Cafezal

Um novo robusta

Fazendas do Espírito Santo mostram que é possível produzir conilon com qualidades sensoriais

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Paisagem das montanhas do Espírito Santo, onde há produtores apostando no conilon especial.

Conhecido como a ovelha negra dos apreciadores de cafés especiais, o café robusta é um tipo de grão com material genético menos complexo, que resulta em bebidas com notas sensoriais menos atraentes, com presença de amargor, menos doçura, menos acidez e salinidade. Como não resulta em xícaras tão adocicadas, geralmente é utilizado como “tempero”, para dar acabamento a blends e bebidas cafeinadas. Também conhecido como conilon (ambos são variedades da espécie Coffea canephora), ganhou essa má fama no mundo dos cafés gourmets não apenas por sua tipicidade, mas pela maneira como é cultivado e tratado após a colheita. Sem cuidados, acaba chegando ao consumidor com características ainda piores, comprovando o preconceito estabelecido.

Há cerca de cinco anos, um pequeno grupo de pessoas está tentando mudar o rumo dessa prosa. E está conseguindo. Trata-se do projeto Conilon Especial, capitaneado pela Conilon Brasil, uma empresa focada no treinamento e na difusão de conhecimento sobre o tema, que também presta consultoria para cafeicultores. O grupo conta com o apoio do Incaper (Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural), das secretarias municipais e estadual de agricultura do Espírito Santo e de alguns cafeicultores que estão acreditando nessa nova fase do robusta. A meta? Mostrar aos produtores de café do Espírito Santo, do restante do Brasil e, quiçá, do mundo, todo o potencial desse tipo de grão quando selecionado geneticamente e cultivado adequadamente.

O grão verde cultivado e tratado adequadamente.

O grão verde cultivado e tratado adequadamente.

Herança de gosto amargo
O desafio dessa turma não é pequeno. O Espírito Santo é atualmente o maior produtor de café robusta do País e o maior produtor em área plantada do mundo. No entanto, o conilon, variedade descoberta pelos agricultores da região há cerca de quarenta anos, é desenvolvido desde então com o foco apenas na produtividade e esse modus operandi parece estar cercado por uma muralha difícil de ser derrubada.

Entenda-se aqui por um cultivo focado na produtividade aquele em que a planta, que já é naturalmente mais resistente, é criada como uma criança na rua, que acaba se virando sozinha. Em geral, o cafezal não é podado nem adubado, não passa por manejo do mato, por controle de pragas e de doenças e é pouco irrigado. Essa maneira de tocar a lavoura, herdada dos primeiros cafeicultores de robusta dali, é também um estímulo para o uso maior de aditivos químicos, fertilizantes e agrotóxicos. A colheita é feita antes de o fruto estar maduro; ele é deixado no terreiro sem cuidados, recebendo umidade excessiva, que costuma causar fermentação. Depois todos os grãos vão para um secador de lenha direta, ambiente que chega a atingir 300ºC. E aí, mesmo aquele vermelhinho que estava doce no pé, depois de passar por tantas intempéries, ficará com o mesmo gosto de fumaça e cinzas, adstringência da fermentação e sensação medicinal e de sujeira na boca que os outros. Esse é um retrato da produção tradicional no Estado. Um café de baixa qualidade, utilizado pela grande indústria para compor blends, café instantâneo, café em sachês, refrigerantes e energéticos.

O casal Laurindo Bride, de 87 anos, e Ághata Loss Bride, de 83 anos, produtor da região.

O casal Laurindo Bride, de 87 anos, e Ághata Loss Bride, de 83 anos, produtor da região.

Nadando contra a corrente
Como, então, convencer o produtor de café de que isso tudo está errado se esse lote malcuidado, que perdeu grande parte de suas características, é comercializado com a facilidade de quem vende água no deserto? Como mostrar que isso é ruim para ele, para a natureza e para o consumidor? “Esse café tem muita liquidez. O mercado compra mesmo com um monte de defeitos, torra tudo bem escuro e vende para o consumidor”, explica Marcelo Cortelletti, proprietário do Sítio Boa Sorte (em Santa Tereza), que possui 70 mil plantas de conilon.

Marcelo é um dos que estão nadando contra a corrente. Começou a ouvir aquela história de café de qualidade em um grupo de que participa, a Associação dos Produtores Rurais do Rio Perdido. A entidade, que reúne 66 pequenos produtores da região norte do Estado, começou uma parceria há cerca de quatro anos com a Conilon Brasil para orientar produtores como Marcelo.

Acima, viveiro onde os clones mais avançados são reproduzidos para a venda; plantações consorciadas com bananeiras, coqueiros e mamoeiros são típicas na região.

Acima, viveiro onde os clones mais avançados são reproduzidos para a venda; plantações consorciadas com bananeiras, coqueiros e mamoeiros são típicas na região.

Como parte do trabalho, que ainda está na fase de conscientização dos cafeicultores, a empresa, com sedes em Jaguaré e em Vitória, promove a cada quinze dias cursos e palestras sobre qualidade do café, além de provas de qualificação em R-Grader (que capacita classificadores e degustadores a provar e avaliar os robustas de qualidade). “A ideia é focar no produtor, para que ele entenda que a forma de produzir o café influencia diretamente na bebida. Se não há cuidados, a xícara perde sabor, doçura, acidez e potencializa a salinidade”, explica Arthur Fiorotti, um dos sócios da empresa.

Em um laboratório bem equipado, Arthur e sua equipe fazem análises de cafés, realizam degustações e oferecem orientação aos cafeicultores. “O cafeicultor tem apenas que manter a qualidade que o grão já tem no pé”, explica Romário Gava Ferrão, pesquisador do Incaper. Doutor em genética e melhoramento de plantas, estuda há 28 anos o tema e é o coordenador estadual do programa de cafeicultura. Para ele, a solução é simples. Por isso, desenvolveu uma cartilha, com os 10 mandamentos para produzir o conilon de qualidade, distribuída gratuitamente aos produtores.

Os frutos podem atingir tamanhos de peneiras altas.

Os frutos podem atingir tamanhos de peneiras altas.

Alguns meses depois da primeira conversa com a Conilon, Marcelo já passou a colher os frutos apenas bem maduros, a fazer uma separação mais criteriosa e aperfeiçoar a secagem. Antes Marcelo levava apenas 22 horas para secar o café e já vendia o lote. Hoje leva em torno de 46 horas. “Tem de ter uma atenção muito maior, é um trabalho mais dedicado”, conta. Dois anos depois, Marcelo não se arrepende: já teve 68% do investimento feito pago apenas com a primeira safra.

Seu compadre Luís Carlos Gomes, de 57 anos, também faz parte da associação e está no mesmo movimento. “Estamos começando a ter uma ligação com o consumidor, o nosso café está deixando de ser apenas uma commodity”, diz. Luís acompanha de perto a produção e apresenta com orgulho cada cafeeiro de sua plantação. “A ideia é melhorar a condição da planta, fazer poda, adubar de forma diferente. Além do cuidado na secagem do café, que faço em terreiro suspenso para ventilar por cima e por baixo”, explica. Chamam atenção também a estufa sobre o terreiro. “Para proteger da chuva e do sereno, pois trabalhar a céu aberto tem umidade alta, muito orvalho”, diz. Ele planta café desde 1999. Hoje se orgulha do café que produz e enche o peito ao oferecê-lo às visitas.

“Na associação, conversamos muito com os outros produtores, mas é uma luta inglória, pois não se conhece ainda o conilon especial. O custo também é um entrave. É preciso investir em equipamentos, secador com fornalha de forno indireto, mas há opções mais baratas, que não requerem estrutura muito sofisticada”, conta Luís. Ele tem consciência das dificuldades de encarar essa novidade. Mas sabe que não há por onde escapar. “A qualidade é um caminho sem volta. No momento, remunera melhor os cafeicultores. Mas, num futuro não muito distante, vai significar a permanência deles no mercado”, acredita Ênio Bergoli, secretário de Estado da Agricultura, Abastecimento, Aquicultura e Pesca do Espírito Santo.

Arthur Fiorotti e Marcelo Cortelletti analisam café no terreiro suspenso de Luís Carlos Gomes (a esquerda).

Arthur Fiorotti e Marcelo Cortelletti analisam café no terreiro suspenso de Luís Carlos Gomes (a esquerda).

Resultado no bolso e na xícara
Esse empenho, ao final, é recompensado. O valor agregado no preço da saca pode ser de 12,5% a 15%. Uma saca de R$ 280 pode passar a R$ 340. Sem contar as várias portas no mercado externo que já estão abertas, à espera dessa produção. “Existe uma limitação de suprimento de arábica, por isso, há muitas empresas fazendo testes com robustas de qualidade”, explica Arthur Fiorotti. Há ainda um estímulo (moral e financeiro) para quem aposta no novo formato. “Já temos concursos estadual, regionais e municipais de qualidade de conilon, com remuneração adicional para os cafés que se destacam. E, no ano passado, foram realizados os primeiros embarques em escala de conilon de qualidade para o exterior”, explica o secretário Ênio Bergoli.

Essa mudança, que se propõe profunda para o mercado de café, também poderá ser notada pelos consumidores. A produção de conilon especial cria uma série de possibilidades para o apreciador de café, que terá, em breve, a chance de consumir mais blends feitos apenas de grãos qualificados (arábicas e robustas). A Espresso provou o café produzido por Luís Gomes, considerado um café de cerca de 80 pontos, índice bem alto para um café 100% robusta. E notamos aroma doce, com toque de amêndoas, boa doçura, bom corpo, baixa acidez, e salinidade de média para baixa, bastante equilibrado. Uma boa surpresa.

“Há um preconceito muito grande com o blend, mas quem ganha é o consumidor”, defende Evair de Melo, do Incaper. “E só estamos começando. Assim foi com o vinho californiano no início, o da Austrália, o do Vale do São Francisco. E agora são uma realidade. Não existe verdade absoluta. Há muitas coisas para ser encontradas.”

Luís Carlos Gomes, do Sítio São Bento, acredita, porém, que o mais importante é a satisfação pessoal do produtor de café. Todo o esforço, o investimento, a dedicação de mais horas de atenção e cuidados à lavoura e à pós-colheita valem mais quando o cliente gosta da bebida. “Não existe prazer maior que este: alguém tomar a segunda xícara do nosso café”, diz.

Terreiro com estufa onde o café fica protegido da umidade do ar.

Terreiro com estufa onde o café fica protegido da umidade do ar.

Ficha técnica
Sítio São Bento
Localização Santa Tereza (ES)
Região Vales e Serras de Santa Tereza, norte do Espírito Santo
Altitude média 540 m a 820 m
Extensão do cafezal 127 hectares
Número de cafeeiros 350 mil plantas
Colheita seletiva
Processamento natural e cereja descascado
Secagem pátio e terreiros suspensos
Porcentual dos tipos 25% conilon e 75% arábica
Variedades clones de Vitória, e outros selecionados no próprio sítio, como conilon amarelo (espontâneo)

MAIS INFORMAÇÕES www.incaper.es.gov.br

(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).

TEXTO Giuliana Bastos • FOTO Guilherme Gomes

Cafezal

É mineiro empreendedor

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A linda época da florada na região, os cuppings, as histórias dos produtores e os passeios pelas fazendas são algumas das atrações da viagem à origem: a Harvest Celebration.

A região do Cerrado investe em projeto ousado de mostrar a atitude dos cafeicultores na busca da qualidade do grão no dia a dia

Quantidade. Volume. Tecnologia. Por esse tripé a região do Cerrado Mineiro é muito conhecida. Qualidade. Microrregiões. Diferentes sabores. Essa é a recente meta que vem movimentando cafeicultores, agrônomos e empresários locais. O novo Cerrado Mineiro é formado por jovens empreendedores que encontraram no café com valor agregado um grande aliado para a fase de mudança por que a região vem passando.

Pioneiros na Denominação Geográfica de Café, conquistada em 2005, o selo deu ao produto o status de padrão e sabor únicos. Porém, hoje o investimento está sendo feito em diferentes perfis de café, com bebidas de características distintas e grãos que contam a história de cada produtor e fazenda.

O Cerrado Mineiro começou a produzir café somente nos anos 1970 quando produtores de outras regiões, devido a dificuldades climáticas, passaram a buscar outras áreas para o plantio. O investimento em novas técnicas agrícolas de irrigação e colheita passou a ser o sucesso local, que avançou rapidamente como uma referência no setor cafeeiro.

Esse passo à frente em tecnologia e produtividade deu à região status de potência, mas não necessariamente, à época, de qualidade. Em busca de um reposicionamento, o Cerrado Mineiro passou então a conectar os jovens que trabalhavam no setor e recriou sua identidade: Café Produzido com Atitude. Encabeçado pela Federação dos Cafeicultores do Cerrado o novo projeto tem como base mostrar que os cafés têm práticas sustentáveis, têm a Indicação Geográfica e, por fim, a qualidade, com a cara do produtor que os cultiva.

Com o intuito de colocar um holofote sobre o trabalho que vem sendo realizado, recentemente a Federação criou uma viagem à origem para que torrefadores e formadores de opinião pudessem conhecer mais sobre a região composta de 55 municípios e 4.500 produtores de café. A revista Espresso acompanhou a primeira experiência e pôde conhecer de perto o que vem sendo feito por produtores e técnicos locais para celebrar a colheita dessa safra.

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A etapa final da viagem é marcada por um café nas montanhas da microrregião de Serra Negra.

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À direita, o barista Igor Salles e o produtor Ruvaldo Delarisse.

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Pesquisa e certificação
A primeira parada foi na Fazenda Epamig – Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais – onde fica uma lavoura de 60 hectares de café com variedades diversas para testes e um banco de germoplasma. Estávamos na época da florada, quando os cafezais ficam repletos de flores brancas e, claro, muitas abelhas. O foco da fazenda hoje é a alta tecnologia e a qualidade. Segundo Juliano Tarabal, diretor de Marketing da Federação, “o local é o maior em pesquisa do Estado, com área típica de Cerrado e com técnicas de irrigação e adubação muito desenvolvidas, além de testes de variedades novas, como a catiguá, que está despontando em produtividade e qualidade”. Ali próximo à área de plantio há o Centro de Excelência do Café da Região do Cerrado Mineiro, onde os cafés são provados de forma profissional em laboratórios.

Hoje, ao contrário de anos passados, o Cerrado Mineiro encontrou potencial ao trabalhar as principais microrregiões, que são dezenas, e que podem ser subdivididas ainda em terroirs mais específicos. Na prova dos cafés é possível perceber as diferentes características sensoriais que são determinadas, entre outras coisas, por microclima, solo, altitude e processamento do café.

Quem está se beneficiando dessa nova fase do Cerrado Mineiro é a família de Mario Lucio Donizete dos Reis, que há dez anos trabalha com café, e que, junto a outros setenta produtores, faz parte do Assentamento de São Pedro, de quinze hectares por família, na microrregião de Esmeril. Os produtores são certificados, na sua maioria, por programas como o Rainforest Alliance, Fairtrade, Certifica Minas, e participam de capacitações do Sebrae, promovidas pelo projeto Educampo.

O produtor Mario Lucio revela ser “apaixonado por café”. Trabalham na lavoura ele, o pai, a mãe e um irmão. A colheita é 100% mecanizada, com a produção de até 45 sacas por ano. Nesta safra, é a primeira vez que ele participa de um prêmio, o da própria Região do Cerrado Mineiro (ver o boxe nesta página). Os cafeicultores se organizaram na Associação dos Pequenos Produtores do Cerrado (APPCER), em 2010, devido à demanda por cafés certificados de compradores e para melhorar a qualidade e conseguir valores melhores para o grupo. Em 2012 foram 10 mil sacas de café vendidas por este sistema, com 55 produtores associados.

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Uma paisagem típica do Cerrado.

Duas décadas
Mas nem só de pequenos produtores vive o Cerrado Mineiro. Cafezais extensos a perder de vista são o que mais se vê nesta região. Para eles é preciso montar uma estrutura enorme de atendimento à exportação. Por isso, hoje, um braço importante local é a Cooperativa dos Cafeicultores do Cerrado (Expocaccer), com capacidade para armazenar 800 mil sacas. O armazém é um mundo de grãos de café, com muitas divisões e logística integrada da fazenda aos locais de transporte – parte primordial para garantir a entrega do produto na ponta final. Com vinte anos de atuação, a cooperativa possui uma linha de produção ininterrupta localizada em Patrocínio (MG) – o maior produtor de café do Brasil, com uma área de 35 mil hectares.

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Mario Lucio e Zilá dos Reis são produtores de café há dez anos, na Fazenda Engenho Velho, na microrregião de Esmeril.

Do chapadão para o mundo
Um grande ícone desta região quando se fala em café de qualidade é o premiado produtor Ruvaldo Delarisse. Ao sair do Paraná há trinta anos com a família, o cafeicultor encontrou na próspera microrregião do Chapadão de Ferro solo vulcânico e 1.300 metros de altitude. Lá plantou 125 hectares de café e produz natural e cereja descascado, em 4.500 sacas beneficiadas. Já finalista do Cup of Excellence – o principal concurso internacional de café – Ruvaldo é tímido e guarda segredo dos seus testes pela lavoura. Tem mais de trinta certificados que pendura com carinho na casa da fazenda, atestando a qualidade: “Fazer café uma vez é uma coisa, por dez anos é outra”, ele diz. As variedades mundo novo, catuaí e topázio produzem a maior parte de café de qualidade, que ele identifica e personaliza para cada cliente. “A gente está sempre aprendendo”. Um dos seus sonhos foi alcançado neste ano: que seu café atingisse a pontuação acima de 85. No concurso chegou a 91 pontos e ele ganhou o primeiro lugar na categoria natural.

Uma das características da microrregião é a maturação mais lenta do café no pé, em comparação com outros locais. Na época da colheita, Ruvaldo conta com dez pessoas que trabalham na fazenda na colheita mecanizada. Mesmo assim, seu custo médio por saca é alto, de R$ 300, mas com esse investimento em qualidade ele consegue vender seu produto 50% acima do preço de mercado. Uma das cafeterias brasileiras que têm parceria com ele é a Lucca Cafés Especiais, que há anos vende seu blend nas lojas do Paraná. Do Chapadão de Ferro para o mundo. Objetivo mais do que alcançado.

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Parte dos produtores da Associação dos Pequenos Produtores do Cerrado (Appcer), formada em 2010

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Provadores internacionais realizam cupping no Centro de Excelência.

Inédito: Prêmio para a qualidade
O Primeiro Prêmio da Região do Cerrado Mineiro teve como tema a Celebração da Colheita Safra 2013/2014 e escolheu a sede de Uberlândia por ser uma das 55 cidades que compõem a Indicação Geográfica da Região do Cerrado Mineiro. Organizada pela Federação dos Cafeicultores do Cerrado, em parceria com o Sebrae, a classificação dos melhores lotes de café levou em conta os aspectos elegância, singularidade e intensidade nas categorias natural e cereja descascado, e seguiu os critérios Ética e Rastreabilidade, que avaliam e pontuam por meio de auditoria a estrutura da fazenda produtora. Das 220 amostras recebidas, de vinte cidades, foram premiados seis produtores, três de cada categoria. No Natural, o campeão foi Ruvaldo Delarisse (foto à esquerda), do município de Patrocínio (MG). Em segundo lugar ficou Hélio Tutida e em terceiro a Coopcaf. Já na categoria Cereja Descascado, venceu em primeiro lugar Lúcio Gondim Velloso (foto à direita). Em segundo lugar Tomás Eliodoro e, em terceiro, Eduardo Pinheiro Campos. Os cafés terão uma comunicação diferenciada na saca, com um selo da região produzido especialmente para integrar essas embalagens, sacas e os materiais de apoio e divulgação do cafeicultor.

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Ficha técnica*

Região Cerrado Mineiro, Minas Gerais
Produtores: 4.500
Produção anual: 5 milhões de sacas
Área total de cultivo: 170 mil hectares
Municípios produtores: 55
Algumas das Microrregiões: Patrocínio (Chapadão de Ferro, Boa Vista, Macaúba e Esmeril); Araguari; Monte Carmelo; Serra do Salitre; Carmo de Paranaíba; Coromandel; Campos Altos; Araxá.
Mais informações www.cerradomineiro.org

TEXTO Mariana Proença • FOTO Cupping: Luciana Santos / outras: Marcelo Andrê

Cafezal

Você sabe o que faz um caçador de café?

Como são treinados os coffee hunters, os superespecialistas que percorrem as fazendas brasileiras em busca de grãos especiais

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Especialista Ensei Neto analisa café distribuído no terreiro do Rancho São Benedito; à esquerda, cafezal próximo à casa dos produtores.

Precisa-se de profissional com olfato e paladar aguçados, visão global, conhecimentos em botânica, química e geografia, boa condição física e, acima de tudo, paixão por uma boa xícara. Quem se candidata? Os superespecialistas em café, também conhecidos como coffee hunters (expressão em inglês para “caçadores de café”). O ofício, que já existe há cerca de dez anos nos Estados Unidos, está ganhando força no Brasil, acompanhando o crescimento do mercado de cafés especiais.

As duas preciosidades, os experts e os grãos, estão diretamente relacionadas. “O mercado no Brasil está se ampliando e se consolidando, é natural que haja uma procura maior por profissionais de visão holística”, explica Ensei Neto, que oferece um treinamento exclusivo para esses conhecedores. Ele conta que no início a profissão era vista como exótica, mas que frequentemente fazia um percurso similar para apresentar nossa produção de cafés a grupos de estrangeiros em busca de grãos com características peculiares.

Aos poucos, a demanda foi tomando forma. Mais apreciadores consumindo cafés únicos, mais baristas estudando a melhor forma de prepará-los, mais proprietários de cafeterias desenvolvendo blends próprios, mais produtores torrando seu próprio café e tendo de entender esse outro lado da cadeia produtiva do café, com o qual nunca haviam se deparado. Um ciclo positivo para todos os profissionais envolvidos no setor. Uma área que, no Brasil, é responsável por mais de 50 milhões de sacas. Sorte dos superespecialistas em café, que têm todo um universo para explorar a poucos quilômetros de distância. Sorte dos consumidores, carentes de informações e de grãos que proporcionem experiências únicas.

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Sérgio Junqueira Dias, proprietário do Sítio Canaã State Coffee, em Carmo de Minas (MG).

Botina no pé e bússola na mão

Com a consolidação, uma dificuldade: de qual fonte beber? Mais uma vez um passo atrás, mas sempre em frente, o mercado brasileiro buscou referência fora. Ensei conta que alguns de seus amigos, especialistas de outros países, começaram a ser reconhecidos como coffee hunters por apresentarem uma formação profissional bastante completa, com conhecimentos em engenharia, biologia, gastronomia e que, para se aprofundarem, passavam anos em fazendas vivenciando o dia a dia do cafeicultor. “Eles conseguiram assim adquirir uma visão como a de águia, de voo panorâmico, ao mesmo tempo entendendo onde e como cada peça se encaixa, com um sentimento claro do que os consumidores querem”, explica Ensei.

Esse é o mote do treinamento desenvolvido pelo especialista. O “coaching” inclui visitas técnicas a fazendas e armazéns, discussões, além de provas, torra e avaliação de cafés em laboratórios. É um intensivão que acontece apenas uma vez ao ano, com sete dias de campo escolhidos a dedo entre junho e julho, temporada de colheita no Brasil. Na segunda fase, os alunos ficam cinco dias mergulhados em laboratório para a torra, prova e análise dos grãos no Centro de Preparação de Café, do Sindicafé-SP. “É intenso, mas vale a pena”, afirma André Almeida, de 32 anos, responsável pela compra de cafés da Cafeteria do Museu, em Santos. “Não estou acostumado a visitar fazendas e, com o treinamento, pude ter acesso a esse outro lado e passei a entender a lógica da produção de qualidade e investir mais na oferta desse tipo de café.”

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Grupo de alunos estuda atentamente as características topográficas do Rancho São Benedito, em Dom Viçoso (MG), em visita com o proprietário Márcio Heleno Junqueira.

Virada na carreira

A experiência, no entanto, não vale para qualquer um. São centenas de quilômetros percorridos, centenas de horas de visitas a fazendas sob sol escaldante, dezenas de frutinhas provadas no pé (incluindo algumas não tão prazerosas) e muitas, muitas xícaras de café. Além da boa vontade, é necessário um conhecimento aprofundado, que inclui a identificação de componentes geográficos e sua influência no desenvolvimento do grão, além das diferentes etapas do processamento do café – da escolha da variedade ao ponto de torra ideal para cada lote.

Os agrônomos acabam se dando bem, mas a carreira pode ser um caminho interessante também para baristas, cafeicultores, degustadores, classificadores, entre outros. No mercado internacional, por exemplo, há mestres de torra que, na procura por cafés especialíssimos para suas torrefações, acabam aprofundando tanto seus conhecimentos no tema que já são considerados coffee hunters.

Proprietários de cafeterias também são bem-vindos. É o caso de Rodrigo Menezes Ramos, do Ateliê do Grão, em Goiânia. Para oferecer mesclas exclusivas focadas em microlotes, o empresário investiu em pesquisa e, de tempos em tempos, parte em direção a pequenas propriedades de café. Um exemplo é o Grand Cru Volcano, um catuaí de origem vulcânica, da região do Cerrado Mineiro. Em seu rótulo, informações como a origem, o nome do produtor e até a latitude do cafezal. Todo esse esmero é o resultado de dois elementos: a paixão de Rodrigo pelo café – segundo ele, quase equivalente à que tem pelo Corinthians – e tudo o que apreendeu no curso de Ensei.

Também dono de uma cafeteria, a Genot Cafés Especiais, em Natal (RN), Paulo Guillén é outro que está transitando de aficionado para especialista. “É a segunda edição do curso de que participo e tem me ajudado muito a perceber a qualidade e a encontrar os perfis dos lotes que quero oferecer”, diz. Ele conta que, além de aprender a degustar, o projeto Coffee Hunters “impulsiona o trabalho com cafés especiais, pois possibilita um contato direto com o produtor”.

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Vista panorâmica da Fazenda Sertão, em Carmo de Minas (MG), terra fértil para analisar o posicionamento dos cafezais.

Qualidade possível

Participar desse dia a dia com o cafeicultor faz toda a diferença. Nas visitas às fazendas, vão-se os livros e as apostilas e esse conhecimento se torna uma realidade compreensível. Foi o que aconteceu na visita ao Rancho São Benedito, em Dom Viçoso, Sul de Minas. Todos na premiada fazenda, focada na produção de cafés especiais, estavam aflitos. A preocupação com a chuva que se aproximava era evidente. A equipe chegou pela manhã à fazenda, ainda ensolarada. Mas o céu começava a escurecer. “Sinal de colheita complicada”, explica Ensei.

Deu tempo, no entanto de seguir em direção ao cafezal, apinhado de bourbons e catucaís em cereja, lindas, docinhas, mas ainda no pé, à espera dos colhedores. No terreiro, um lote já estava secando. Termômetro em punho, Ensei aproveita para explicar sobre a temperatura mais adequada para os pátios. Sorte: o grupo sai ileso e termina a visita antes de a chuva chegar.

Na visita ao Sítio Canaã, lição importante já na entrada, onde um terreiro exibia um pequeno lote de café secando e exalando aromas agradáveis. “Tudo o que é bom cheira ao que é”, crava Ensei. Um pouco depois, o grupo estava degustando e se surpreendendo com o café na sala de prova da fazenda. Na Fazenda Sertão, uma oportunidade interessante: conhecer um dos terreiros mais altos do Brasil, cuja ventilação e faceamento para o sol foram temas de algumas conversas ao longo do dia. “Café top, raro, caro se trata com carinho”, brinca o produtor Francisco Izidro Dias Pereira, cuja fazenda está entre as mais premiadas do País.

Após as visitas, um tempinho para descansar, jantar, uma rodada de espressos e filtrados em cafeterias próximas e, de volta ao hotel, hora do chamado Fórum Noturno. A reunião em torno do tema preferido do grupo é uma espécie de avaliação do que se apreendeu no dia. Apesar do cansaço, as ideias e conclusões do que se viu parecem fervilhar. Diferentemente das visitas, onde os alunos estão apenas observando e perguntando, a conversa é o momento em que se pode falar, trocar ideias, compartilhar outras experiências e referências externas. Um filme que aborda o tema tratado, um caso que aconteceu em outra região, uma safra que enfrentou o mesmo problema da atual.

É o momento também de definir a agenda dos próximos dias. A viagem seguiria para a cidade de Jacarezinho, o Norte Pioneiro do Paraná, mas essa visita teve de ser cancelada por causa das fortes chuvas que atingiram o local durante aquele período. Intempéries típicas do trabalho agrícola e da vida em meio à natureza. O jeito foi seguir para a Fazenda Palmares, em Amparo (SP), e para a Fazenda Santa Margarida, onde os experts acompanharam de perto o trabalho que Mariano Martins está desenvolvendo para lavar seus cafés à moda da América Central. Alguns meses depois, a oportunidade de torrar e provar alguns dos cafés vistos no pé. E mais alguns sentidos são explorados. Mais conhecimentos adquiridos e a conclusão de que a experiência foi apenas um dos muitos passos para se tornar um coffee hunter. Mas valeu.

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Francisco Isidro Dias Pereira, proprietário da Fazenda Sertão, uma das mais premiadas da região de Carmo.

O que um superespecialista em café deve saber?

• A influência dos componentes geográficos e dos processos de produção na xícara
• Reconhecer as diferentes variedades de cafeeiros e seus frutos, suas características agronômicas e fisiológicas, e potencialidades para a qualidade da bebida
• Compreender os impactos dos diferentes tipos de secagem de café na xícara
• Compreender critérios para escolher os processos de seleção dos grãos de café (por tamanho e formato, por densidade e por cor)
• Identificar os principais defeitos e problemas de natureza intrínseca e extrínseca
• Torrar, avaliar e desvendar potencialidades de cada lote de café
• Compreender as curvas de torra padrão para cada lote
• Desenvolver diferentes perfis de torra para cada lote
• Estimar os efeitos na xícara devido às características do grão, do processo industrial e do tipo de extração.

Os 10 mandamentos do coffee hunter

1. Amarás o café sobre todas as coisas
2. Não terás medo de ficar horas a fio sob sol de rachar ou sob chuvas torrenciais
3. Acharás divertido analisar fotoperíodos, ciclos fenológicos e cartas psicrométricas (que indicam as propriedades do ar, como temperatura, umidade e ponto de orvalho)
4. Gostarás de chupar a frutinha do café no pé para perceber quais são seus açúcares predominantes (frutose, glicose ou sacarose)
5. Terás orgulho de olhar o fruto no cafeeiro e descobrir de que variedade ele é
6. Olharás feio para quem pisar no café do terreiro
7. Descobrirás quais defeitos o café apresenta antes de degustá-lo
8. Torrarás o café artesanalmente, sem deixá-lo escuro e brilhoso
9. Apreciarás o café em todos os preparos, dos modernos, como Hario V60, Chemex e aeropress, até os clássicos e tradicionais
10. Degustarás cafés sempre hiperconcentrado, percebendo todas as suas características, inclusive os métodos de processamento pelos quais passaram

Ficha técnica*

Fazenda Rancho São Benedito
Localização Dom Viçoso, Minas Gerais
Microrregião Serra da Mantiqueira
Região Sul de Minas
Altitude média 1.120 metros
Colheita seletiva
Processamento natural e cereja descascado
Secagem terreiros tradicionais pavimentados e de chão
Variedades bourbon vermelho e amarelo, catucaí vermelho e amarelo, acaiá vermelho

Fazenda Sítio Canaã Estate Coffee
Localização Carmo de Minas, Minas Gerais
Microrregião Serra da Mantiqueira
Região Sul de Minas
Altitude média 1.000 metros
Colheita seletiva
Processamento natural
Secagem terreiros tradicionais de chão
Variedade bourbon amarelo

Fazenda Fazenda Sertão
Localização Carmo de Minas, Minas Gerais
Microrregião Serra da Mantiqueira
Região Sul de Minas
Altitude média entre 1.200 e 1.450 metros
Colheita seletiva
Processamento natural e cereja descascado
Secagem terreiros tradicionais de chão
Variedades bourbon amarelo, acaiá e catuaí amarelo

Fazenda Fazenda Sertão
Localização Carmo de Minas, Minas Gerais
Microrregião Serra da Mantiqueira
Região Sul de Minas
Altitude média entre 1.200 e 1.450 metros
Colheita seletiva
Processamento natural e cereja descascado
Secagem terreiros tradicionais de chão
Variedades bourbon amarelo, acaiá e catuaí amarelo

(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso [em 2013] – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).

TEXTO Giuliana Bastos • FOTO Ivan Padovani

Cafezal

Lavoura em foco

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Robson Silva colhe frutos maduros de cafezal que está sendo recuperado.

A família Wolff centra esforços nos pés de café de suas fazendas em Ibiraci (MG) e alcança grãos de alta qualidade

Engana-se quem pensa que agricultura é uma ciência exata. Sim, há os momentos em que as dosagens dos adubos e as distâncias entre os pés têm de ser precisas, dias em que é necessário fazer gestão de custos, controlar milimetricamente a umidade dos grãos no terreiro, além da incerta previsão de produtividade de cada planta. Um balaio de cálculos aqui e ali.

Nas fazendas Portal da Serra e Guanabara, localizadas em Ibiraci (no sul de Minas Gerais), os números, no entanto, perderam importância. A intuição, a sensibilidade e um ânimo singular para produzir cafés de qualidade movimentam o dia a dia das propriedades da família Wolff.

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Umberto em frente ao Portal da Serra.

Qualidade latente
O início dessa história é recente. Elisa Wolff, 55 anos, mãe de quatro rapazes, esposa de um coronel da Aeronáutica, já morou em mais de dez cidades, já venceu um câncer, já passou por muito nessa vida e queria apenas um pouco de paz. “Queria um pedacinho de terra agora que o Umberto [o marido] ia se aposentar”, explica. Sorte dos apreciadores de café. Há cerca de sete anos, ela e seu marido esbarraram na cidadezinha de Ibiraci, povoada por 12 mil habitantes, muitos deles vivendo do café. Os pais de Elisa já moravam por ali e seria bom estar por perto. Primeiro veio a Fazenda Portal da Serra, cujo cafezal andava sofrido. Para quem não tinha pretensões, parecia mais do que suficiente.

Nem tanto. Entre os quatro filhos, tinha um rapaz obstinado, saído havia pouco da Marinha, após dez anos navegando por lá. Hugo Wolff, 33 anos, é jovem, mas maduro, sério, focado, gentil. E visionário. Percebeu que havia um potencial, um algo a mais que poderia ser explorado, que poderia ser interessante para a família, para o negócio, para a natureza. O pai, Umberto, coronel recém-aposentado na Aeronáutica, administrador experiente, embarcou na proposta de Elisa e de Hugo, e os três mergulharam na fazenda.

Por três anos, Hugo ficou ao lado da mãe no Portal, acompanhando folha a folha dos atuais 37 mil pés de Coffea arabica, estudando cafés especiais e desenvolvendo a estratégia da marca. No dia a dia do jovem tenente não havia até então espaço para palavras como catuaí, sombreamento ou derriça. Então a solução foi se debruçar sobre os livros, ou melhor, sobre as xícaras. “Precisava saber o que temos nas mãos para não termos de nos sujeitar aos preços do mercado”, explica. Para tal, fez curso de barista com Emilio Rodrigues, da Casa do Barista (RJ), curso de barista e de torra com Isabela Raposeiras, do Coffee Lab (SP), curso de classificação na consultoria Grão Mestre (RJ) e Q-Grader com Bruno Souza, na Academia do Café (MG). Anos de dedicação.

Um pouco depois, a família comprou, em sociedade com Luiz Fernando Moraes e Silva, parceiro de muitos anos, a Fazenda Guanabara, bem ao lado, agregando à propriedade mais 50 mil pés de café. Passado o impulso inicial, Hugo foi ao Rio de Janeiro captar mais clientes para a marca e cuidar de outro projeto pessoal, e o pai assumiu seu posto. Hoje, é o casal quem está em Ibiraci, e o filho vai de tempos em tempos provar amostras e avaliar cada talhão e suas possibilidades.

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Hugo avalia meticulosamente os cafés após torrá-los com a ajuda de sua mãe, Elisa.

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Refazendo o cafezal
Adquirir conhecimento, no entanto, não foi a única arma da família. “A sensibilidade também é uma forma de inteligência”, defende Hugo. Para ele, a natureza sinaliza aquilo de que precisa. E isso ficou ainda mais claro para ele na recuperação da lavoura que está realizando agora. As heranças de uma gestão cujo foco era produzir muito café foram o descuido e o uso excessivo de adubos e de insumos químicos, que enfraqueceram os cafeeiros. O resgate começou então pela nutrição das plantas e pela correção do solo, e os pés estão aos poucos se refazendo, se fortalecendo. “Porém, para restaurar o cafezal, a dedicação é maior. Essa alavanca demanda custo e investimento, além disso, não podemos ter pressa”, explica Hugo. Segundo o produtor, as datas de adubação têm regularidade importante para a planta e não adianta jogar hormônio para apressar as coisas ou aumentar a produtividade. “Quando há um processo natural, a resposta é natural. Queremos que a planta se recupere no tempo dela.”

O conceito, aparentemente intuitivo, tem respaldo científico. Além das visitas à Embrapa de São Sebastião do Paraíso (MG) e à Universidade Federal de Lavras (Lavras, MG), eles contam com a consultoria do agrônomo Norton Bertoldi, do Emater – MG (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Minas Gerais), que tem orientado cada passo do manejo dos cafezais. “Ele não estava acostumado a ver uma produção como a nossa; mesmo assim, abraçou a causa e nos ajuda muito. Sabemos que temos potencial e, sem esse apoio técnico, o produtor rural fica na mão”, acredita Hugo.

Colheita tardia
Um dos grandes temores de boa parte dos cafeicultores é a fermentação que acomete as frutas do cafeeiro, deixando-as com um terrível sabor avinagrado. Esquece-se, no entanto, que, se controlada, a maturação avançada pode ser boa, agregando à bebida mais doçura e aromas e sabores mais complexos. Esse é o princípio do qual partiu Hugo Wolff quando decidiu que só utilizaria os frutos “boias” (aqueles que amadurecem no pé, passando do estágio cereja) em seus cafés de qualidade. “Aqui o nosso melhor café é o boia, o passa. São as bebidas que alcançaram as melhores notas sensoriais”, explica o produtor. A família ainda está estudando o ponto ideal no pé para colher, pois o fruto não pode secar totalmente. Mas a segurança de que o café não vai fermentar se deve ao terroir da fazenda. A propriedade fica em uma região limítrofe entre a Mogiana Paulista (SP), o Cerrado Mineiro e o sul de Minas, pertinho de Franca (SP), Pedregulho (SP) e Delfinópolis (MG). O planalto, com terrenos de altitude entre 1.235 m e 1.267 m, tem uma bela vista para o Lago do Peixoto e o Parque da Serra da Canastra. Cerca de 60% da propriedade é composta de mata nativa, árvores que geram sombra para alguns cafeeiros e protegem uma rica fauna.

As baixas temperaturas, com média anual entre 17ºC e 22ºC, e a baixa umidade (a 800 quilômetros do mar), com poucos períodos de chuva, ajudam e muito o projeto de colheita tardia de Hugo. Seus melhores cafés até agora são os que ficam no talhão que ele chama de “pedra”, por duas razões, segundo o produtor: o solo naturalmente mais pedregoso, com maior presença de minerais, e a posição dos cafeeiros, que recebem mais vento, o que ameniza o calor direto do sol. Aquela parte da fazenda, por sua topografia acidentada, passa por colheita manual (derriça). Mais para cima e em toda a Fazenda Guanabara, a colheita é mecanizada, um privilégio em um terreno com mais de 1.200 m de altitude.

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Vista do Lago do Peixoto e, ao fundo, a Serra da Canastra, que se pode apreciar do alto da fazenda.

Corrida contra o tempo
Para Hugo, quando se tira o café do pé, começa-se uma corrida para não perder a qualidade. “Não devemos interferir, pois dificilmente o homem consegue agregar muitas características. É a nossa forma de ver, a nossa relação com a natureza”, explica Hugo. Essa pouca interferência não significa, porém, desleixo. Longe disso. Optou-se ali pelo processamento conhecido como natural, ou seja, o fruto sai do pé e vai para o terreiro. Antes, as bolotinhas passam por um lavador para a separação entre boias, as cerejas e os verdes. Os boias que mais prometem vão para terreiros suspensos, onde há mais controle da secagem, em camadas bem finas, e onde ficam por cerca de dez a 25 dias.

As extensas mesas, com 40 metros de comprimento e 4 metros de largura, foram projetadas por Hugo, de acordo com o que pensou ser necessário para um trabalho que exigiria muitas mexidas por dia (chegam a ser de quinze em quinze minutos em alguns casos), e para uma secagem mais lenta, que valorizasse as características de seus cafés, especialmente a doçura. A superfície das mesas é de nylon, que evita as ferrugens típicas das telas e a invasão de aromas indesejados, já que o plástico é inerte. Ao cair da noite, os cocos de café são religiosamente cobertos pela lona, que os protege do orvalho. Detalhes que podem afetar a qualidade da bebida mais à frente. Esse modo cauteloso de secar o café causou burburinho entre os cafeicultores da região. “Fala para o menino Hugo não mexer nisso não. Ele vai falir o pai dele e não vai conseguir nada”, alertou um produtor local, quase em tom de ameaça. “Ficamos assustados com essa postura, mas estamos tendo sucesso, e o mérito é todo do Hugo”, conta, orgulhosa, Elisa. “Estamos fazendo algo totalmente novo, quebrando paradigmas, faz parte”, pondera Hugo.

Estranhamente bom
O que dita os procedimentos seguidos na fazenda são as experiências do dia a dia. “Não temos referência, pois aqui em Ibiraci não há tradição em cafés de qualidade. Temos de encontrar nossos caminhos para esse terroir”, explica Hugo. Uma das expertises que a família já adquiriu é que as variedades catuaí vermelho e mundo novo são as que trazem melhores resultados. Mas há novos testes a caminho com variedades como obatã vermelho.

Além dos talhões marcados e dos lotes processados separadamente, as torras meticulosas (feitas por Hugo e Elisa) e as provas constantes durante a secagem nas mesas ajudam a perceber nuances e tomar novas decisões. Por vezes, a secagem dos cafés é finalizada no terreiro do pátio, onde ficam por um ou dois dias, de acordo com o clima e o grau de maturação do lote. Não menos cuidado que as mesas, o pátio possui superfície de cimento usinado (que mantém a temperatura mais baixa para não aquecer excessivamente o café) e muretas cobertas com tinta contra umidade.

Todo esse esforço está sendo compensado. “Levamos o café da nossa 1ª safra para a Cocapec (Cooperativa de Cafeicultores e Agropecuaristas), em Franca, e ficamos torcendo. Quando falaram que o café estava estritamente mole, foi uma festa. Nem eles entenderam, acharam estranho um café de Ibiraci tão bom”, lembra. Depois, um grande amigo, o advogado Gilberto Florêncio, sugeriu aos Wolff que levassem uma amostra para a barista Isabela Raposeiras, em São Paulo. Com a avaliação da expert em cafés de qualidade, uma constatação: o café tinha 86 pontos. “Foi outra festa!”

“Queremos fazer café com artesanalidade, como joia. É trabalhoso, mas é uma forma de respeitar a natureza, preservando a fauna, a flora, as nascentes”, explica Umberto. “Nossa ideia é deixar um legado. O que levamos dessa terra? Nada. Mas podemos deixar algo.”

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Os cafés secam em terreiros suspensos projetados pela família e são mexidos de 20 em 20 minutos durante o dia por Elisa.

Vida na fazenda
A família Wolff não tem o que reclamar de sua vida campestre. Além de tocar os cafezais, desfrutam de delícias feitas no forno a lenha. Uma delas é o pão de queijo (foto abaixo), receita centenária de uma moradora da região da Serra da Canastra (MG), a bisavó do advogado Gilberto Florêncio Faria. Ele mesmo, um grande amigo dos Wolff, prepara de tempos em tempos o quitute ali.

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Ficha técnica*

Fazendas Portal da Serra e Guanabara
Localização Ibiraci (MG)
Região limítrofe entre Cerrado Mineiro, sul de Minas e Mogiana Paulista
Altitude média 1.235 m a 1.267 m
Extensão do cafezal 28 hectares – Portal da Serra (12 ha) / Guanabara (16 ha)
Número de cafeeiros 87 mil plantas – Portal da Serra (37 mil) / Guanabara (50 mil)
Colheita manual (derriça) e mecanizada
Processamento natural
Secagem pátio e terreiros suspensos
Porcentual dos tipos 100% arábica Variedades catuaí vermelho e mundo novo
Mais informações www.wolffcafe.com.br

(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso [em 2013] – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).

TEXTO Giuliana Bastos • FOTO Érico Hiller

Cafezal

Movida a café

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No interior paulistano, uma antiga região brilha com o trabalho da sexta geração da família Martins. Próxima à antiga estrada de ferro Sorocabana, a Santa Margarida vive jovem e forte

Uma casa de mais de 120 anos. Uma lavoura de 42 anos. Um trisavô fundador. Jovens em torno de 30 anos. Uma colheitadeira nova, 7.200 sacas colhidas, 39 sacas por hectare. Fazenda Santa Margarida: uma antiga região de plantio de café e hoje palco de grandes mudanças. Com esses inúmeros contrastes e uma mistura de novo e velho é que se é recebido na propriedade da família Martins, em São Manuel, Sorocabana, interior de São Paulo. O tempo todo teorias são contestadas: equipamentos tradicionais de beneficiamento de café ajudam nos desafios de experimentar as novas tendências de processamento do grão. Uma aula de ousadia, alguns podem pensar. Ou devaneios de jovens em busca de novos experimentos? Mariano Martins há nove anos assumiu a fazenda da família. Ele é a sexta geração. “Não tinha ideia do café que era produzido ali.” Com qualidade ou não, ele resolveu sair do banco onde trabalhava para assumir a empreitada. Devorou livros de agricultura e começou a fazer testes, muitos testes. Hoje anda com desenvoltura por entre cafezais, terreiros e tanques de fermentação. A região, a 280 quilômetros da capital paulista, não é das mais altas, tem 770 metros e, por ser um terreiro, comporta o uso de uma colheitadeira, que substituiu o trabalho de 200 pessoas, no passado. Hoje apenas dois funcionários passam colhendo, após o trabalho da máquina. Mariano conhece cada talhão da fazenda e faz o controle das variedades: catuaí vermelho e amarelo e mundo novo vermelho e amarelo. O controle vai desde a fermentação que o fruto sofre no pé até o microclima da região, estudado por mais de dois anos mensurando as temperaturas e os sombreamentos de árvores como jambolões e grevilhas. Uma barreira de eucaliptos ajuda a impedir a passagem do vento constante. A planta do café é muito sensível a temperaturas, ventos e outras intempéries e todo o cuidado é pouco. A consultoria do especialista Ensei Neto o ajudou a entender o potencial do café, as diferenças de sabores e processos do grão.

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Funcionário mexe o terreiro de café natural para ajudar na secagem dos frutos; equipamentos, como a colheitadeira azul ajudam o cafeicultor durante a safra.

Técnicas colombianas? Ali chove muito durante a colheita. Situação semelhante à da Colômbia, por exemplo. Tal fato ajudou Mariano a buscar informações de processos realizados em outros países para colher melhor o café e evitar a umidade no terreiro. Depois de muita pesquisa, começou a desenvolver as técnicas usadas em regiões da América Central: a lavagem do café em tanques por até 18 horas, controle do pH e temperatura da água. Para ver os resultados, prova o café e identifica as mudanças de cada processo no sabor da bebida. Minuto a minuto, de madrugada, o tempo todo é de dedicação ao café que sai da lavoura e entra no processo de lavagem e seca: “Estamos aprendendo e apanhando muito com esse café lavado”, revela. Mais da metade dos grãos verdes produzidos na Santa Margarida, em 2012, seguiam para exportação. Um terço é comercializado no mercado interno. Seguindo a linha da América Central e seus processos diferentes dos realizados aqui no Brasil, Mariano começou, há quatro anos a escolha do café verde no sistema de catação em uma bancada. Cinco mulheres trabalham na seleção manual do grão que foi colhido, processado e beneficiado. Com mãos e olhos atentos, as catadoras vão eliminando qualquer grão que apresente um defeito: quebrado, brocado, malformado ou até os muito pequenos. Uma verdadeira imersão em milhares de grãos de café que, pelas mãos habilidosas do quinteto, resultam em uma seleção criteriosa. A fazenda é enorme. São mais de 650 hectares, a casa-grande e ao longe muitas casinhas. “Aqui moravam 250 famílias, hoje são apenas quatro”, conta Mariano. Os tempos são outros. A mão de obra do café diminuiu, e os equipamentos avançaram muito. Hoje em dia, na época mais pesada da colheita, apenas 15 pessoas ajudam nos afazeres da lavoura. e39_fazenda_martins_03

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Região plana contribui para a colheita mecanizada. Mas parte da produção é colhida manualmente, de forma seletiva; o casal Mariano Martins e Fabíola Filinto, responsáveis pelo café.

Os modernos robôs Uma casa então se transformou no laboratório. Lá são testados e provados os grãos que passam por todo o processo na fazenda. Em contraste com a terra vermelha da propriedade, há muita tecnologia do lado de dentro das antigas construções. Lá começa outro mundo. Além da produção diária da fazenda, a família Martins resolveu criar uma marca própria de café. Isso há três anos. Após identificar que o café era de boa qualidade, que os processos podiam ser mudados e que o produto tinha bons resultados na xícara, Mariano se uniu a duas outras jovens empreendedoras, Maíra Lopes e Fabíola Filinto, e criou o Martins Café. Mas só um café especial para essa turma não era suficiente. Ele tinha que ter algo mais. Foi então que surgiu a ideia de trabalhar cafés com especiarias. Mas não qualquer uma, mas, sim, produtos naturais, vivos. Desenvolveram quatro tipos de café: anis, canela, noz-moscada e cardamomo. Com a consultoria do mixologista e barista Marco de La Roche foram testadas diferentes torras e quantidades de especiarias naturais para cada café. Então voltamos para a tecnologia da fazenda. Ali, no laboratório, Mariano realiza todos os diferentes perfis de torra no torrador norte-americano Diedrich, de 12 quilos. O brinquedinho é negócio sério e, de lá, saem os grãos torrados que depois serão moídos sob encomenda para os clientes e também adicionados às especiarias. O produto inovou o mercado de café. Tanto na proposta de ser um moído diferente, quanto na identificação do método de preparo – com moagens distintas para coado, french press, espresso –, e também na comunicação das embalagens. Robôs retrôs remetem ao antigo, ao mesmo tempo em que são figuras futuristas, presentes no nosso imaginário. “Desde o começo, queríamos algo que fosse moderno e ousado, no qual pudéssemos aplicar tudo o que tínhamos aprendido no mercado, mas que mantivesse um espírito tranquilo, de lugares onde a vida não passa tão rápido”, explica Mariano. Não podia ser diferente. Numa casa de 1890 com um pé-direito enorme, onde circulam ideias dentro de cabeças jovens e um ótimo produto na mão vive o café da Santa Margarida. “A primeira lembrança que tenho do meu avô, quando tinha cerca de quatro anos, é de ele me ensinando a beber café, para desespero de minha mãe. Lembro claramente dele respondendo: “Café está no sangue da família. Não adianta. Cedo ou tarde, ele vai ser movido a café.” E não é?

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À esquerda, mulheres catam e selecionam o grão verde em bancadas no laboratório da fazenda; ao lado, torrador usado para testes e para atender aos pedidos da marca própria.

Mundo novo amarelo A variedade mundo novo amarelo 4266 é parecida “fisicamente” com a mundo novo vermelho. Foi confundido por muito tempo por ali, entre tantos cafezais. Essa lavoura é remanescente da geada de 1975 e, claro, muito resistente. Esse talhão, hoje o único que recebe uma colheita seletiva na Santa Margarida é separado dos demais lotes, tem em sua carga genética muito do bourbon amarelo, e é uma variedade de ouro na cafeicultura, e, ainda, o melhor, com a produção alta. e39_fazenda_martins_06 A herança dos Martins A família Martins de Almeida começou a plantar café em 1823, na região de Vassouras (RJ). Victoriano Martins de Almeida, carpinteiro, comprou um sítio com dinheiro emprestado. Ao morrer, deixou seis fazendas para os filhos. Um deles, João Baptista, partiu para São Manuel (SP), à beira da estrada de ferro Sorocabana. Nascia a Santa Margarida, em 1890. A paixão pela fazenda era tanta, que, em testamento, foi indicada como tradição da família, devendo sempre ser passada para o filho mais promissor. Essa recomendação foi seguida e hoje ela é a última fazenda da família. O filho de João Baptista, Victor, continuou com o plantio de café. Já o neto, Victor Jr., avô de Mariano, pegou a grande geada de 1975, que matou todos os pés de café, com exceção de um talhão (veja o boxe na pág. 85). Quando o pai de Mariano, Milton, assumiu a fazenda, optou por retomar o cultivo de café, plantando novas lavouras e investindo em técnicas mais modernas. Mariano assumiu a fazenda quando o pai desistiu de “apanhar desse tal de café”. Desmotivado, Milton queria vender a fazenda, mas consultou o filho e lhe deu dois anos de prazo para mostrar o resultado. Após dobrar a produtividade por hectare e diminuir os custos, ele acredita que está no caminho certo. (texto adaptado de Mariano Martins)

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A jovem equipe do Martins Café: Maíra Lopes, Flávia Pogliani, Mariano Martins, Fabíola Filinto e Marcela Herz, em 2012

Ficha técnica*

Fazenda Santa Margarida Cidade São Manuel, SP Região Sorocabana Altitude 770 metros Fundação 1890 Proprietário Mariano Martins Área total 657 hectares Área de cafezais 180 hectares Cafeeiros 900 mil Sacas produzidas 7.200/ano Beneficiamento natural, cereja descascado e cereja lavado Variedades catuaí vermelho, catuaí amarelo, mundo novo vermelho e mundo novo amarelo (Essa reportagem foi publicada em 2012, na Revista Espresso)

TEXTO Mariana Proença • FOTO Guilherme Gomes

Cafezal

Natureza em alta

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Fazenda Ambiental Fortaleza reinventa maneira de se fazer café especial no Brasil e conquista mercado nacional e internacional

Cultivar café como os nossos avós faziam não é uma tarefa lá muito ecologicamente correta. A monocultura deixava a terra cansada, a água usada na irrigação da plantação e na lavagem do grão não era reutilizada e liberava resíduos danosos na natureza e a quantidade de insumos químicos e agrotóxicos era muito grande. Mas como produzir um bom café e ao mesmo tempo deixar uma boa pegada para as gerações futuras? A Fazenda Ambiental Fortaleza (FAF) parece estar encontrando a resposta.

Localizada na região paulista da Mogiana, entre as cidades de Mococa e Tapiratiba, a fazenda existe há 160 anos, sempre produzindo café. Maria Silvia Barretto herdou o local em 2003 e, ao lado de seu marido, Marcos Croce, resolveu encampar o projeto de tocá-la, mas com um novo olhar. “Só aceito assumir a fazenda se fizermos algo orgânico”, disse Silvia para Marcos, à época trader de grandes companhias norte-americanas. O casal e seus três filhos moravam nos Estados Unidos havia muitos anos, quando surgiu essa oportunidade de voltar ao Brasil.

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Daniel, Marcos e Felipe Croce, família unida na produção do café de qualidade.

Entorno valioso
Administrador pela Faculdade Getúlio Vargas, 63 anos, Marcos começou do começo. Tinha nas mãos uma fazenda de 800 hectares repletos de cafezais convencionais e uma produção de 6 mil sacas anuais, de qualidade apenas razoável. Pesquisou os arredores, visitou outros países produtores, mergulhou nesse universo. Então realizou um mapeamento de todo o terreno com a ajuda de uma equipe de engenheiros florestais. Foram encontrados 42 pontos de nascentes, árvores de mais de 80 espécies, mais de 200 tipos de aves e uma Mata Atlântica secundária e primária relativamente preservada.

Era o sinal de que ele precisava para definir qual caminho traçar. “Aqui não vou conseguir fazer grandes quantidades com a qualidade de café que desejamos. Mas, se eu construir uma história diferente, talvez mais pessoas possam desenvolver um trabalho parecido, seguindo o nosso modelo de fazenda sustentável”, explica. O primeiro passo foi diminuir a estrutura da fazenda. Reduziu radicalmente o número de equipamentos e de cafeeiros em mais de 80%. Assim, a produção passou a 600 sacas.

Os 100 hectares de cafezais são divididos em dois tipos. O orgânico ativo e o orgânico passivo. O ativo é aquele em que o cafeicultor participa de todos os momentos, da plantação da semente à adubação, poda etc. No caso da FAF, esses cafeeiros são parcialmente sombreados, e as ruas são intercaladas com árvores frutíferas, além de outros cultivos, como milho e feijão.

O cafezal orgânico passivo não é nada convencional. Caminha-se cerca de dez minutos mata adentro para encontrar um pé de café. A plantação não é daquelas “bonitonas”, de traçados geométricos e com plantas de um verde viçoso. Tudo é orgânico, ou seja, mirradinho, meio disforme, por vezes, estranho. “O que é bonito: o Jardim de Versailles ou a mãe-natureza?”, Marcos questiona. “Na Etiópia, vi pés de café com até 300 anos. Mas, para viver tanto, a planta tem de ser respeitada, não se pode exigir muito dela apenas para ficar bonita”, explica Marcos. A resposta está também nas xícaras. O café fica realmente especial, mais saudável e naturalmente doce.

Resultado também de um controle rigoroso desde o grau da doçura do fruto na árvore até a temperatura da secagem, acompanhada bem de perto em terreiros suspensos, que são utilizados também em algumas das 35 fazendas parceiras. A colheita é apenas seletiva, ou seja, fruto a fruto. “Chegamos a voltar até cinco vezes ao mesmo pé para pegar somente os frutos mais maduros”, explica. Mesmo assim, é muito menos desgastante para os “parceiros” que ajudam na tarefa, pois ela acontece na sombra, não requer escadas e o pagamento costuma ser mais abonado, já que o café especial tem valor agregado maior.

O reconhecimento desse esforço todo veio alguns anos depois que o casal começou a administrar. Em 2008, a fazenda ganhou o prêmio Sustainability Awards, da Specialty Coffee Association of America (SCAA). Atualmente, o café da FAF já é reconhecido como um dos melhores do País, sempre recebendo acima de 84 pontos, e está presente em cafeterias premiadas e restaurantes sofisticados. Além disso, 98% da produção da fazenda é vendida para torrefadoras internacionais, como TW (Dinamarca), de Tim Wendelboe, Seven Seeds (Melbourne, Austrália) e Blue Bottle (São Francisco, Estados Unidos), com sacas disputadas por vários compradores.

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Uma horta orgânica garante verduras e legumes para as refeições da fazenda.

Natural ou orgânico?
Quando um agricultor fala que produz café natural, geralmente ele quer dizer que o fruto vai direto do pé para o terreiro, para ser seco “naturalmente”. Na FAF é diferente. “Chamamos de natural o café que nasce na mata, uma planta que sofre a mínima interferência da mão do homem”, explica Marcos. As únicas intervenções feitas no processo natural de crescimento são: a plantação de outras árvores entre os pés de café para criar alguma sombra e a limpeza do solo para facilitar a colheita.

Com esse método, a plantação tem um impacto mínimo em seu entorno. “Na última safra, por exemplo, tivemos uma seca de quatro meses. O cafezal orgânico ativo, que não fica sob a sombra da mata, tivemos de irrigar todos os dias e ainda cortar o mato, passando enxada em cada pé. Mesmo assim, houve uma perda de 40%. No café da floresta não precisamos fazer nada”, conta. “A terra continuou úmida, as plantas ficaram bem e não houve espaço para o mato. A perda não chegou a 2%.”

E as pragas? O produtor afirma que não costuma ter problemas e pega uma folha para mostrar. “Está vendo aqui? Tem uma ferrugem pequena, mas ela está protegida por outro microorganismo e não vai avançar. A planta tem força para se defender. No caso da broca, a plantação orgânica sustentável dá espaço para o predador da broca também se desenvolver, por isso, ela não consegue se multiplicar”, explica. É a lógica da autorregulação da natureza.

Nó na cabeça
Laurindo Donizetti de Assis, responsável por toda a produção da fazenda, custou a entender que tudo o que se faz lá (e na vida) deixa rastros. “Levei quatro anos pra desfazer esse nó que deu na minha cabeça”, conta. Nascido na região, Laurindo trabalhava na FAF havia mais de 20 anos com o cultivo tradicional, quando foi surpreendido pela troca para o orgânico sustentável. Foi fazer um curso no IBD (Instituto Biodinâmico), em Bauru, mas eram muitas novidades para um agricultor velho de guerra. “Fiquei confuso e constrangido”, conta, explicando a razão de, logo em seguida, ter ido trabalhar em outro lugar. Alguns meses depois, algo se esclareceu na mente deste senhor sereno. “Fiz por muito tempo o trabalho convencional e acho bonito, moderno, mas em época de safra eu levantava às 5 horas e terminava às 23 horas. Gastava muita energia, porque ninguém consegue vencer tudo quanto é doença. A gente põe remédio para uma praga e aparece outra”, conta. “Percebi que havia algo errado.”

O caboclo, com toda a sua simplicidade, mas também esperteza, foi então pesquisar mais para entender o que era “essa história de orgânico”. “Vi que é tudo verdade e pedi para voltar para a FAF. Hoje não penso mais do modo convencional. O orgânico funciona, mas é preciso fazer tudo direitinho. Tem que cuidar da planta, tem que amar muito a natureza.”

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Tulhas reformadas e diminuídas para receber os microlotes; os tanques onde são estudados novos métodos de fermentação e a prova, momento decisivo para avaliar a qualidade dos grãos.

Sem medo de experimentar
Na FAF inovação é palavra de ordem. Vai desde a escolha das cultivares plantadas, até o modo de colher e secar, de beneficiar o grão e de estocá-lo para descansar.
Sim, há por ali alguns pés de bourbon vermelho e amarelo, mundo novo e catuaí (cultivares mais comuns entre os cafezais brasileiros), mas também há sumatras, pacamaras, javas, obatãs e tupis. “Buscamos bebidas de sabores diferentes e não grãos que produzem mais”, explica Felipe Croce, responsável pela qualidade do café.

E, para tal, não basta apostar apenas nas variedades. É preciso explorar outras possibilidades de processamentos, de secagem e de torra. E todas as fases da produção do café são pesquisadas e reinventadas ali. “Ainda estamos em processo para conseguir entender como influenciar o sabor, testando várias formas de lavar o café”, conta Felipe, mostrando dois tanques, nos quais faz experiências de fermentação de longos períodos, como acontece nos países da América Latina, com exceção do Brasil e do Equador, e em grande parte da África e na Ásia.

Em um deles estava um catuaí amarelo que já havia sido descascado, descansado por dez horas, lavado e deixado no tanque seco por mais dez horas. Depois, foi deixado “de molho” na água, fermentando por mais quinze horas e, por fim, levado ao terreiro suspenso para secar. Chamado de wet fermentation, esse processo é complexo e está em fase experimental. Por vezes, Felipe tem de aparecer no meio da madrugada para verificar como estão as coisas no tanque.

Todo esse cuidado e o conhecimento bastante aprofundado foram adquiridos por ele em experiências internacionais. Formado em Relações Internacionais na Universidade de Washington (EUA), o jovem de 28 anos já foi gerente da fazenda, estagiou com Tim Wendelboe, na Dinamarca, e trabalhou na torrefadora Kaldi’s, nos Estados Unidos. “Eles não respeitavam o grão brasileiro. Isso me mostrou que o nosso café tem de se destacar de alguma forma entre os de outros países, pois na mesa de cupping é com eles que estamos disputando espaço”, explica.

Além da fermentação “experimental”, a fazenda está praticamente dando adeus ao terreiro de cimento. O pátio, símbolo da cafeicultura brasileira, quase não é usado. Há seis anos os terreiros são suspensos e os resultados são claramente perceptíveis, segundo Felipe. “Conseguimos controlar de maneira mais rigorosa a temperatura da seca, sombreá-la para que seja mais lenta – alguns lotes chegam a ficar 14 dias secando – e assim já obtivemos cafés de notas muito superiores, com mais doçura, mais acidez e mais corpo”, finaliza.

Ficha técnica

Fazenda Ambiental Fortaleza
Localização entre as cidades de Mococa e Tapiratiba Região Mogiana Paulista
Altitude média 1.000 metros
Produção orgânica passiva e ativa
Colheita seletiva
Processamento natural, cereja descascado e lavado
Secagem terreiros suspensos

Variedades bourbon vermelho e amarelo, mundo novo, catuaí, sumatra, pacamara, java, obatã e tupi

(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso, em 2012 – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).

TEXTO Giuliana Bastos • FOTO Marcelo Liso

Cafezal

Terra fértil para o café

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O empreendedorismo de Arthur Moscofian Jr. transformou o solo degradado da Fazenda Santa Mônica, em Machado, no Sul de Minas, em terreno produtivo para os grãos de qualidade

Arthur Moscofian Jr. poderia não ter se tornado cafeicultor se tivesse se deixado abalar pelo que viu há exatos quarenta anos: a geada que dizimou os cafeeiros de seu pai, no Paraná, e diminuiu as extensões dessa lavoura no estado que encontrou ao longo do tempo outras vocações agrícolas. Na época, Arthur filho, como é chamado pela família, tinha apenas 15 anos de idade e acompanhar o pai de São Paulo ao Paraná era a grande viagem de sua vida. Não poderia supor que um dia rodaria o mundo.

Por teima, devoção a São Jorge (o santo protetor de toda a sua família, de origem armênia) ou espírito empreendedor, o produtor de cafés especiais alcançou altos índices de produtividade (80 sacas por hectare) e abre a porteira da Fazenda Santa Mônica, em Machado, no Sul de Minas, com o propósito de contar em detalhes como chegou a colher 5 mil sacas por safra de uma bebida que atinge em média 82 pontos – a Brazil Specialty Coffee Association (BSCA) classifica o café com pontuação acima de 80 na categoria especial. “Trabalho agora para alcançar os 90 pontos”, revela.

Os resultados que Arthur colhe agora são fruto de uma observação sagaz do passado, do emprego de tecnologia e de nenhum receio de ousadia. Há vinte anos, o produtor, que era dono de vários restaurantes em São Paulo, escutava sempre a mesma resposta quando perguntava aos clientes se haviam gostado do cardápio. “A comida é ótima, mas o café…”, diziam.

De tanto ouvir a mesma frase, Arthur decidiu ele próprio cuidar do café, do plantio à bebida que iria oferecer em seus restaurantes. “Embora estivesse em outro ramo, a família nunca abriu mão de se dedicar à agricultura, com plantações que iam do café à folha de uva para charutos”, comenta.

Para conseguir o café desejado, o produtor começou sua tarefa do zero. Adquiriu a propriedade em Machado – rebatizada de Fazenda Santa Mônica – sob olhares desconfiados. Afinal, o que queria ele com aquela terra de solo pobre e degradado, voltado para a pecuária leiteira e com poucos pés de cafés, velhos e malcuidados? “Eu queria o ‘terroir’ da região, que proporciona à bebida aroma intenso, açúcares e óleos essenciais”, explica.

Quanto ao intenso trabalho para pôr tudo no jeito, como desejava, a propriedade foi uma boa escolha, segundo ele. “Comecei do zero, mas com o projeto que imaginei”, conta o produtor que não teme grandes obras. No seu currículo de engenheiro civil (profissão que tocava paralelamente aos restaurantes) constam 620 construções entre pontes, escolas, hospitais e postos de saúde.

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Dividir para entender
Como havia planejado, o cafeicultor fez da Santa Mônica sua fazenda modelo ao começar a corrigir o solo em busca de fertilidade. Depois dividiu a propriedade em sete setores (a fim de ter um diagnóstico mais preciso do desempenho das áreas de lavoura) e escolheu as variedades mundo novo, catuaí amarelo e vermelho. Os pés são plantados no sistema semiadensado, com uma distância de 70 centímetros entre eles e espaçamento de 3,8 metros entre as ruas. Análises de solo e foliar são feitas duas vezes por ano para que o cafezal não seja surpreendido por um desequilíbrio nutricional.

Para que os cafeeiros se desenvolvessem e de certa maneira se blindassem contra a seca que castigou as regiões produtoras dessa cultura nos dois últimos anos, o produtor já havia implantado a fertirrigação – irrigação por gotejamento acompanhada de uma mistura de adubo e agroquímica.

O produtor adotou também o sistema safra zero, difundido nos dias de hoje, mas que na época não era bem-visto entre os cafeicultores tradicionais. Trata-se de uma técnica de poda da ponteira e das laterais dos cafezais após a colheita do ano da safra alta. Como se sabe, o café é marcado por sua bianualidade – um ano farto e outro mais fraco. Com o safra zero, implantado de forma alternada, os pés ficam um ano sem produzir, mas rendem o dobro no período seguinte, segundo ele. A intenção do produtor é aumentar a produtividade sem expandir a área. “Meta mesmo é continuar plantando cem frutíferas por ano para repovoar a área com pássaros, bugios e gatos-do-mato”, conta.

Para o ano que vem, ele planeja suspender a lavagem e separação de grãos da fazenda feita pelo lavador e usar apenas o seletor óptico, equipamento que separa os grãos cereja, verde e boia por meio do reconhecimento da cor deles. Conforme o produtor, a vantagem está na economia de água, na diminuição do tempo de secagem e na seleção perfeita dos grãos, o que influenciará na qualidade da bebida.

No entanto, todo esse modelo para alcançar cafezais produtivos e chegar à bebida desejada desembocou em outra vocação de Arthur Moscofian Jr. – o empreendedorismo. “Se eu precisava de um café especial para atender aos meus restaurantes, outros haviam de passar pelo mesmo”, comenta. Ao focar esse nicho de mercado, o produtor-empresário investiu em uma torrefação e hoje fornece para mais de 2 mil pontos de vendas entre restaurantes, cafés e padarias.

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Arthur quer tornar mais visível a produção de queijos da região

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Doce combina com café e é impossível resistir a parada na Reserva de Minas

Perto do cafezal
Arthur faz questão de aproximar seus clientes do campo. Com muita frequência, ele promove visitas à propriedade, quando não abre mão de mostrar os plantios, falar das técnicas de um jeito simples para a fácil compreensão de todos e reforçar que a fazenda só trabalha com o café ao natural, cujo grão seca com a casca, o que permite que os açúcares da polpa migrem para a semente. “Depois de seco e beneficiado, o café descansa até seguir para a torrefação ou exportação”, diz.

Cerca de 70% do café produzido pela fazenda tem o comércio internacional como destino (ele pretende dar início à venda de uma pequena parcela de café torrado em 2016) e os outros 30% ficam no mercado interno que, desde julho, passou a receber cápsulas do café Santa Mônica.

Os grãos da fazenda ficam guardados em big bags na Cooperativa Agrária de Machado (Coopama), na qual o produtor integra a lista de 1.800 cooperados, e aonde suas visitas também são levadas para um tour. “É importante que o cliente se dê conta de que existe uma rede até o café chegar ao estabelecimento dele. Ninguém faz nada nesta vida sozinho”, diz.

Arthur podia estar com o “burro amarrado na sombra” – ditado antigo para quem já alcançou uma vida confortável –, mas não consegue ter sossego. Ele procura disseminar suas ideias empreendedoras por potenciais negócios na cidade e que não necessariamente estão relacionados ao ramo da cafeicultura.

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Colheita mecanizada na propriedade, que tem área plantada de 96 hectares

Café com queijo
A amiga Albany Salles Dias não se arrepende do dia em que ela e o marido convidaram o cafeicultor e o pai dele (o Arthur pai) para almoçarem em sua casa. Na hora da sobremesa, ela serviu um doce de nata que costumava fazer com a sobra do leite da fazenda. Na mesma hora, pai e filho perguntaram por que ela não começava a vender aquela iguaria. “Fazia apenas para os de casa e não sabia reconhecer o potencial de receitas tradicionais”, conta.

Mas Albany prestou bem atenção no conselho dos amigos e aos poucos passou a comercializar os seus doces caseiros. Foi dessa forma que nasceu há dezoito anos a Reserva de Minas, que hoje conta com 4 mil pontos de venda em todo o País. O campeão continua sendo o doce de nata, mas tem também o de leite, o de frutas, a cocada, etc.

Hoje, quase toda a família está envolvida no negócio e a “pequena portinha” que montaram no Km 445 da BR 267 se tornou um empreendimento que conta agora com 108 funcionários, fábrica em processo de ampliação e posto de parada para os viajantes. “Passamos nossos dias aqui, neste pedaço doce”, diz Albany.

Agora, Arthur quer motivar os amigos da Cooperativa Regional de Produtores de Leite de Serrania (Corples), município vizinho a Machado, a tornar mais visível a produção de queijos, incluindo tipo parmesão, frescal, requeijão, manteiga e o próprio leite, para além das cercanias da cidade. “Os produtos são de excelente qualidade e não têm por que ficar conhecidos apenas por aqui”, comenta.

Segundo o diretor da cooperativa, João Batista de Figueiredo, os 350 produtores associados entregam, em média, 100 mil litros de leite por dia – 60% são direcionados para grandes laticínios e o restante é industrializado pela Corples. “Acho boa a ideia de nos mostrar mais ao mercado, pois estamos no ramo há 38 anos”, diz Figueiredo.

Para Arthur, basta que a cooperativa comece a participar de algumas exposições e até mesmo do próprio setor da cafeicultura. “É só juntar o café com o queijo, a mais deliciosa das combinações mineiras”, aconselha o cafeicultor, que às 5 da manhã já se encontra pronto para a lida.

Ficha técnica

FAZENDA Santa Mônica
LOCALIZAÇÃO Machado (MG)
REGIÃO Sul de Minas
ALTITUDE MÉDIA 1.000 metros
PRODUÇÃO ANUAL 5 mil sacas
ÁREA TOTAL 150 hectares
ÁREA PLANTADA 96 hectares
NÚMERO DE CAFEEIROS 432 mil
COLHEITA mecanizada
PROCESSAMENTO natural
SECAGEM terreiro (pátios de secagem) e secador mecânico
VARIEDADES mundo novo, catuaí vermelho e amarelo
CERTIFICAÇÕES UTZ Certified, Certifica Minas Café e Ascafea

(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).

TEXTO Janice Kiss • FOTO Alexia Santi, Agência Ophelia

Cafezal

Cerrado em cores

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Em Presidente Olegário (MG), a família Campos investe na produção de qualidade e se destaca no cenário do café

Enquanto a madeira estala no fogão a lenha, o cheiro de pão de queijo e café que preenche a casa na fazenda Dona Nenem, localizada em Presidente Olegário (MG), levanta até o mais preguiçoso da cama. Quem convida para uma xícara doce, de acidez cítrica, característica do grão do Cerrado, e um dedo de prosa é Renato Souza, degustador e coordenador administrativo na propriedade. Quando o assunto é cafeicultura, ele é o braço-direito de Eduardo Pinheiro Campos, engenheiro civil e dono da Dona Nenem e da fazenda vizinha, São João Grande, que, juntas, somam 622 hectares de área plantada com o grão.
Renato nos guia pelo cafezal e nos conta que Eduardo não poderá estar conosco desta vez. A falta sentida logo dá lugar a uma grande satisfação e orgulho. O empresário viajara para Trieste, na Itália, como parte da premiação que ganhou como Fornecedor do Ano, da illy. O reconhecimento é natural. O trabalho dedicado desempenhado nas duas propriedades não deixa dúvida de que o prêmio foi merecido. Eduardo herdou a terra e a paixão pelo café da família, que sempre trabalhou no campo. Em 1976, foi um dos pioneiros a investir na cafeicultura na fértil região do Cerrado, conseguindo aliar a produção ao cuidado com a natureza. Atualmente, o agronegócio café das fazendas é exemplo para o setor.

Caminho sustentável
“Houve uma mudança muito grande no modo de produzir desde aquela época até os dias de hoje. Em termos de sustentabilidade, temos reciclagem em tudo o que é possível. Os resíduos são vendidos e no fim até ganhamos com isso”, explica Renato. Algumas adequações caminharam juntas à chegada das certificações Rainforest Alliance e UTZ Certified, como a proteção de capim cercando os cafeeiros para evitar que a poeira da estrada prejudicasse as plantas. Modelo ambiental, as Áreas de Preservação Permanente (APPs) são respeitadas e todas as regras estipuladas pelo novo Código Florestal já foram cumpridas.
Além disso, paralelo à produção de café, a família Campos também cria cerca de 800 cabeças de gado nelore e tem tradição no trabalho com cavalos manga-larga marchador, com mais de 100 animais. Toda a palha do café, desde o lavador até a casca do beneficiamento, é misturada ao esterco dos bovinos para fazer a adubação orgânica do cafeeiro, o que diminui o custo e o uso de adubo nitrogenado, que, segundo o engenheiro agrônomo Alino Pereira Duarte, há vinte anos na Dona Nenem, prejudica a camada de ozônio.
O conceito de preservação segue por toda a produção e quem agradece é a seriema, o tatu, a jaguatirica e até o tamanduá, animais que circulam pelas fazendas, fazendo-se notar na plantação.

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Eduardo Campos Filho, cada vez mais interessado pelo café, conta que o pai não mede esforços para melhorar a produção

Eduardo Campos Filho, cada vez mais interessado pelo café, conta que o pai não mede esforços para melhorar a produção

Tecnologia
Ponto primordial para a produção de cafés de qualidade e o trabalho de conservação do ecossistema é o investimento em tecnologia. De acordo com o degustador Renato Souza, tudo é controlado. “Pensamos na eficiência tecnológica a favor da produção. Temos uma estação meteorológica que faz o controle da irrigação medindo os dados climáticos, e, em função disso, define-se a lâmina que será aplicada no cafezal. Desde 1976, o senhor Eduardo pensa em irrigação. Aqui no Cerrado isso é necessário. Para ter um bom café, é preciso irrigar”, diz ele. As tecnologias de irrigação para o café chegaram às propriedades de Presidente Olegário há quinze anos. Por lá, o processo é feito por pivô e gotejamento, mas mudanças estão sendo pensadas em busca de melhorias nos sistemas. “Nós estamos planejando uma mudança para a substituição de pivô por gotejo. Em oito ou dez anos você não vai mais ver pivô aqui”, detalha o engenheiro agrônomo Lázaro Seixas, há quinze anos nas fazendas. A substituição vem sendo pensada com cuidado, pois o investimento é alto, cerca de R$ 6 mil a R$ 7 mil por hectare. Ao mesmo tempo, com pivô a perda de água é maior, entre 70% e 80% em relação ao gotejo, processo que trará maior eficiência à produção. “Vale a pena! Fazendo com qualidade você consegue agregar no mínimo 10% mais valor ao café”, completa Renato.
Segundo o degustador, normalmente chove 100 milímetros em 24 de dezembro. “É certeiro”, ele conta. Neste ano choveu apenas 12 milímetros. A seca deste ano, que prejudicou várias regiões cafeeiras no País, não afetou tanto a Dona Nenem e a São João Grande, por causa da irrigação. Estima-se uma queda pequena de 10%.

Experimentos e resultados
Renato, que já passou pela Daterra Coffee, trouxe para as propriedades do senhor Eduardo a ideia de provar os cafés ao longo de todo o processo de produção. “Isso faz com que você direcione o processamento, indicando qual será o trabalho feito na hora, entre lavado, descascado, desmucilado ou natural, evitando perda”, explica. Entre as variedades cultivadas, estão mundo novo, catuaí vermelho, catucaí, bourbon amarelo e IBC 12. Por safra, são colhidas 35 mil sacas. Três colheitadeiras fazem o serviço, dividido com 100 funcionários fixos e 250 temporários. A produtividade por hectare é de 55 sacas, número considerado alto na região. “A porcentagem do nosso café colhido é de 98% de cereja”, comenta o engenheiro Alino, falando com orgulho do trabalho realizado pela equipe.
As inovações, o foco na qualidade e a busca por cafés excepcionais dentro de cada talhão, segundo Renato, têm resultado em reconhecimento. Prêmios e valores melhores por sacas de cafés especiais chegam a cada safra, como a primeira colocação no 10º Concurso de Qualidade dos Cafés de Minas Gerais, na categoria Cerrado Mineiro. As premiações e, claro, o sabor dos cafés produzidos ali, vêm despertando mais atenção internacional e também nacional. O trabalho sempre foi desenvolvido pensando na exportação. Japão, Estados Unidos, Suíça, Alemanha, Itália, África do Sul e França estão entre os principais compradores. A illy, parceira da Dona Nenem há doze anos, leva cerca de 25% da produção.
Os resultados positivos e a confiança de Eduardo no trabalho de Renato dão tranquilidade para o degustador experimentar e ousar na produção de cafés diferentes. Para esta safra, foram negociadas 320 sacas (1 contêiner) com um cliente da Austrália, de um trabalho distinto e deliciosamente interessante. Renato colocou o café da variedade bourbon amarelo, de 83 pontos na tabela da Specialty Coffee Association of America (SCAA), no tanque de fermentação em contato com capim-cidreira. “Eu gosto muito de capim-cidreira e resolvi fazer alguns testes. Acabou dando certo. A cidreira adiciona certo cítrico ao café. Os australianos vieram para uma visita e mostrei para eles. Eles ficaram loucos com o sabor, adoraram e acabaram comprando a ideia. Fiquei muito feliz”, conta, mostrando o tanque coberto pela erva. “Não tem problema mostrar isso, porque para copiar tem que fazer o trabalho que a gente faz aqui antes e depois desse momento”, completa.
De lá, seguimos para o beneficiamento, onde todo o processo é monitorado por câmeras. As imagens podem ser acessadas via internet pelo senhor Eduardo, que acompanha tudo mesmo distante. Os clientes internacionais também podem observar o trabalho via web. Eles veem o que está sendo feito no café que estão comprando e se sentem mais próximos dentro dessa cadeia.
Tendo alcançado um ponto de equilíbrio nas fazendas e a qualidade do café, o próximo passo é entrar no mercado de torra, como explica o filho de Eduardo, o engenheiro e empresário Eduardo Pinheiro Campos Filho. Apaixonado pelo gado e pelos cavalos, agora toma gosto também pelo café. “Estamos estudando bastante, estruturando a ideia de torra e também pensamos em expandir a área de lavoura para chegar a um melhor resultado econômico. O foco é sempre a qualidade”, diz. O investimento inicial, para começar a torrefação de 2% da produção, é de R$ 250 mil. Os primeiros resultados nesse sentido já poderão ser vistos na safra de 2014. “Tudo bem-feito na vida dá resultado e é isso que a gente espera. O meu pai é um grande exemplo. Se você fizer as coisas com vontade, vai longe”, diz Eduardo Filho.

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Ficha técnica

FAZENDAS Dona Nenem e São João Grande
LOCALIZAÇÃO Presidente Olegário (MG)
REGIÃO Cerrado Mineiro
ALTITUDE MÉDIA 1.020 a 1.080 metros
PRODUÇÃO ANUAL 35 mil sacas/safra
ÁREA TOTAL 1.098 mil hectares, somando as duas propriedades
ÁREA PLANTADA DE CAFÉ 622 hectares, somando as duas propriedades
NÚMERO DE CAFEEIROS 3.113 milhões, somando as duas propriedades
COLHEITA manual e mecanizada, final de maio a julho
PROCESSAMENTO lavado, descascado, desmucilado e natural
SECAGEM terreiro e secador mecânico
VARIEDADES mundo novo, catuaí vermelho, catucaí, bourbon amarelo, IBC 12 CERTIFICAÇÃO Rainforest Alliance e UTZ Certified

MAIS INFORMAÇÕES www.donanenem.com.br e www.facebook.com/cafedonanenem

(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).

TEXTO Hanny Guimarães • FOTO Alexia Santi / Agência Ophelia

Cafezal

Geisha: o mundo se curvou

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Um café com sabor de limão, aroma de flores e que não tinha valor nenhum hoje é um dos mais cobiçados. Fomos ao Panamá conhecer essa lenda descoberta somente há dez anos

O Geisha nasceu em berço africano, batizado com o nome da região da Etiópia em que foi descoberto: o povoado de Gesha, em 1931. Sem qualquer relação com a personagem japonesa, essa variedade de café, da espécie arábica, não imaginaria que sua história seria traçada com tanto destaque anos depois. Geisha é um dos cafés mais premiados no mundo e coleciona preços altíssimos de venda. Tudo isso só faz uma década. E no Panamá. Mas antes de chegar ao país da América Central, a variedade foi plantada na Costa Rica e não recebeu muita atenção. Somente em 1963, o cafeicultor Don Pachi, um panamenho que trabalhava no instituto de agronomia do país, recebeu a informação de que havia uma variedade pouco produtiva e com sabor estranho que estava na Costa Rica. Dispôs-se a plantar aquele cafeeiro e, não sabendo qual seria a produtividade da planta naquelas terras, também distribuiu algumas sementes a produtores conhecidos da região de Boquete, onde fica sua fazenda. Numa altitude de até 1.500 metros, clima úmido e terra fértil, o geisha foi produzido com muito cuidado. Da dedicação de Pachi nascia uma variedade de grão. Nas mãos de outros produtores, o geisha chegou à família Peterson, na mesma localidade, na fazenda La Esmeralda. Foi só em 2004 que, durante uma feira da Specialty Coffee Association of America (SCAA), o café foi provado em uma mesa com diversos outros. A reação dos provadores foi de desconfiança, depois de muita surpresa e admiração por aquela variedade que em nada se assemelhava a cafés provados anteriormente. Meses depois o café da La Esmeralda, de Price Peterson, era vendido a preços altíssimos, em torno de 21 dólares por somente 450 gramas. Esse café chegou a pontuar 94,6 na escala de 100 da SCAA. Até hoje a La Esmeralda é conhecida pelos cafés que mais recordes de preço alcançaram. Chegou a vender menos de 500 gramas de um microlote especial de geisha por 130 dólares.

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À esquerda, Peterson, da fazenda La Esmeralda recebe a comitiva de visitantes. Á direita e acima, Don Pachi e seu filho Francisco José Serracín, o Frank, mostram a plantação e o beneficiamento de cafés da fazenda Don Pachi

Qualidade e família Ao chegar à região de Boquete, veem-se muitas referências ao geisha. São cafeterias que vendem o produto e destacam a região pelo diferencial desse café. A variedade é uma planta de porte alto, de manejo complicado, e com baixo rendimento. Os grãos são de peneira alta e o sabor, muito diferente. Hoje o geisha é uma preciosidade na região. Durante a visita à fazenda Don Pachi, o solo negro, com muita matéria orgânica, chama atenção. Francisco José Serracín, filho de Don Pachi, é quem nos recebe junto ao pai. A administração da fazenda é feita por ele. Mais conhecido como Frank, ele nos mostra o trabalho de gerações no café, desde as podas até os estudos com um híbrido da variedade geisha, que eles vêm observando e já batizaram com o nome de “sapaton” ou “cucaracha”, pois tem grãos muito grandes. Don Pachi, aos 76 anos, com cinco filhos e nove netos, fala o tempo todo em qualidade e na sequência da família no café: “Nunca falei para os meus filhos continuarem na fazenda, mas meu filho hoje fala para os filhos dele sobre o futuro no café”. Essa virada aconteceu em 2005, quando Frank começou a mudar o negócio e passou a investir em microlotes: “Hoje, 85% dos nossos cafés são finos, vendemos para 27 países e para as grandes torrefações do mundo, como Intelligentsia, Seven Seeds, Klatch Coffee, e países como Japão, Taiwan, Dinamarca, Noruega…”. O processo lavado deu espaço para outros processamentos, como o natural e o cereja descascado com porcentagens diversas de mucilagem. A família investiu em despolpador e desmucilador e em camas africanas (terreiros suspensos) para secar o café a 1.650 metros de altitude. São 2 mil sacas por safra, que passam pelos cuidadosos processos do produtor, em nove variedades plantadas com sombreamento e em uma região muito íngreme. Don Pachi ainda sobe tranquilamente as montanhas em meio aos cafezais: “Mantemos uma fauna e flora equilibradas. Esperamos até cinco anos para começar a colher um café plantado; se isso é não ter fé, não ter esperança, não sei o que é. O produtor de café faz isso de maneira particular. Produzimos um grão que, acima de tudo, é saudável”.
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O Geisha é um dos cafés mais premiados no mundo e coleciona altíssimos preços de venda

Degustação Provar esses cafés foi um evento na redação da Espresso. Toda a equipe estava ansiosa por experimentar o famoso grão. Voltei com dois geishas na mala: Don Pachi Estate e Café Kotowa, ambos do Panamá. Convidamos a jornalista e colunista Cristiana Couto para participar também. No final, estávamos inebriados com os aromas e sabores diferentes que surgiram dessa inédita experiência. Preparamos nos métodos Chemex, aeropress e Hario V60. Um mergulho em novas sensações. Don Pachi Estate Geisha Natural: aroma de capim-santo, frutas amarelas, como carambola, e muito doce. Sabor delicado de cana-de-açúcar, mel e pitanga. Acidez média e aftertaste limpo, doce e agradável. A fazenda é a primeira produtora de geisha no país. Kotowa Coffee – Geisha Gourmet: aroma doce, erva-cidreira, alecrim e mel. Sabor de limão, acidez média-alta, finalização doce e leve. A marca tem cafeteria em Boquete, região cafeicultora. Palavra do especialista Kim Ossenblok, barista na Espanha: “Bom barista, bom geisha! Ganhamos um pacote de café no final da visita. Sorte a minha que tinha trazido aeropress e moinho manual e pude provar quando chegamos ao hotel. Uma experiência incrível. Don Pachi descreveu os sabores de abacaxi, pêssegos, uvas-passas, frutas cítricas e toques de jasmim. Adorei!”. O barista viajou a convite da Dalla Corte.

Ficha técnica

Região: Boquete, Chiriquí, a oeste do Panamá População: 22.435 habitantes Altitude das fazendas: de 1.200 a 1.600 metros Origem: povos indígenas de Ngöbe e Buglé. Os dois grupos foram a maior população indígena do Panamá e vivem em uma reserva conhecida como Comarca, em Chiriquí, região montanhosa de Talamanca. Ponto mais alto: Vulcão Barú (altitude 3.474 metros) Capital: Cidade do Panamá Produção anual de café (país): 100 mil sacas Mais informações: www.scap-panama.com (Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).

TEXTO Mariana Proença • FOTO Preparo: Roberto Seba/Café Editora -- Demais: Lucía Hernández e Mike Russell

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Aquarela mineira

Fazenda Mantissa

A Fazenda Mantissa, no Sul de Minas, mostra que produção de qualidade se faz com bons profissionais e natureza em equilíbrio.

Um lindo céu azul de anil. Foi ele que recebeu a nossa equipe na visita que fizemos à Fazenda Mantissa, na cidade de Campestre, Sul de Minas Gerais. Cercada por montanhas e verdes matas, a propriedade investe no cultivo de café desde 1998 e há cinco anos trabalha a marca própria para agregar valor ao grão, melhorar a qualidade e ser uma vitrine da produção. A fazenda faz parte dos negócios do Grupo Agro Fonte Alta, que em 1994 contratou o técnico agropecuário Evandro Vilas Boas de Carvalho, hoje responsável pela recepção dos cafés no pós-colheita, o benefício por via úmida, a secagem, o rebenefício e a classificação. Foi ele quem encontrou a área e disse para os sócios do grupo que ali seria um bom lugar para desenvolver a produção do grão. “Então, nós começamos a plantar os cafeeiros. Foram 200 mil pés e em 1998 começamos a operação e fomos expandindo até chegarmos às 580 mil plantas. Mudou muito”, conta ele.

Nascer do dia no Sul de Minas

Nascer do dia no Sul de Minas

Três anos depois, as colheitas começaram e Evandro, atento, percebeu que os cafés apresentavam notas de destaque. Correu para o grupo e disse que ali tinha coisa boa e que valia a pena investir. Com isso, toda a infraestrutura, desde o terreiro até os maquinários para processamento, secagem e benefício, foi renovada e com a chegada dos novos equipamentos o foco na qualidade se intensificou. A princípio, os grãos da Mantissa foram para uma cooperativa e, classificados, despertaram ainda mais interesse. “A partir daí a evolução foi natural e começamos a vender para a illy, ficando sempre entre os finalistas na premiação que eles fazem anualmente com os produtores, fornecedores da marca. Nós sabíamos que tínhamos um produto diferente”, diz Evandro.

José Roberto checa o termômetro instalado na lavoura. Ele conta com a ajuda da tecnologia para monitorar clima, incidência de chuva e altitude

José Roberto checa o termômetro instalado na lavoura. Ele conta com a ajuda da tecnologia para monitorar clima, incidência de chuva e altitude

Em harmonia O profissional é um dos elos que unem a forte cadeia de produção na fazenda. Ele está sempre conectado com o administrador José Roberto Silva – que hoje faz o trabalho que Evandro fazia na lavoura quando começou, entre controle de produção, gerenciamento de mão de obra, tratos culturais e fitossanitários – e com o supervisor de qualidade Leonardo Custódio dos Santos. A conversa entre esses três é um dos fatores que dão liga aos cafés Mantissa. “O que a gente tenta fazer é equilibrar a natureza. Ela tem seu curso próprio e é ela que dita o rumo que vamos dar ao café”, explica José Roberto. Para o plantio, Evandro optou por variedades mais resistentes a doenças e José Roberto dá continuidade ao trabalho. “A gente faz o mínimo possível de intervenção, fazendo o controle integrado, mapeando a lavoura para avaliar a incidência de praga e a necessidade de controle químico. Neste ano, por exemplo, não precisou”, afirma José Roberto,que está investindo cada vez mais na fertilização para diminuir a aplicação de agrotóxico na plantação. “Só tem uma aplicação de herbicida e em proporção menor. Existem os inimigos naturais da broca e temos as barreiras da natureza – mata, reserva – ao redor da fazenda que contribuem para esse trabalho”, diz Zé, como é conhecido entre os colegas. A propriedade não tem sistema de irrigação, mas, segundo o administrador, esse não é o problema. “No ano passado é que foi mais difícil por conta do déficit hídrico. Neste ano estamos mais tranquilos.”

Guiga e Nassime provam e aprovam o café da marca na cafeteria. Leonardo entre as sacas de café prontas para a torra

Guiga e Nassime provam e aprovam o café da marca na cafeteria. Leonardo entre as sacas de café prontas para a torra

Já Leonardo Custódio é, como ele mesmo diz, “o chato da empresa”. É ele quem conecta todo o trabalho realizado no campo à torrefação e às cafeterias e trabalha junto com o consultor em Marketing e Qualidade de Cafés Especiais, Ensei Neto, para melhorar ainda mais os grãos Mantissa. “A qualidade veio bastante com a chegada do Ensei. Ele nos ajuda a selecionar os cafés pré-classificados, a produzir um café melhor, a definir os perfis de torra e a identificar os microlotes”, diz Léo, mostrando o laboratório onde faz as análises dos grãos e onde chega a provar quinze ou vinte vezes por dia um mesmo café até se sentir satisfeito. Metódico e criterioso, ele prefere degustar os cafés em silêncio para conseguir se concentrar nas amostras. “Nós vendemos nosso café para cafeterias e eu guardo a amostra do que eu mandei para manter um controle do que comercializamos”, conta. Há cinco anos na Mantissa, Léo criou um projeto para trazer os donos de cafeterias até a fazenda a fim de que eles possam entender todo o processo de produção que envolve o café. “Isso é feito com cafeterias de todo o Brasil que usam o nosso café. Dessa maneira, as pessoas conseguem compreender o resultado final na xícara. De nada adianta um trabalho bem realizado na fazenda se for parado na ponta final que é a cafeteria. O café tem que ser bem extraído para você conseguir todo o potencial dele”, comenta Léo, que também prova os grãos da marca em diferentes métodos, como Hario V60 e espresso, para saber como eles estão se comportando em cada equipamento. “A proposta do café Mantissa é ser equilibrado. Ele é doce, com bom corpo, uma bebida limpa. Hoje o blend é composto das variedades catuaí vermelho, catuaí amarelo e bourbon amarelo, mas as proporções podem variar dependendo da safra.” Para breve, ele planeja um novo laboratório, maior, para oferecer cursos de degustação e classificação. Microlotes A safra, a propósito, chega a uma média de 4 mil sacas, na colheita que é feita de maio a setembro, manual e mecanizada. José Roberto explica que, por causa do valor e da escassez de mão de obra, a mecanização vem se tornando cada vez mais real na propriedade, mas que a colheita manual será mantida por haver áreas de difícil acesso ao maquinário e plantas mais jovens. Após colhidos, os grãos seguem para a Estância Fonte Alta, propriedade vizinha de apoio à fazenda, onde estão instalados o laborário de provas, as estruturas de secagem e benefício e a torrefação. Quem conhece Evandro Vilas Boas vai dizer que é por lá que a mágica acontece, literalmente, já que, entre uma olhada no café e outra, ele exibe os seus talentos de mago brincando um pouco com cartas e fazendo a alegria dos colegas de trabalho – e a dos repórteres. A mágica é um hobby de Evandro, mas com café não tem fantasia. “É o café que me diz o que eu vou fazer com ele”, nos conta o técnico agropecuário que também é degustador Q-Grader e participa como juiz de concursos da Brazil Specialty Coffee Association (BSCA). “O que eu tenho percebido é que existe uma procura por cafés um pouco mais exóticos e, por esse motivo e para agregar valor ao produto, estamos com foco nos microlotes em alguns lotes que têm características diferentes. O futuro é aperfeiçoar a qualidade e manter o padrão. Quem não tiver produtividade e qualidade está fora do mercado”, completa. O mais recente microlote da Mantissa se chama Origem e traz a variedade bourbon amarelo, rastreada desde a lavoura. Além da área de beneficiamento, que guarda história com uma máquina de benefício de 1917 e que em breve deve ser restaurada, a secagem também chama atenção não só pelo conhecido terreiro pavimentado, mas também pelo terreiro suspenso de sistema basculante desenvolvido por Evandro, com uma inclinação que facilita a retirada dos grãos. A linha de secagem conta ainda com dois secadores mecânicos que utilizam a palha de sobra do café, que serve de matéria orgânica e fonte de energia calorífica na fornalha, substituindo a lenha em até 50%.

Evandro é um dos responsáveis pelo sucesso da Mantissa. Atento, ele identificou os bons cafés da propriedade e implementou sistemas de secagem e seleção dos grãos para aumentar a qualidade

Evandro é um dos responsáveis pelo sucesso da Mantissa. Atento, ele identificou os bons cafés da propriedade e implementou sistemas de secagem e seleção dos grãos para aumentar a qualidade

Após o benefício (retirada do pergaminho) e o rebenefício (separação por peneira, classificação por densidade e cor), os grãos vão para a sala de classificação física e sensorial ainda com Evandro. O trabalho continua com Léo e Ensei, que, depois de análises e definição de torra, enviam o café para a torrefação, área vizinha ao laboratório. Por lá, quem manda é José Antonio dos Santos, o Seu Zé. Ele toca o trabalho em um torrador Lilla de 45 quilos. Na Mantissa há muitos anos, ele começou na lavoura e foi conquistando reconhecimento até chegar a fazer cursos, aprimorar-se e ser o responsável pela torra. “Eu nunca pensei que iria conseguir fazer isso. É muito detalhe, muita atenção, muito cuidado. Eu torrava na classificação para prova, mas aqui, com esse maquinário e o volume, é muito diferente. Se você erra, você perde dinheiro. Tem que ter muita atenção”, conta ele. O futuro da região Os dois últimos elos dessa cadeia são Nassime Raydan e Regiane Source. Nassime é gerente comercial e Regiane, mais conhecida como Guiga, é responsável pela parte estratégica e pelo marketing, além de cuidar da exportação do café verde e do preparo para certificação. A dupla leva os cafés da marca para o mundo e sabe dos benefícios de uma cadeia de produção forte. “Você tem que atentar para o detalhe. Se uma peça cair, todos caem. É um efeito dominó. Todos os processos devem estar interligados”, diz Nassime. “Pelo trabalho que fazemos, podemos ver que o café está cada vez mais consolidado. Nós gostamos daquilo que fazemos e o grupo confia em nós, então, fica fácil”, completa Guiga.

José Roberto confere os cafés na lavoura

José Roberto confere os cafés na lavoura

A conexão vai além e, para este ano, o Grupo Fonte Alta está fazendo um investimento em um novo armazém. O espaço será totalmente automatizado e deve receber cafés de produtores da região que desejarem fazer o processamento, a secagem, o benefício e o rebenefício no local. A nova estrutura vai contar ainda com centro de degustação e pretende identificar microlotes, servindo de ponte entre cafeicultores e torrefações. “Nós queremos valorizar a região como um todo, porque aí o comprador vai olhar para essa área como boa produtora de cafés especiais”, finaliza Evandro.

Isaias José da Silva acerta os últimos detalhes nos secadores mecânicos e o responsável pela torra, José Antonio dos Santos

Isaias José da Silva acerta os últimos detalhes nos secadores mecânicos e o responsável pela torra, José Antonio dos Santos

Ficha técnica

Fazenda Mantissa Localização Campestre (MG) Região Sul de Minas Altitude média 1.200 metros Produção anual 4 mil sacas (média) Área total 170 hectares Área plantada 116 hectares Número de cafeeiros 580 mil Colheita manual (40%) e mecânica (60%) Período da colheita de maio a setembro Processamento via úmida (cereja descascado sem remoção de mucilagem) Secagem terreiro pavimentado, terreiro suspenso, secadores mecânicos Variedades catuaí vermelho, catucaí amarelo, icatu amarelo, mundo novo, acaiá, tupi, bourbon amarelo Selos Certifica Minas, Brazil Specialty Coffee Association (BSCA), 4C (Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).

TEXTO Hanny Guimarães • FOTO Lucas Albin / Agência Ophelia