Cafezal •
Canéfora: mistura amazônica
Uma jornada por Rondônia apresenta agricultura familiar, desenvolvimento de novas plantas e foco na qualidade do grão. Bem-vindo ao céu azul e ao aroma de café rondoniense
Quando em outubro de 2017 três produtores de Rondônia foram anunciados finalistas do concurso Coffee of the Year na categoria Conilon, muitos especialistas voltaram os olhos para a região. Eu, do palco, vi no rosto dos premiados cafeicultores a grande emoção de estarem ali na Semana Internacional do Café (SIC). Meses depois estaria eu, quem diria, conhecendo pessoalmente as lavouras de Tiago, André e Sérgio. E muito mais. Teria contato com toda a estrutura de ações público-privadas que alçaram o Estado de Rondônia a referência nacional recente na produção da espécie Coffea canephora. A canéfora – palavra usada para se referir aos grupos botânicos conilon e robusta – foi a primeira informação assimilada. Na região da Amazônia, as lavouras são formadas por variedades híbridas, resultado de cruzamento entre plantas diferentes.
Em meio às ruas das propriedades, veem-se folhas enormes e outras menores. A mistura, que é privilégio não só das plantas, ocorreu também na fundação do estado. Pessoas oriundas de diversas partes do Brasil deram à população de Rondônia características muito próprias. A maior parte, de paranaenses, paulistas e mineiros, formou cidades no interior rondoniense, no Norte do País. Muitas dessas famílias já vinham da cultura do café em seus estados de origem. A capital, Porto Velho, mais populosa, tem pouco mais de 500 mil habitantes. Banhada pelo Rio Madeira, a cidade foi o ponto de partida para a viagem de uma semana pela região produtora de café, que fica no centro de Rondônia.
Décadas de pesquisa
São muitas horas na estrada pela BR-364, descendo sentido sul do estado, para encontrar os primeiros pés de café. Pelo caminho, Enrique Anástacio Alves, engenheiro agrônomo, pesquisador da Embrapa Rondônia, conta que é mineiro de Viçosa e se mudou para o Norte do País com a missão de dar continuidade aos estudos sobre colheita e pós-colheita de café. Os resultados do trabalho tem motivado os produtores a investir na qualidade do grão. Fotos que circulam pelo Brasil mostrando os pés carregados de frutos fazem Rondônia ser reconhecida pela alta produtividade dos seus cafezais. Os cafeicultores, então, trabalham para unir a alta quantidade de frutos com uma melhoria na qualidade do que se colhe.
Junto nessa missão há mais tempo está Gilvan de Oliveira Ferro, técnico agrícola há 35 anos trabalhando na Embrapa Rondônia. Em 2005, ele assumiu a responsabilidade pelos experimentos realizados no campo de Ouro Preto do Oeste desde 1975, que ajudam na seleção dos clones mais produtivos e resistentes que serão enviados aos produtores como referência para uso na propriedade. Com o crescimento do café no estado – hoje sua produção é calculada em 2 milhões de sacas de 60 quilos –, a pesquisa com o fruto passou a ser mais valorizada: “Plantamos 153 clones diferentes, selecionamos 49, depois 28 e, na sequência, 15 finais para lançamento das variedades. Os clones foram avaliados por dezoito anos, depois de sete safras com produtividade média de 70 sacas/hectare, sem irrigação”, explica Gilvan.
Esse estudo dos clones faz parte de um trabalho maior da Embrapa Rondônia, que realiza pesquisas de compatibilidade entre as plantas. De acordo com Alexsandro Lara Teixeira, chefe adjunto de pesquisa da instituição, o canéfora tem como característica principal ser uma espécie alógama, com fecundação cruzada. Nesse caso, as sementes da planta são formadas a partir do pólen de outra planta, gerando uma variabilidade genética maior quando comparada ao café arábica. “Por causa dessa característica, os produtores começaram a fazer os próprios materiais e clones. Havia uma alta demanda, e hoje há doze materiais clonais bem difundidos nas lavouras”, afirma Alexsandro. Em 2012, a Embrapa Rondônia lançou a variedade oficial clonal BRS Ouro Preto, um conjunto de quinze clones. “Nosso projeto é lançar,em 2019, as cultivares individuais, para cada produtor montar sua lavoura de acordo com a vontade dele: produção, qualidade e resistência.”
Hoje em Rondônia, 65% das lavouras são seminais e somente 35% são clonais. Mas esses números tendem a mudar em breve, com a atual produção de 15 milhões de mudas por ano, num total de 29,6 mil propriedades de café no estado. Quem também faz esse mapeamento e atua diretamente no campo é a Entidade Autárquica de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Rondônia – Emater-RO, que está em todos os 52 municípios e vem incentivando os produtores a participar do concurso de qualidade – Concafé –, que, em 2018, chega à terceira edição.
Na cidade de Alto Alegre dos Parecis, a família do produtor Marcelo Braun conquistou o terceiro lugar no concurso estadual em 2016 com o café da Chácara Boa Esperança. Com vinte materiais diferentes, entre clones e híbridos, Marcelo virou referência na região. Com produção alta de 125 sacas/hectare em 2017, neste ano o cafeicultor pretende chegar a impressionantes 180 sacas por hectare. Ele pertence à terceira geração da família, que veio do Espírito Santo e manteve a cultura do café. “Faz oito anos que estamos desenvolvendo essas variedades de clone. Estamos testando a produção e a qualidade. Vamos separando as linhas e colhemos os materiais maduros. Descobrimos grandes vantagens, com produção alta e menor gasto”, diz Marcelo, que hoje recebe grupos em visita de campo para mostrar o trabalho que vem realizando na propriedade.Outra característica da região é a floresta nativa no entorno das lavouras e a abundância de água e de chuva, situação típica da região amazônica.
Para Leandro Dias Martins, da recém-criada Cooperativa dos Agricultores Familiares da Amazônia (LaCoop), “o potencial é muito grande, pois o perfil da agricultura de Rondônia é de famílias com 3 a 6 hectares, em média”. Para ele, o principal foco serão a qualidade e a certificação das propriedades para levar o nome da Amazônia para os mercados interno e internacional. Leandro nasceu em Cacoal, hoje a segunda maior cidade na produção do grão. Conhecida como a Capital do Café, o nome do município é uma homenagem ao cacau e ao café.
E foi em Cacoal que despontou a propriedade Sítio Cafezal dos irmãos Kalk, como são conhecidos Sérgio e André Kalk. Tiago Novais Duarte, o meeiro da fazenda, foi o grande campeão do estado em 2017. Os pais foram do Espírito Santo para Rondônia em 1998. Já plantavam café, em Colatina (ES), e a paixão pelo fruto continuou. Em 16 hectares de café, os jovens irmãos investiram em terreiro suspenso e de chão para melhorar a pós-colheita. O resultado veio logo. Conquistaram o segundo, o terceiro e o quarto lugares no Coffee of the Year 2017, durante a Semana Internacional do Café, em Belo Horizonte (MG).
“Estamos até hoje com as pernas meio bambas. Nunca imaginei que um café robusta fosse dar bebida.” Sergio se refere às mudas de robusta que plantou. Foram 2 mil no início, o que resultou em grande produtividade. Ele alterou toda a propriedade para clones de robusta, o que também gerou qualidade. Os clones de robusta se adaptaram muito bem à região dos Kalk, pois, segundo eles, para que a planta produza e tenha qualidade, é necessário um estresse hídrico a fim de gerar uma florada homogênea, o que resulta em frutos com a mesma maturação. “O produtor rural tem que usar a matemática, senão fica patinando”, orienta Sergio. “É muita gota de suor derramado. Não é de um dia para outro que a gente conquista. Agradeço muito ao meu pai por ter conseguido levar o nome de Rondônia para o mundo.”
Industrialização do café
Na ponta da comercialização do produto, Rondônia ainda está engatinhando. Com o nome Café da Amazônia e o apelo de marca para um produto da floresta, alguns empresários vêm investindo nesse mercado promissor. Um deles é Lucas Borghi, presidente da Café Nova Era, na cidade de Cacoal. Fundada em 2012, a marca hoje investe em uma linha de especiais com torra própria e venda on-line. Com uma rede de produtores locais, a marca esteve recentemente na Coreia do Sul a fim de negociar a extração do óleo do café verde para uma fábrica de cosméticos que deve se instalar na cidade rondoniense. A família de Borghi está há 35 anos no Estado de Rondônia e passou da produção de café ao setor industrial.
A 500 quilômetros dali, já em Porto Velho, está a família de Bruno Assis, jovem empreendedor que está à frente da Juninho Soft Café, a primeira cafeteria a servir café 100% robusta, o Amazônia Coffee. Os empreendedores resolveram servir o café do estado depois que clientes procuravam provar os grãos da região. No ano passado, Bruno já conseguiu comprar sacas premiadas e fazer microlotes dos grãos que torra e envasa no local.
O mercado de hoje está bem distante daquele que Ezequias Braz da Silva Neto, o Tuta, encontrou quando chegou a Rondônia, em 1971. Desbravador da região de Cacoal e presidente da Câmara Setorial do Café do Estado de Rondônia, ele lembra que “a terra era tão boa que não precisava de adubo. Colhíamos o café e não tínhamos a quem vender”, diz ele ao citar o pioneiro na região Clodoaldo Nunes de Almeida, que chegou com as primeiras mudas no fim da década de 1960. De uma produção que chegou a 3,5 milhões de sacas entre os anos 1980 e 1990, Tuta comemora que a previsão para 2020 seja de 4 milhões de sacas. Desafios que estão postos e que, se depender do empenho do povo rondoniense, como diz o hino do estado: “Exaltaremos enquanto nos palpita o coração”.
(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso referente aos meses junho, julho e agosto de 2018 – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).