Depois de garantir lugar nas prateleiras dos supermercados brasileiros, as bebidas vegetais ganham espaço nas cafeterias e nas xícaras dos consumidores de cafés especiais. Questões éticas, ambientais e de saúde explicam o crescimento global do consumo de leites à base de plantas. Entre baristas e apreciadores da bebida, o rol de motivos inclui também critérios como sabor e textura.
O comércio global de bebidas vegetais cresceu cerca de 70% entre 2015 e 2020, enquanto sua venda no Brasil avançou 15% em um ano – entre 2021 e 2022 (os dados são da Euromonitor, fornecedor de pesquisas de mercado). Nas cafeterias brasileiras, os leites vegetais estão em alta: de redes como The Coffee, We Coffee e Sterna Café a casas em várias capitais – Heimen Café (Rio de Janeiro), Messkla (Florianópolis), King of the Fork e Botanikafé (São Paulo), Kaffe (Recife), Royalty Quality Coffee e Manana Cafés (Curitiba), Dude Coffee Company (Porto Alegre), para citar algumas –, todas têm a bebida como opção.
Nos últimos anos, o nicho tem sido atendido por diversas marcas, como Nude, NotCo, Naveia e A Tal da Castanha, além da Ades (da Coca-Cola Company, que no rebranding de 2018 aumentou a oferta de opções) e da Nature’s Heart (da Nestlé).
O surgimento de novas marcas e tecnologias na fabricação de bebidas vegetais permite ao barista combinar qualidade e sabor – além da soja, há opções feitas a partir de aveia, coco, amêndoa, castanha-de-caju, castanha-do-pará e arroz. Isso porque, até pouco tempo, o acesso a esses produtos no Brasil era difícil, e, quando estavam disponíveis, não eram bem aceitos por conta do sabor, considerado pouco atrativo, e do preço, também nada convidativo (bebidas vegetais custam, em média, três vezes mais do que leites de vaca).
Com alternativas, as cafeterias conseguem atender um público mais diverso. Mas, para além do sabor e da qualidade na xícara, a escolha por trabalhar com ou por consumir bebidas vegetais indica, mais do que tudo, responsabilidade.
O normal pode ser vegetal
O aumento da busca por leites vegetais não se limita ao crescimento de movimentos como vegetarianismo, veganismo e flexitarianismo. Há tanto motivações éticas e ambientais, como a conscientização quanto à crueldade contra os animais e às mudanças climáticas, quanto questões econômicas, como gastos de água e de energia na fabri cação do produto. Existem, ainda, preferências por hábitos saudáveis – como evitar a ingestão de hormônios e antibióticos que podem estar no leite de origem animal – ou questões médicas, como ter intolerância ou alergia à lactose.
Até 2030, o mercado mundial de leites à base de plantas, avaliado em US$ 10,1 bilhões em 2022, pode alcançar US$ 25,3 bilhões. A análise, feita em 2023 pela Fact & Factors, provedora de pesquisas de mercado, prevê ainda uma taxa de crescimento anual de 10,2% nos próximos anos, sendo ela mais expressiva na região da Ásia-Pacífico. Segundo análise da Allied Market Research de 2020, a expansão do mercado de produtos plant-based é resultado da busca por alimentos com menor impacto ambiental, de alto valor nutricional e de consumo consciente.
Em 2023, um artigo publicado na Nature Food, a partir de extensa revisão de dados sobre regime alimentar com 55 mil pessoas de 119 países, indicou que dietas veganas geram 75% menos emissões de gases do efeito estufa e têm 46% menos impacto quanto à poluição da água.
No Brasil, 46% dos brasileiros já excluem, voluntariamente, a carne de sua rotina em, pelo menos, uma refeição da semana (os dados, de 2021, são da Inteligência em Pesquisa e Consultoria – Ipec). Além disso, uma pesquisa do Ibope em 2018 indicou que 14% da população do país declarou-se vegetariana – um aumento de 75% em relação a 2012.
O Brasil é o terceiro maior produtor de leite de origem animal do mundo. São mais de 34 bilhões de litros por ano, produzidos em 98% dos municípios brasileiros, segundo o MAPA (Ministério da Agricultura e Pecuária). Não é à toa que as alternativas ao leite de vaca só chegaram ao Brasil na década de 1990 (confira Bebidas vegetais históricas, ao lado).
O hábito de beber leite e utilizá-lo em preparações ajuda a explicar o interesse aparentemente tardio do Brasil pelas bebidas vegetais. Levantamento feito em 2022 pela GFI Brasil (The Good Food Institute) indica que 73% dos brasileiros consomem laticínios pelo menos três vezes por semana, 14% a mais do que em 2020. O leite de vaca também está presente em 62% dos lares do país, com a mesma frequência.
Aveia: ela é o momento
No rol das opções veganas, o leite de aveia tem sido preferido pelos profissionais do café. Além do baixo impacto ambiental do cultivo de aveia em relação às plantas em geral, o leite feito dela destaca-se pelo sabor mais suave e doçura equilibrada e por agradar vários perfis.
“A bebida de aveia é ‘neutra’, casa com cafés de diferentes tipos sensoriais e agrada também quem toma leite de origem animal”, explica a barista Keiko Sato, da Punga Cafés Especiais, em São Paulo, referindo-se à doçura natural do leite de aveia. A professora, consultora e mestre de torra também acredita que, assim como café, os tipos de leite devem ser pensados observando a harmonia da bebida final e de acordo com o público que frequenta a cafeteria.
“A bebida de aveia proporciona a mesma experiência sensorial de uma preparada com leite de vaca”, diz o barista mineiro Eduardo Olímpio, campeão brasileiro de latte art em 2023. “Temos clientes que nem percebem a diferença, de tão complexa e rica que foi a experiência de tomar um cappuccino vegetal”, garante ele, que atualmente é embaixador da Naveia.
“É o único produto vegano que conseguiu ‘furar a bolha’’’, acredita a sueca e vegana Alexandra Soderberg, CEO e fundadora da Naveia ao lado do marido, o brasileiro e também vegano Felipe Chagas. A Naveia surgiu em 2020 após visitas a feiras de alimentação saudável pela Europa e pesquisas sobre a fabricação da bebida à base do cereal. Um dos processos na produção de leite de aveia é a enzimação. A técnica utiliza enzimas para quebrar o amido da aveia, o que melhora seu sabor e confere dulçor sem a adição de açúcares.
Uma questão de sustentabilidade
A escolha da aveia como base da única bebida vegetal da marca também contempla questões econômicas. “Utilizamos menos água e energia para produzi-la”, diz Alexandra. Um dos estudos da marca contabiliza, por exemplo, que o consumo diário de 200 ml de leite de vaca corresponde à utilização de mais de 45 mil litros de água em sua produção. Em contraste, a ingestão cotidiana da mesma quantidade de leite de aveia equivale ao gasto de pouco mais de 3,5 mil litros de água na sua fabricação.
Além disso, entram na equação da fabricação da bebida Naveia preocupações ambientais. “O cultivo da aveia é regenerativo, com rotação de culturas”, detalha a empresária, referindo-se às técnicas agroecológicas adotadas pelos produtores que plantam o cereal para a marca no Rio Grande do Sul.
Sustentabilidade também dirige as ações da Nestlé. Entre elas estão obter 30% das matérias-primas das bebidas vegetais de quem aplica práticas regenerativas até 2025, reduzir 1/3 do plástico virgem das embalagens até 2025 e ter 100% das embalagens desenhadas para reciclagem ou reutilização”. Já a NotMilk consome, em seu processo produtivo, 83% menos água e emite 80% menos CO2 do que a produção de leite animal”, diz Ana Vinha, gerente de comunicação da NotCo. A empresa, que usa inteligência artificial, pesquisadores e chefs no desenvolvimento dos produtos, é parceira do EuReciclo, o
que significa que 100% das embalagens são compensadas.
Zerar a emissão de carbono é, para Giovanna Meneghel, da Nude, um compromisso com o planeta. O pensamento permeia a concepção da empresa, criada há três anos e que também adota a rotação de culturas. Cerca de 45% de toda a pegada de carbono gerada pela cadeia produtiva da bebida de aveia vem do campo. Por isso, a Nude compra créditos, mas a meta de Giovanna é zerar essas emissões. Seu outro objetivo é ser sustentável para o bolso do consumidor, o que esbarra em questões fiscais.
“A produção de leite vegetal tem 40% a mais de impostos do que a de leite animal”, explica ela. “Assim, ter incentivo governamental é importante para baratear os custos de produção e, com isso, fazer com que o valor final do produto seja acessível a todos’’, completa.
Por isso, a marca criou a Base Planta, associação em parceria com A Tal da Castanha, NotCo, Positive Company e Vida Veggie, para buscar incentivo fiscal para a indústria de alimentos à base de plantas. Já a Nude desenvolve o Mostra sua Pegada, movimento voltado à sustentabilidade e que reúne 28 empresas, criado para divulgar o baixo impacto ambiental desses produtos e promover sua produção responsável.
Linha do barista e produto artesanal
Além do sabor neutro, os baristas costumam preferir o leite de aveia por sua textura, aspecto fundamental nas técnicas de vaporização de um leite – seja ele de origem animal ou vegetal. “A crema das marcas disponíveis no mercado brasileiro são estáveis, homogêneas e elásticas o bastante para fazer bebidas clássicas com ótima apresentação”, explica Keiko.
“Temos crescido significativamente com a variedade Barista, à base de aveia e que potencializa a performance em latte art sem roubar a predominância sensorial do café”, diz Leonardo Tauil, head of marketing coffee and beverages da Nestlé Professional.
Até pouco tempo, porém, uma das dificuldades das marcas era quebrar o preconceito dos profissionais do café em relação às alternativas vegetais. “Os baristas geralmente diziam que a bebida era ruim e que vaporizava mal”, recorda Alexandra. Já os donos das cafeterias, lembra a empresária, pensavam não existir público para elas. “E não existe mesmo, se você não permitir que as pessoas conheçam um novo produto’’, argumenta.
Entre as ofertas comerciais, a bebida de aveia também foi a escolhida por Gabriela Barretto, chef e proprietária do Futuro Refeitório, em São Paulo, exigente quando o assunto é sabor e valor de um ingrediente. “Encontramos uma bebida de aveia que nos contentou em termos de paladar e que é feita de maneira cuidadosa, sem excessos de industrialização’’, explica a chef.
Mas no caso do leite de coco, que ela harmoniza com os cafés torrados na casa (um casamento não tão óbvio), o jeito foi fabricá-lo. “Não encontramos um produto que nos agradasse em termos de sabor e textura, além do fato de que os disponíveis têm altas concentrações de conservantes e estabilizantes’’, explica Gabriela, que o produz diariamente. “O coco é um ingrediente brasileiro de fácil acesso, que combina bastante com algumas receitas do café. Fazemos nosso leite com coco seco e água de coco verde, em uma máquina específica para produzir leite vegetal’’, detalha. Esse trabalho tem um preço e no cardápio, o valor adicional é especificado. “Fabricar costuma ser mais barato do que comprar pronto, mas existe o custo da mão de obra e o de produção”, calcula Gabriela.
Na arena
Em 2023, numa decisão histórica, a World of Coffee Events alterou algumas regras e liberou o uso de bebidas vegetais no Campeonato Mundial de Barista. Deixar que elas façam parte da mise en place de competidores e competidoras proporciona mais liberdade criativa e permite explorar novas formas de trabalhar com o café. A presença dessas bebidas nas competições possibilita, também, que alternativas vegetais alcancem um público maior e possam quebrar preconceitos.
Pensando nisso, a marca Nude investiu em um time de baristas embaixadores, que prova, opina sobre a qualidade do produto e o promove, além de participar de campeonatos pelo Brasil. Para Pedro Lisboa, head of coffee relations da empresa, a aceitação desses profissionais foi imediata. “A vaporização, a quantidade de crema, de bolhas e de microbolhas são aspectos importantes”, detalha Lisboa. “A gente queria criar um produto que deixasse o barista feliz’’, comenta.
Bebidas vegetais históricas*
Fazer leite à base de plantas não é novidade. Há uma longa história de bebidas vegetais produzidas por diferentes culturas ao redor do mundo. Na Europa medieval, a mais comum era feita de amêndoas. No
inverno, período de baixa produção de leite animal, a bebida extraída dessa oleaginosa ajudava os europeus a sobreviverem às baixas temperaturas.
Várias receitas medievais tinham como opção substituir o leite animal pelo de amêndoas, que entrava no preparo de sopas, caldos, mingaus e molhos. A medicina antiga também contemplou seu uso como medicamento (assim como o de todos os alimentos). Em sua riqueza teórica, ela classificava ingredientes de acordo com suas qualidades e os designava a determinadas pessoas, que, por sua vez, tinham perfis também distintos. Assim, alguns alimentos eram considerados “quentes” ou “frios”, o que não estava relacionado à temperatura de serviço, mas a uma de suas qualidades. Na leitura dos religiosos, porém, alimentos quentes tinham o poder de aumentar o desejo sexual. Por isso, a Igreja Católica proibiu seu consumo em datas sagradas. O leite de vaca estava entre eles. Nos séculos XVII e XVIII, a bebida de amêndoas tornou-se uma opção para esses dias de restrição alimentar.
Os chineses produzem bebidas vegetais há milênios. A extração do leite de arroz consistia, basicamente, em macerar os grãos e filtrá-los. Além da bebida de arroz, os asiáticos também consomem leite de soja – que, até pouco tempo, foi uma das poucas opções acessíveis nas prateleiras para vegetarianos, veganos e intolerantes à lactose. A soja é consumida na China desde 220 a.C. e seu uso como bebida data do século XIV. A técnica para obtê-la consistia na trituração e no cozimento dos grãos para extrair seu líquido nutritivo.
Ao longo dos séculos, sua produção foi aprimorada. Uma das inovações foi a introdução do tofu, provavelmente durante a Dinastia Tang (618-907 d.C.), que é um derivado da bebida de soja coagulada. Os grãos são mergulhados em água, depois moídos até o ponto de pasta, que é então cozida para realçar os sabores e filtrada. Há, ainda, a opção de saborizá-la com açúcar, baunilha e outros ingredientes.
A produção das bebidas vegetais espalhou-se pela Ásia, chegando a países como Japão e Coreia. Com a
globalização, a bebida de soja tornou-se popular em todo o mundo.
*Fonte: Dupuis, E. Melanie. Nature’s perfect food – how milk became America’s drink (New York University Press, 2002)
Texto originalmente publicado na edição #83 (março, abril e maio de 2024) da Revista Espresso. Para saber como assinar, clique aqui.
TEXTO Letícia Souza • FOTO Daniel Ozana/Studio Oz