altitude média 1.120 metros
Colheita seletiva
Processamento natural e cereja descascado
Secagem terreiros tradicionais pavimentados e de chão
Variedades bourbon vermelho e amarelo, catucaí vermelho e amarelo, acaiá vermelho

Fazenda Sítio Canaã Estate Coffee
Localização Carmo de Minas, Minas Gerais
Microrregião Serra da Mantiqueira
Região Sul de Minas
Altitude média 1.000 metros
Colheita seletiva
Processamento natural
Secagem terreiros tradicionais de chão
Variedade bourbon amarelo

Fazenda Fazenda Sertão
Localização Carmo de Minas, Minas Gerais
Microrregião Serra da Mantiqueira
Região Sul de Minas
Altitude média entre 1.200 e 1.450 metros
Colheita seletiva
Processamento natural e cereja descascado
Secagem terreiros tradicionais de chão
Variedades bourbon amarelo, acaiá e catuaí amarelo

Fazenda Fazenda Sertão
Localização Carmo de Minas, Minas Gerais
Microrregião Serra da Mantiqueira
Região Sul de Minas
Altitude média entre 1.200 e 1.450 metros
Colheita seletiva
Processamento natural e cereja descascado
Secagem terreiros tradicionais de chão
Variedades bourbon amarelo, acaiá e catuaí amarelo

(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso [em 2013] – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).

TEXTO Giuliana Bastos • FOTO Ivan Padovani

Cafezal

Lavoura em foco

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Robson Silva colhe frutos maduros de cafezal que está sendo recuperado.

A família Wolff centra esforços nos pés de café de suas fazendas em Ibiraci (MG) e alcança grãos de alta qualidade

Engana-se quem pensa que agricultura é uma ciência exata. Sim, há os momentos em que as dosagens dos adubos e as distâncias entre os pés têm de ser precisas, dias em que é necessário fazer gestão de custos, controlar milimetricamente a umidade dos grãos no terreiro, além da incerta previsão de produtividade de cada planta. Um balaio de cálculos aqui e ali.

Nas fazendas Portal da Serra e Guanabara, localizadas em Ibiraci (no sul de Minas Gerais), os números, no entanto, perderam importância. A intuição, a sensibilidade e um ânimo singular para produzir cafés de qualidade movimentam o dia a dia das propriedades da família Wolff.

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Umberto em frente ao Portal da Serra.

Qualidade latente
O início dessa história é recente. Elisa Wolff, 55 anos, mãe de quatro rapazes, esposa de um coronel da Aeronáutica, já morou em mais de dez cidades, já venceu um câncer, já passou por muito nessa vida e queria apenas um pouco de paz. “Queria um pedacinho de terra agora que o Umberto [o marido] ia se aposentar”, explica. Sorte dos apreciadores de café. Há cerca de sete anos, ela e seu marido esbarraram na cidadezinha de Ibiraci, povoada por 12 mil habitantes, muitos deles vivendo do café. Os pais de Elisa já moravam por ali e seria bom estar por perto. Primeiro veio a Fazenda Portal da Serra, cujo cafezal andava sofrido. Para quem não tinha pretensões, parecia mais do que suficiente.

Nem tanto. Entre os quatro filhos, tinha um rapaz obstinado, saído havia pouco da Marinha, após dez anos navegando por lá. Hugo Wolff, 33 anos, é jovem, mas maduro, sério, focado, gentil. E visionário. Percebeu que havia um potencial, um algo a mais que poderia ser explorado, que poderia ser interessante para a família, para o negócio, para a natureza. O pai, Umberto, coronel recém-aposentado na Aeronáutica, administrador experiente, embarcou na proposta de Elisa e de Hugo, e os três mergulharam na fazenda.

Por três anos, Hugo ficou ao lado da mãe no Portal, acompanhando folha a folha dos atuais 37 mil pés de Coffea arabica, estudando cafés especiais e desenvolvendo a estratégia da marca. No dia a dia do jovem tenente não havia até então espaço para palavras como catuaí, sombreamento ou derriça. Então a solução foi se debruçar sobre os livros, ou melhor, sobre as xícaras. “Precisava saber o que temos nas mãos para não termos de nos sujeitar aos preços do mercado”, explica. Para tal, fez curso de barista com Emilio Rodrigues, da Casa do Barista (RJ), curso de barista e de torra com Isabela Raposeiras, do Coffee Lab (SP), curso de classificação na consultoria Grão Mestre (RJ) e Q-Grader com Bruno Souza, na Academia do Café (MG). Anos de dedicação.

Um pouco depois, a família comprou, em sociedade com Luiz Fernando Moraes e Silva, parceiro de muitos anos, a Fazenda Guanabara, bem ao lado, agregando à propriedade mais 50 mil pés de café. Passado o impulso inicial, Hugo foi ao Rio de Janeiro captar mais clientes para a marca e cuidar de outro projeto pessoal, e o pai assumiu seu posto. Hoje, é o casal quem está em Ibiraci, e o filho vai de tempos em tempos provar amostras e avaliar cada talhão e suas possibilidades.

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Hugo avalia meticulosamente os cafés após torrá-los com a ajuda de sua mãe, Elisa.

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Refazendo o cafezal
Adquirir conhecimento, no entanto, não foi a única arma da família. “A sensibilidade também é uma forma de inteligência”, defende Hugo. Para ele, a natureza sinaliza aquilo de que precisa. E isso ficou ainda mais claro para ele na recuperação da lavoura que está realizando agora. As heranças de uma gestão cujo foco era produzir muito café foram o descuido e o uso excessivo de adubos e de insumos químicos, que enfraqueceram os cafeeiros. O resgate começou então pela nutrição das plantas e pela correção do solo, e os pés estão aos poucos se refazendo, se fortalecendo. “Porém, para restaurar o cafezal, a dedicação é maior. Essa alavanca demanda custo e investimento, além disso, não podemos ter pressa”, explica Hugo. Segundo o produtor, as datas de adubação têm regularidade importante para a planta e não adianta jogar hormônio para apressar as coisas ou aumentar a produtividade. “Quando há um processo natural, a resposta é natural. Queremos que a planta se recupere no tempo dela.”

O conceito, aparentemente intuitivo, tem respaldo científico. Além das visitas à Embrapa de São Sebastião do Paraíso (MG) e à Universidade Federal de Lavras (Lavras, MG), eles contam com a consultoria do agrônomo Norton Bertoldi, do Emater – MG (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Minas Gerais), que tem orientado cada passo do manejo dos cafezais. “Ele não estava acostumado a ver uma produção como a nossa; mesmo assim, abraçou a causa e nos ajuda muito. Sabemos que temos potencial e, sem esse apoio técnico, o produtor rural fica na mão”, acredita Hugo.

Colheita tardia
Um dos grandes temores de boa parte dos cafeicultores é a fermentação que acomete as frutas do cafeeiro, deixando-as com um terrível sabor avinagrado. Esquece-se, no entanto, que, se controlada, a maturação avançada pode ser boa, agregando à bebida mais doçura e aromas e sabores mais complexos. Esse é o princípio do qual partiu Hugo Wolff quando decidiu que só utilizaria os frutos “boias” (aqueles que amadurecem no pé, passando do estágio cereja) em seus cafés de qualidade. “Aqui o nosso melhor café é o boia, o passa. São as bebidas que alcançaram as melhores notas sensoriais”, explica o produtor. A família ainda está estudando o ponto ideal no pé para colher, pois o fruto não pode secar totalmente. Mas a segurança de que o café não vai fermentar se deve ao terroir da fazenda. A propriedade fica em uma região limítrofe entre a Mogiana Paulista (SP), o Cerrado Mineiro e o sul de Minas, pertinho de Franca (SP), Pedregulho (SP) e Delfinópolis (MG). O planalto, com terrenos de altitude entre 1.235 m e 1.267 m, tem uma bela vista para o Lago do Peixoto e o Parque da Serra da Canastra. Cerca de 60% da propriedade é composta de mata nativa, árvores que geram sombra para alguns cafeeiros e protegem uma rica fauna.

As baixas temperaturas, com média anual entre 17ºC e 22ºC, e a baixa umidade (a 800 quilômetros do mar), com poucos períodos de chuva, ajudam e muito o projeto de colheita tardia de Hugo. Seus melhores cafés até agora são os que ficam no talhão que ele chama de “pedra”, por duas razões, segundo o produtor: o solo naturalmente mais pedregoso, com maior presença de minerais, e a posição dos cafeeiros, que recebem mais vento, o que ameniza o calor direto do sol. Aquela parte da fazenda, por sua topografia acidentada, passa por colheita manual (derriça). Mais para cima e em toda a Fazenda Guanabara, a colheita é mecanizada, um privilégio em um terreno com mais de 1.200 m de altitude.

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Vista do Lago do Peixoto e, ao fundo, a Serra da Canastra, que se pode apreciar do alto da fazenda.

Corrida contra o tempo
Para Hugo, quando se tira o café do pé, começa-se uma corrida para não perder a qualidade. “Não devemos interferir, pois dificilmente o homem consegue agregar muitas características. É a nossa forma de ver, a nossa relação com a natureza”, explica Hugo. Essa pouca interferência não significa, porém, desleixo. Longe disso. Optou-se ali pelo processamento conhecido como natural, ou seja, o fruto sai do pé e vai para o terreiro. Antes, as bolotinhas passam por um lavador para a separação entre boias, as cerejas e os verdes. Os boias que mais prometem vão para terreiros suspensos, onde há mais controle da secagem, em camadas bem finas, e onde ficam por cerca de dez a 25 dias.

As extensas mesas, com 40 metros de comprimento e 4 metros de largura, foram projetadas por Hugo, de acordo com o que pensou ser necessário para um trabalho que exigiria muitas mexidas por dia (chegam a ser de quinze em quinze minutos em alguns casos), e para uma secagem mais lenta, que valorizasse as características de seus cafés, especialmente a doçura. A superfície das mesas é de nylon, que evita as ferrugens típicas das telas e a invasão de aromas indesejados, já que o plástico é inerte. Ao cair da noite, os cocos de café são religiosamente cobertos pela lona, que os protege do orvalho. Detalhes que podem afetar a qualidade da bebida mais à frente. Esse modo cauteloso de secar o café causou burburinho entre os cafeicultores da região. “Fala para o menino Hugo não mexer nisso não. Ele vai falir o pai dele e não vai conseguir nada”, alertou um produtor local, quase em tom de ameaça. “Ficamos assustados com essa postura, mas estamos tendo sucesso, e o mérito é todo do Hugo”, conta, orgulhosa, Elisa. “Estamos fazendo algo totalmente novo, quebrando paradigmas, faz parte”, pondera Hugo.

Estranhamente bom
O que dita os procedimentos seguidos na fazenda são as experiências do dia a dia. “Não temos referência, pois aqui em Ibiraci não há tradição em cafés de qualidade. Temos de encontrar nossos caminhos para esse terroir”, explica Hugo. Uma das expertises que a família já adquiriu é que as variedades catuaí vermelho e mundo novo são as que trazem melhores resultados. Mas há novos testes a caminho com variedades como obatã vermelho.

Além dos talhões marcados e dos lotes processados separadamente, as torras meticulosas (feitas por Hugo e Elisa) e as provas constantes durante a secagem nas mesas ajudam a perceber nuances e tomar novas decisões. Por vezes, a secagem dos cafés é finalizada no terreiro do pátio, onde ficam por um ou dois dias, de acordo com o clima e o grau de maturação do lote. Não menos cuidado que as mesas, o pátio possui superfície de cimento usinado (que mantém a temperatura mais baixa para não aquecer excessivamente o café) e muretas cobertas com tinta contra umidade.

Todo esse esforço está sendo compensado. “Levamos o café da nossa 1ª safra para a Cocapec (Cooperativa de Cafeicultores e Agropecuaristas), em Franca, e ficamos torcendo. Quando falaram que o café estava estritamente mole, foi uma festa. Nem eles entenderam, acharam estranho um café de Ibiraci tão bom”, lembra. Depois, um grande amigo, o advogado Gilberto Florêncio, sugeriu aos Wolff que levassem uma amostra para a barista Isabela Raposeiras, em São Paulo. Com a avaliação da expert em cafés de qualidade, uma constatação: o café tinha 86 pontos. “Foi outra festa!”

“Queremos fazer café com artesanalidade, como joia. É trabalhoso, mas é uma forma de respeitar a natureza, preservando a fauna, a flora, as nascentes”, explica Umberto. “Nossa ideia é deixar um legado. O que levamos dessa terra? Nada. Mas podemos deixar algo.”

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Os cafés secam em terreiros suspensos projetados pela família e são mexidos de 20 em 20 minutos durante o dia por Elisa.

Vida na fazenda
A família Wolff não tem o que reclamar de sua vida campestre. Além de tocar os cafezais, desfrutam de delícias feitas no forno a lenha. Uma delas é o pão de queijo (foto abaixo), receita centenária de uma moradora da região da Serra da Canastra (MG), a bisavó do advogado Gilberto Florêncio Faria. Ele mesmo, um grande amigo dos Wolff, prepara de tempos em tempos o quitute ali.

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Ficha técnica*

Fazendas Portal da Serra e Guanabara
Localização Ibiraci (MG)
Região limítrofe entre Cerrado Mineiro, sul de Minas e Mogiana Paulista
Altitude média 1.235 m a 1.267 m
Extensão do cafezal 28 hectares – Portal da Serra (12 ha) / Guanabara (16 ha)
Número de cafeeiros 87 mil plantas – Portal da Serra (37 mil) / Guanabara (50 mil)
Colheita manual (derriça) e mecanizada
Processamento natural
Secagem pátio e terreiros suspensos
Porcentual dos tipos 100% arábica Variedades catuaí vermelho e mundo novo
Mais informações www.wolffcafe.com.br

(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso [em 2013] – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).

TEXTO Giuliana Bastos • FOTO Érico Hiller

Cafezal

Movida a café

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No interior paulistano, uma antiga região brilha com o trabalho da sexta geração da família Martins. Próxima à antiga estrada de ferro Sorocabana, a Santa Margarida vive jovem e forte

Uma casa de mais de 120 anos. Uma lavoura de 42 anos. Um trisavô fundador. Jovens em torno de 30 anos. Uma colheitadeira nova, 7.200 sacas colhidas, 39 sacas por hectare. Fazenda Santa Margarida: uma antiga região de plantio de café e hoje palco de grandes mudanças. Com esses inúmeros contrastes e uma mistura de novo e velho é que se é recebido na propriedade da família Martins, em São Manuel, Sorocabana, interior de São Paulo. O tempo todo teorias são contestadas: equipamentos tradicionais de beneficiamento de café ajudam nos desafios de experimentar as novas tendências de processamento do grão. Uma aula de ousadia, alguns podem pensar. Ou devaneios de jovens em busca de novos experimentos? Mariano Martins há nove anos assumiu a fazenda da família. Ele é a sexta geração. “Não tinha ideia do café que era produzido ali.” Com qualidade ou não, ele resolveu sair do banco onde trabalhava para assumir a empreitada. Devorou livros de agricultura e começou a fazer testes, muitos testes. Hoje anda com desenvoltura por entre cafezais, terreiros e tanques de fermentação. A região, a 280 quilômetros da capital paulista, não é das mais altas, tem 770 metros e, por ser um terreiro, comporta o uso de uma colheitadeira, que substituiu o trabalho de 200 pessoas, no passado. Hoje apenas dois funcionários passam colhendo, após o trabalho da máquina. Mariano conhece cada talhão da fazenda e faz o controle das variedades: catuaí vermelho e amarelo e mundo novo vermelho e amarelo. O controle vai desde a fermentação que o fruto sofre no pé até o microclima da região, estudado por mais de dois anos mensurando as temperaturas e os sombreamentos de árvores como jambolões e grevilhas. Uma barreira de eucaliptos ajuda a impedir a passagem do vento constante. A planta do café é muito sensível a temperaturas, ventos e outras intempéries e todo o cuidado é pouco. A consultoria do especialista Ensei Neto o ajudou a entender o potencial do café, as diferenças de sabores e processos do grão.

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Funcionário mexe o terreiro de café natural para ajudar na secagem dos frutos; equipamentos, como a colheitadeira azul ajudam o cafeicultor durante a safra.

Técnicas colombianas? Ali chove muito durante a colheita. Situação semelhante à da Colômbia, por exemplo. Tal fato ajudou Mariano a buscar informações de processos realizados em outros países para colher melhor o café e evitar a umidade no terreiro. Depois de muita pesquisa, começou a desenvolver as técnicas usadas em regiões da América Central: a lavagem do café em tanques por até 18 horas, controle do pH e temperatura da água. Para ver os resultados, prova o café e identifica as mudanças de cada processo no sabor da bebida. Minuto a minuto, de madrugada, o tempo todo é de dedicação ao café que sai da lavoura e entra no processo de lavagem e seca: “Estamos aprendendo e apanhando muito com esse café lavado”, revela. Mais da metade dos grãos verdes produzidos na Santa Margarida, em 2012, seguiam para exportação. Um terço é comercializado no mercado interno. Seguindo a linha da América Central e seus processos diferentes dos realizados aqui no Brasil, Mariano começou, há quatro anos a escolha do café verde no sistema de catação em uma bancada. Cinco mulheres trabalham na seleção manual do grão que foi colhido, processado e beneficiado. Com mãos e olhos atentos, as catadoras vão eliminando qualquer grão que apresente um defeito: quebrado, brocado, malformado ou até os muito pequenos. Uma verdadeira imersão em milhares de grãos de café que, pelas mãos habilidosas do quinteto, resultam em uma seleção criteriosa. A fazenda é enorme. São mais de 650 hectares, a casa-grande e ao longe muitas casinhas. “Aqui moravam 250 famílias, hoje são apenas quatro”, conta Mariano. Os tempos são outros. A mão de obra do café diminuiu, e os equipamentos avançaram muito. Hoje em dia, na época mais pesada da colheita, apenas 15 pessoas ajudam nos afazeres da lavoura. e39_fazenda_martins_03

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Região plana contribui para a colheita mecanizada. Mas parte da produção é colhida manualmente, de forma seletiva; o casal Mariano Martins e Fabíola Filinto, responsáveis pelo café.

Os modernos robôs Uma casa então se transformou no laboratório. Lá são testados e provados os grãos que passam por todo o processo na fazenda. Em contraste com a terra vermelha da propriedade, há muita tecnologia do lado de dentro das antigas construções. Lá começa outro mundo. Além da produção diária da fazenda, a família Martins resolveu criar uma marca própria de café. Isso há três anos. Após identificar que o café era de boa qualidade, que os processos podiam ser mudados e que o produto tinha bons resultados na xícara, Mariano se uniu a duas outras jovens empreendedoras, Maíra Lopes e Fabíola Filinto, e criou o Martins Café. Mas só um café especial para essa turma não era suficiente. Ele tinha que ter algo mais. Foi então que surgiu a ideia de trabalhar cafés com especiarias. Mas não qualquer uma, mas, sim, produtos naturais, vivos. Desenvolveram quatro tipos de café: anis, canela, noz-moscada e cardamomo. Com a consultoria do mixologista e barista Marco de La Roche foram testadas diferentes torras e quantidades de especiarias naturais para cada café. Então voltamos para a tecnologia da fazenda. Ali, no laboratório, Mariano realiza todos os diferentes perfis de torra no torrador norte-americano Diedrich, de 12 quilos. O brinquedinho é negócio sério e, de lá, saem os grãos torrados que depois serão moídos sob encomenda para os clientes e também adicionados às especiarias. O produto inovou o mercado de café. Tanto na proposta de ser um moído diferente, quanto na identificação do método de preparo – com moagens distintas para coado, french press, espresso –, e também na comunicação das embalagens. Robôs retrôs remetem ao antigo, ao mesmo tempo em que são figuras futuristas, presentes no nosso imaginário. “Desde o começo, queríamos algo que fosse moderno e ousado, no qual pudéssemos aplicar tudo o que tínhamos aprendido no mercado, mas que mantivesse um espírito tranquilo, de lugares onde a vida não passa tão rápido”, explica Mariano. Não podia ser diferente. Numa casa de 1890 com um pé-direito enorme, onde circulam ideias dentro de cabeças jovens e um ótimo produto na mão vive o café da Santa Margarida. “A primeira lembrança que tenho do meu avô, quando tinha cerca de quatro anos, é de ele me ensinando a beber café, para desespero de minha mãe. Lembro claramente dele respondendo: “Café está no sangue da família. Não adianta. Cedo ou tarde, ele vai ser movido a café.” E não é?

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À esquerda, mulheres catam e selecionam o grão verde em bancadas no laboratório da fazenda; ao lado, torrador usado para testes e para atender aos pedidos da marca própria.

Mundo novo amarelo A variedade mundo novo amarelo 4266 é parecida “fisicamente” com a mundo novo vermelho. Foi confundido por muito tempo por ali, entre tantos cafezais. Essa lavoura é remanescente da geada de 1975 e, claro, muito resistente. Esse talhão, hoje o único que recebe uma colheita seletiva na Santa Margarida é separado dos demais lotes, tem em sua carga genética muito do bourbon amarelo, e é uma variedade de ouro na cafeicultura, e, ainda, o melhor, com a produção alta. e39_fazenda_martins_06 A herança dos Martins A família Martins de Almeida começou a plantar café em 1823, na região de Vassouras (RJ). Victoriano Martins de Almeida, carpinteiro, comprou um sítio com dinheiro emprestado. Ao morrer, deixou seis fazendas para os filhos. Um deles, João Baptista, partiu para São Manuel (SP), à beira da estrada de ferro Sorocabana. Nascia a Santa Margarida, em 1890. A paixão pela fazenda era tanta, que, em testamento, foi indicada como tradição da família, devendo sempre ser passada para o filho mais promissor. Essa recomendação foi seguida e hoje ela é a última fazenda da família. O filho de João Baptista, Victor, continuou com o plantio de café. Já o neto, Victor Jr., avô de Mariano, pegou a grande geada de 1975, que matou todos os pés de café, com exceção de um talhão (veja o boxe na pág. 85). Quando o pai de Mariano, Milton, assumiu a fazenda, optou por retomar o cultivo de café, plantando novas lavouras e investindo em técnicas mais modernas. Mariano assumiu a fazenda quando o pai desistiu de “apanhar desse tal de café”. Desmotivado, Milton queria vender a fazenda, mas consultou o filho e lhe deu dois anos de prazo para mostrar o resultado. Após dobrar a produtividade por hectare e diminuir os custos, ele acredita que está no caminho certo. (texto adaptado de Mariano Martins)

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A jovem equipe do Martins Café: Maíra Lopes, Flávia Pogliani, Mariano Martins, Fabíola Filinto e Marcela Herz, em 2012

Ficha técnica*

Fazenda Santa Margarida Cidade São Manuel, SP Região Sorocabana Altitude 770 metros Fundação 1890 Proprietário Mariano Martins Área total 657 hectares Área de cafezais 180 hectares Cafeeiros 900 mil Sacas produzidas 7.200/ano Beneficiamento natural, cereja descascado e cereja lavado Variedades catuaí vermelho, catuaí amarelo, mundo novo vermelho e mundo novo amarelo (Essa reportagem foi publicada em 2012, na Revista Espresso)

TEXTO Mariana Proença • FOTO Guilherme Gomes

Cafezal

Natureza em alta

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Fazenda Ambiental Fortaleza reinventa maneira de se fazer café especial no Brasil e conquista mercado nacional e internacional

Cultivar café como os nossos avós faziam não é uma tarefa lá muito ecologicamente correta. A monocultura deixava a terra cansada, a água usada na irrigação da plantação e na lavagem do grão não era reutilizada e liberava resíduos danosos na natureza e a quantidade de insumos químicos e agrotóxicos era muito grande. Mas como produzir um bom café e ao mesmo tempo deixar uma boa pegada para as gerações futuras? A Fazenda Ambiental Fortaleza (FAF) parece estar encontrando a resposta.

Localizada na região paulista da Mogiana, entre as cidades de Mococa e Tapiratiba, a fazenda existe há 160 anos, sempre produzindo café. Maria Silvia Barretto herdou o local em 2003 e, ao lado de seu marido, Marcos Croce, resolveu encampar o projeto de tocá-la, mas com um novo olhar. “Só aceito assumir a fazenda se fizermos algo orgânico”, disse Silvia para Marcos, à época trader de grandes companhias norte-americanas. O casal e seus três filhos moravam nos Estados Unidos havia muitos anos, quando surgiu essa oportunidade de voltar ao Brasil.

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Daniel, Marcos e Felipe Croce, família unida na produção do café de qualidade.

Entorno valioso
Administrador pela Faculdade Getúlio Vargas, 63 anos, Marcos começou do começo. Tinha nas mãos uma fazenda de 800 hectares repletos de cafezais convencionais e uma produção de 6 mil sacas anuais, de qualidade apenas razoável. Pesquisou os arredores, visitou outros países produtores, mergulhou nesse universo. Então realizou um mapeamento de todo o terreno com a ajuda de uma equipe de engenheiros florestais. Foram encontrados 42 pontos de nascentes, árvores de mais de 80 espécies, mais de 200 tipos de aves e uma Mata Atlântica secundária e primária relativamente preservada.

Era o sinal de que ele precisava para definir qual caminho traçar. “Aqui não vou conseguir fazer grandes quantidades com a qualidade de café que desejamos. Mas, se eu construir uma história diferente, talvez mais pessoas possam desenvolver um trabalho parecido, seguindo o nosso modelo de fazenda sustentável”, explica. O primeiro passo foi diminuir a estrutura da fazenda. Reduziu radicalmente o número de equipamentos e de cafeeiros em mais de 80%. Assim, a produção passou a 600 sacas.

Os 100 hectares de cafezais são divididos em dois tipos. O orgânico ativo e o orgânico passivo. O ativo é aquele em que o cafeicultor participa de todos os momentos, da plantação da semente à adubação, poda etc. No caso da FAF, esses cafeeiros são parcialmente sombreados, e as ruas são intercaladas com árvores frutíferas, além de outros cultivos, como milho e feijão.

O cafezal orgânico passivo não é nada convencional. Caminha-se cerca de dez minutos mata adentro para encontrar um pé de café. A plantação não é daquelas “bonitonas”, de traçados geométricos e com plantas de um verde viçoso. Tudo é orgânico, ou seja, mirradinho, meio disforme, por vezes, estranho. “O que é bonito: o Jardim de Versailles ou a mãe-natureza?”, Marcos questiona. “Na Etiópia, vi pés de café com até 300 anos. Mas, para viver tanto, a planta tem de ser respeitada, não se pode exigir muito dela apenas para ficar bonita”, explica Marcos. A resposta está também nas xícaras. O café fica realmente especial, mais saudável e naturalmente doce.

Resultado também de um controle rigoroso desde o grau da doçura do fruto na árvore até a temperatura da secagem, acompanhada bem de perto em terreiros suspensos, que são utilizados também em algumas das 35 fazendas parceiras. A colheita é apenas seletiva, ou seja, fruto a fruto. “Chegamos a voltar até cinco vezes ao mesmo pé para pegar somente os frutos mais maduros”, explica. Mesmo assim, é muito menos desgastante para os “parceiros” que ajudam na tarefa, pois ela acontece na sombra, não requer escadas e o pagamento costuma ser mais abonado, já que o café especial tem valor agregado maior.

O reconhecimento desse esforço todo veio alguns anos depois que o casal começou a administrar. Em 2008, a fazenda ganhou o prêmio Sustainability Awards, da Specialty Coffee Association of America (SCAA). Atualmente, o café da FAF já é reconhecido como um dos melhores do País, sempre recebendo acima de 84 pontos, e está presente em cafeterias premiadas e restaurantes sofisticados. Além disso, 98% da produção da fazenda é vendida para torrefadoras internacionais, como TW (Dinamarca), de Tim Wendelboe, Seven Seeds (Melbourne, Austrália) e Blue Bottle (São Francisco, Estados Unidos), com sacas disputadas por vários compradores.

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Uma horta orgânica garante verduras e legumes para as refeições da fazenda.

Natural ou orgânico?
Quando um agricultor fala que produz café natural, geralmente ele quer dizer que o fruto vai direto do pé para o terreiro, para ser seco “naturalmente”. Na FAF é diferente. “Chamamos de natural o café que nasce na mata, uma planta que sofre a mínima interferência da mão do homem”, explica Marcos. As únicas intervenções feitas no processo natural de crescimento são: a plantação de outras árvores entre os pés de café para criar alguma sombra e a limpeza do solo para facilitar a colheita.

Com esse método, a plantação tem um impacto mínimo em seu entorno. “Na última safra, por exemplo, tivemos uma seca de quatro meses. O cafezal orgânico ativo, que não fica sob a sombra da mata, tivemos de irrigar todos os dias e ainda cortar o mato, passando enxada em cada pé. Mesmo assim, houve uma perda de 40%. No café da floresta não precisamos fazer nada”, conta. “A terra continuou úmida, as plantas ficaram bem e não houve espaço para o mato. A perda não chegou a 2%.”

E as pragas? O produtor afirma que não costuma ter problemas e pega uma folha para mostrar. “Está vendo aqui? Tem uma ferrugem pequena, mas ela está protegida por outro microorganismo e não vai avançar. A planta tem força para se defender. No caso da broca, a plantação orgânica sustentável dá espaço para o predador da broca também se desenvolver, por isso, ela não consegue se multiplicar”, explica. É a lógica da autorregulação da natureza.

Nó na cabeça
Laurindo Donizetti de Assis, responsável por toda a produção da fazenda, custou a entender que tudo o que se faz lá (e na vida) deixa rastros. “Levei quatro anos pra desfazer esse nó que deu na minha cabeça”, conta. Nascido na região, Laurindo trabalhava na FAF havia mais de 20 anos com o cultivo tradicional, quando foi surpreendido pela troca para o orgânico sustentável. Foi fazer um curso no IBD (Instituto Biodinâmico), em Bauru, mas eram muitas novidades para um agricultor velho de guerra. “Fiquei confuso e constrangido”, conta, explicando a razão de, logo em seguida, ter ido trabalhar em outro lugar. Alguns meses depois, algo se esclareceu na mente deste senhor sereno. “Fiz por muito tempo o trabalho convencional e acho bonito, moderno, mas em época de safra eu levantava às 5 horas e terminava às 23 horas. Gastava muita energia, porque ninguém consegue vencer tudo quanto é doença. A gente põe remédio para uma praga e aparece outra”, conta. “Percebi que havia algo errado.”

O caboclo, com toda a sua simplicidade, mas também esperteza, foi então pesquisar mais para entender o que era “essa história de orgânico”. “Vi que é tudo verdade e pedi para voltar para a FAF. Hoje não penso mais do modo convencional. O orgânico funciona, mas é preciso fazer tudo direitinho. Tem que cuidar da planta, tem que amar muito a natureza.”

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Tulhas reformadas e diminuídas para receber os microlotes; os tanques onde são estudados novos métodos de fermentação e a prova, momento decisivo para avaliar a qualidade dos grãos.

Sem medo de experimentar
Na FAF inovação é palavra de ordem. Vai desde a escolha das cultivares plantadas, até o modo de colher e secar, de beneficiar o grão e de estocá-lo para descansar.
Sim, há por ali alguns pés de bourbon vermelho e amarelo, mundo novo e catuaí (cultivares mais comuns entre os cafezais brasileiros), mas também há sumatras, pacamaras, javas, obatãs e tupis. “Buscamos bebidas de sabores diferentes e não grãos que produzem mais”, explica Felipe Croce, responsável pela qualidade do café.

E, para tal, não basta apostar apenas nas variedades. É preciso explorar outras possibilidades de processamentos, de secagem e de torra. E todas as fases da produção do café são pesquisadas e reinventadas ali. “Ainda estamos em processo para conseguir entender como influenciar o sabor, testando várias formas de lavar o café”, conta Felipe, mostrando dois tanques, nos quais faz experiências de fermentação de longos períodos, como acontece nos países da América Latina, com exceção do Brasil e do Equador, e em grande parte da África e na Ásia.

Em um deles estava um catuaí amarelo que já havia sido descascado, descansado por dez horas, lavado e deixado no tanque seco por mais dez horas. Depois, foi deixado “de molho” na água, fermentando por mais quinze horas e, por fim, levado ao terreiro suspenso para secar. Chamado de wet fermentation, esse processo é complexo e está em fase experimental. Por vezes, Felipe tem de aparecer no meio da madrugada para verificar como estão as coisas no tanque.

Todo esse cuidado e o conhecimento bastante aprofundado foram adquiridos por ele em experiências internacionais. Formado em Relações Internacionais na Universidade de Washington (EUA), o jovem de 28 anos já foi gerente da fazenda, estagiou com Tim Wendelboe, na Dinamarca, e trabalhou na torrefadora Kaldi’s, nos Estados Unidos. “Eles não respeitavam o grão brasileiro. Isso me mostrou que o nosso café tem de se destacar de alguma forma entre os de outros países, pois na mesa de cupping é com eles que estamos disputando espaço”, explica.

Além da fermentação “experimental”, a fazenda está praticamente dando adeus ao terreiro de cimento. O pátio, símbolo da cafeicultura brasileira, quase não é usado. Há seis anos os terreiros são suspensos e os resultados são claramente perceptíveis, segundo Felipe. “Conseguimos controlar de maneira mais rigorosa a temperatura da seca, sombreá-la para que seja mais lenta – alguns lotes chegam a ficar 14 dias secando – e assim já obtivemos cafés de notas muito superiores, com mais doçura, mais acidez e mais corpo”, finaliza.

Ficha técnica

Fazenda Ambiental Fortaleza
Localização entre as cidades de Mococa e Tapiratiba Região Mogiana Paulista
Altitude média 1.000 metros
Produção orgânica passiva e ativa
Colheita seletiva
Processamento natural, cereja descascado e lavado
Secagem terreiros suspensos

Variedades bourbon vermelho e amarelo, mundo novo, catuaí, sumatra, pacamara, java, obatã e tupi

(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso, em 2012 – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).

TEXTO Giuliana Bastos • FOTO Marcelo Liso