Cafezal

Lavoura em foco

e41_fazenda-portal-da-serra

Robson Silva colhe frutos maduros de cafezal que está sendo recuperado.

A família Wolff centra esforços nos pés de café de suas fazendas em Ibiraci (MG) e alcança grãos de alta qualidade

Engana-se quem pensa que agricultura é uma ciência exata. Sim, há os momentos em que as dosagens dos adubos e as distâncias entre os pés têm de ser precisas, dias em que é necessário fazer gestão de custos, controlar milimetricamente a umidade dos grãos no terreiro, além da incerta previsão de produtividade de cada planta. Um balaio de cálculos aqui e ali.

Nas fazendas Portal da Serra e Guanabara, localizadas em Ibiraci (no sul de Minas Gerais), os números, no entanto, perderam importância. A intuição, a sensibilidade e um ânimo singular para produzir cafés de qualidade movimentam o dia a dia das propriedades da família Wolff.

e41_fazenda-portal-da-serra_02

Umberto em frente ao Portal da Serra.

Qualidade latente
O início dessa história é recente. Elisa Wolff, 55 anos, mãe de quatro rapazes, esposa de um coronel da Aeronáutica, já morou em mais de dez cidades, já venceu um câncer, já passou por muito nessa vida e queria apenas um pouco de paz. “Queria um pedacinho de terra agora que o Umberto [o marido] ia se aposentar”, explica. Sorte dos apreciadores de café. Há cerca de sete anos, ela e seu marido esbarraram na cidadezinha de Ibiraci, povoada por 12 mil habitantes, muitos deles vivendo do café. Os pais de Elisa já moravam por ali e seria bom estar por perto. Primeiro veio a Fazenda Portal da Serra, cujo cafezal andava sofrido. Para quem não tinha pretensões, parecia mais do que suficiente.

Nem tanto. Entre os quatro filhos, tinha um rapaz obstinado, saído havia pouco da Marinha, após dez anos navegando por lá. Hugo Wolff, 33 anos, é jovem, mas maduro, sério, focado, gentil. E visionário. Percebeu que havia um potencial, um algo a mais que poderia ser explorado, que poderia ser interessante para a família, para o negócio, para a natureza. O pai, Umberto, coronel recém-aposentado na Aeronáutica, administrador experiente, embarcou na proposta de Elisa e de Hugo, e os três mergulharam na fazenda.

Por três anos, Hugo ficou ao lado da mãe no Portal, acompanhando folha a folha dos atuais 37 mil pés de Coffea arabica, estudando cafés especiais e desenvolvendo a estratégia da marca. No dia a dia do jovem tenente não havia até então espaço para palavras como catuaí, sombreamento ou derriça. Então a solução foi se debruçar sobre os livros, ou melhor, sobre as xícaras. “Precisava saber o que temos nas mãos para não termos de nos sujeitar aos preços do mercado”, explica. Para tal, fez curso de barista com Emilio Rodrigues, da Casa do Barista (RJ), curso de barista e de torra com Isabela Raposeiras, do Coffee Lab (SP), curso de classificação na consultoria Grão Mestre (RJ) e Q-Grader com Bruno Souza, na Academia do Café (MG). Anos de dedicação.

Um pouco depois, a família comprou, em sociedade com Luiz Fernando Moraes e Silva, parceiro de muitos anos, a Fazenda Guanabara, bem ao lado, agregando à propriedade mais 50 mil pés de café. Passado o impulso inicial, Hugo foi ao Rio de Janeiro captar mais clientes para a marca e cuidar de outro projeto pessoal, e o pai assumiu seu posto. Hoje, é o casal quem está em Ibiraci, e o filho vai de tempos em tempos provar amostras e avaliar cada talhão e suas possibilidades.

e41_fazenda-portal-da-serra_04

Hugo avalia meticulosamente os cafés após torrá-los com a ajuda de sua mãe, Elisa.

e41_fazenda-portal-da-serra_03

Refazendo o cafezal
Adquirir conhecimento, no entanto, não foi a única arma da família. “A sensibilidade também é uma forma de inteligência”, defende Hugo. Para ele, a natureza sinaliza aquilo de que precisa. E isso ficou ainda mais claro para ele na recuperação da lavoura que está realizando agora. As heranças de uma gestão cujo foco era produzir muito café foram o descuido e o uso excessivo de adubos e de insumos químicos, que enfraqueceram os cafeeiros. O resgate começou então pela nutrição das plantas e pela correção do solo, e os pés estão aos poucos se refazendo, se fortalecendo. “Porém, para restaurar o cafezal, a dedicação é maior. Essa alavanca demanda custo e investimento, além disso, não podemos ter pressa”, explica Hugo. Segundo o produtor, as datas de adubação têm regularidade importante para a planta e não adianta jogar hormônio para apressar as coisas ou aumentar a produtividade. “Quando há um processo natural, a resposta é natural. Queremos que a planta se recupere no tempo dela.”

O conceito, aparentemente intuitivo, tem respaldo científico. Além das visitas à Embrapa de São Sebastião do Paraíso (MG) e à Universidade Federal de Lavras (Lavras, MG), eles contam com a consultoria do agrônomo Norton Bertoldi, do Emater – MG (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Minas Gerais), que tem orientado cada passo do manejo dos cafezais. “Ele não estava acostumado a ver uma produção como a nossa; mesmo assim, abraçou a causa e nos ajuda muito. Sabemos que temos potencial e, sem esse apoio técnico, o produtor rural fica na mão”, acredita Hugo.

Colheita tardia
Um dos grandes temores de boa parte dos cafeicultores é a fermentação que acomete as frutas do cafeeiro, deixando-as com um terrível sabor avinagrado. Esquece-se, no entanto, que, se controlada, a maturação avançada pode ser boa, agregando à bebida mais doçura e aromas e sabores mais complexos. Esse é o princípio do qual partiu Hugo Wolff quando decidiu que só utilizaria os frutos “boias” (aqueles que amadurecem no pé, passando do estágio cereja) em seus cafés de qualidade. “Aqui o nosso melhor café é o boia, o passa. São as bebidas que alcançaram as melhores notas sensoriais”, explica o produtor. A família ainda está estudando o ponto ideal no pé para colher, pois o fruto não pode secar totalmente. Mas a segurança de que o café não vai fermentar se deve ao terroir da fazenda. A propriedade fica em uma região limítrofe entre a Mogiana Paulista (SP), o Cerrado Mineiro e o sul de Minas, pertinho de Franca (SP), Pedregulho (SP) e Delfinópolis (MG). O planalto, com terrenos de altitude entre 1.235 m e 1.267 m, tem uma bela vista para o Lago do Peixoto e o Parque da Serra da Canastra. Cerca de 60% da propriedade é composta de mata nativa, árvores que geram sombra para alguns cafeeiros e protegem uma rica fauna.

As baixas temperaturas, com média anual entre 17ºC e 22ºC, e a baixa umidade (a 800 quilômetros do mar), com poucos períodos de chuva, ajudam e muito o projeto de colheita tardia de Hugo. Seus melhores cafés até agora são os que ficam no talhão que ele chama de “pedra”, por duas razões, segundo o produtor: o solo naturalmente mais pedregoso, com maior presença de minerais, e a posição dos cafeeiros, que recebem mais vento, o que ameniza o calor direto do sol. Aquela parte da fazenda, por sua topografia acidentada, passa por colheita manual (derriça). Mais para cima e em toda a Fazenda Guanabara, a colheita é mecanizada, um privilégio em um terreno com mais de 1.200 m de altitude.

e41_fazenda-portal-da-serra_05

Vista do Lago do Peixoto e, ao fundo, a Serra da Canastra, que se pode apreciar do alto da fazenda.

Corrida contra o tempo
Para Hugo, quando se tira o café do pé, começa-se uma corrida para não perder a qualidade. “Não devemos interferir, pois dificilmente o homem consegue agregar muitas características. É a nossa forma de ver, a nossa relação com a natureza”, explica Hugo. Essa pouca interferência não significa, porém, desleixo. Longe disso. Optou-se ali pelo processamento conhecido como natural, ou seja, o fruto sai do pé e vai para o terreiro. Antes, as bolotinhas passam por um lavador para a separação entre boias, as cerejas e os verdes. Os boias que mais prometem vão para terreiros suspensos, onde há mais controle da secagem, em camadas bem finas, e onde ficam por cerca de dez a 25 dias.

As extensas mesas, com 40 metros de comprimento e 4 metros de largura, foram projetadas por Hugo, de acordo com o que pensou ser necessário para um trabalho que exigiria muitas mexidas por dia (chegam a ser de quinze em quinze minutos em alguns casos), e para uma secagem mais lenta, que valorizasse as características de seus cafés, especialmente a doçura. A superfície das mesas é de nylon, que evita as ferrugens típicas das telas e a invasão de aromas indesejados, já que o plástico é inerte. Ao cair da noite, os cocos de café são religiosamente cobertos pela lona, que os protege do orvalho. Detalhes que podem afetar a qualidade da bebida mais à frente. Esse modo cauteloso de secar o café causou burburinho entre os cafeicultores da região. “Fala para o menino Hugo não mexer nisso não. Ele vai falir o pai dele e não vai conseguir nada”, alertou um produtor local, quase em tom de ameaça. “Ficamos assustados com essa postura, mas estamos tendo sucesso, e o mérito é todo do Hugo”, conta, orgulhosa, Elisa. “Estamos fazendo algo totalmente novo, quebrando paradigmas, faz parte”, pondera Hugo.

Estranhamente bom
O que dita os procedimentos seguidos na fazenda são as experiências do dia a dia. “Não temos referência, pois aqui em Ibiraci não há tradição em cafés de qualidade. Temos de encontrar nossos caminhos para esse terroir”, explica Hugo. Uma das expertises que a família já adquiriu é que as variedades catuaí vermelho e mundo novo são as que trazem melhores resultados. Mas há novos testes a caminho com variedades como obatã vermelho.

Além dos talhões marcados e dos lotes processados separadamente, as torras meticulosas (feitas por Hugo e Elisa) e as provas constantes durante a secagem nas mesas ajudam a perceber nuances e tomar novas decisões. Por vezes, a secagem dos cafés é finalizada no terreiro do pátio, onde ficam por um ou dois dias, de acordo com o clima e o grau de maturação do lote. Não menos cuidado que as mesas, o pátio possui superfície de cimento usinado (que mantém a temperatura mais baixa para não aquecer excessivamente o café) e muretas cobertas com tinta contra umidade.

Todo esse esforço está sendo compensado. “Levamos o café da nossa 1ª safra para a Cocapec (Cooperativa de Cafeicultores e Agropecuaristas), em Franca, e ficamos torcendo. Quando falaram que o café estava estritamente mole, foi uma festa. Nem eles entenderam, acharam estranho um café de Ibiraci tão bom”, lembra. Depois, um grande amigo, o advogado Gilberto Florêncio, sugeriu aos Wolff que levassem uma amostra para a barista Isabela Raposeiras, em São Paulo. Com a avaliação da expert em cafés de qualidade, uma constatação: o café tinha 86 pontos. “Foi outra festa!”

“Queremos fazer café com artesanalidade, como joia. É trabalhoso, mas é uma forma de respeitar a natureza, preservando a fauna, a flora, as nascentes”, explica Umberto. “Nossa ideia é deixar um legado. O que levamos dessa terra? Nada. Mas podemos deixar algo.”

e41_fazenda-portal-da-serra_07

Os cafés secam em terreiros suspensos projetados pela família e são mexidos de 20 em 20 minutos durante o dia por Elisa.

Vida na fazenda
A família Wolff não tem o que reclamar de sua vida campestre. Além de tocar os cafezais, desfrutam de delícias feitas no forno a lenha. Uma delas é o pão de queijo (foto abaixo), receita centenária de uma moradora da região da Serra da Canastra (MG), a bisavó do advogado Gilberto Florêncio Faria. Ele mesmo, um grande amigo dos Wolff, prepara de tempos em tempos o quitute ali.

e41_fazenda-portal-da-serra_06

Ficha técnica*

Fazendas Portal da Serra e Guanabara
Localização Ibiraci (MG)
Região limítrofe entre Cerrado Mineiro, sul de Minas e Mogiana Paulista
Altitude média 1.235 m a 1.267 m
Extensão do cafezal 28 hectares – Portal da Serra (12 ha) / Guanabara (16 ha)
Número de cafeeiros 87 mil plantas – Portal da Serra (37 mil) / Guanabara (50 mil)
Colheita manual (derriça) e mecanizada
Processamento natural
Secagem pátio e terreiros suspensos
Porcentual dos tipos 100% arábica Variedades catuaí vermelho e mundo novo
Mais informações www.wolffcafe.com.br

(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso [em 2013] – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).

TEXTO Giuliana Bastos • FOTO Érico Hiller

Deixe seu comentário