Pelo Mundo por Gustavo Paiva

Porque o mundo deveria parar para um café

Escrevo este texto em um dia histórico – o dia em que o preço negociado na bolsa de Nova Iorque acaba de ultrapassar os 4,30 dólares por libra. Temos motivos para acreditar que este não seria um dia apenas para lembrar uma marca impressionante atingida pelo preço do café. Este seria um dia, e digo sem medo de exagerar, para pensar que tipo de agricultura queremos ter, em um planeta para alimentar mais de 8 bilhões de pessoas.

Mas por que o café seria um retrato para outros cultivos? E o que isso teria a ver com alimentar 8 bilhões de pessoas? Primeiramente, alguns fatos sobre o mercado de café e como chegamos até aqui.

Por mais que parte desta alta histórica seja especulativa e o café devolva uma porção dos ganhos nos próximos pregões, podemos cravar algumas mudanças substanciais no mercado e na estrutura do equilíbrio da oferta e demanda.

Em relação à questão produtiva, a primeira causa deste preço nunca antes visto é muito clara: o aquecimento global. Apesar de muitos agentes do mercado e políticos do Brasil e de fora ainda duvidarem, a mudança no clima é óbvia. Passamos por três episódios extremos nas regiões produtoras brasileiras em pouco mais de quatro anos: a geada de julho de 2021,  o excesso de chuva na florada de 2022 e a seca em 2024, também no período de florada. 

Outro fator que influencia o mundo do café há tempos, e que já foi normalizado por aqui, é a forte desvalorização do real. Estamos chegando a quase dez anos de desvalorização da moeda brasileira. Isso significa que a eficiência do país na produção de café foi acentuada pela desvalorização do câmbio. Os principais concorrentes dos produtores brasileiros, além de produzirem com menor eficiência, ainda têm que lutar contra um produto mais competitivo por conta do real barato. 

Vale lembrar que, praticamente no mesmo período em que o real sofreu com a desvalorização, os estoques da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) foram liquidados e nunca mais repostos. Estes estoques são importantes para regular os preços internos, injetando mais produto no mercado em tempos de alta e também comprando do produtor em momentos de baixa. 

Mesmo com estoques liquidados, algum ente estatal ou privado poderia ter tomado a iniciativa de recompor tais produtos. Ocorre que nos últimos anos esta tarefa foi praticamente impossível para os entes públicos e desdenhada pelos entes privados. Em nenhum destes anos houve um excedente de produção substancial para que sobrasse tantos cafés no mercado. Além disso, a pandemia demandou um redirecionamento de gastos públicos, e as taxas de juros vinham sendo relativamente altas na busca de conter a pressão inflacionária do período. Este encarecimento do crédito também desfavoreceu os agentes privados do mercado. Com pouca liquidez, os agentes preferiram ignorar os fundamentos e insistir em uma estratégia de estoques baixos, que vem sendo a regra há anos.

Por último, mas não menos importante, devemos lembrar do salto no consumo do sul e leste da Ásia. Por motivos óbvios, a China é a grande estrela emergente e chegou em 2025 consumindo cerca de seis milhões de sacos de café, aproximando-se de Alemanha e Japão e prestes a se tornar o terceiro maior mercado consumidor, atrás apenas de Brasil e Estados Unidos. 

Este salto chinês está ainda longe de ser relevante, quando se pensa no tamanho do potencial do mercado em termos per capita. Os respeitáveis seis milhões de sacos de café representam apenas cerca de 250 g de consumo per capita ao ano. Em termos comparativos, o chinês consome, em um ano, o que um brasileiro toma em quinze dias. Mas não para por aí. 

Por concentrar demasiadamente as atenções na China, o mercado esqueceu-se de outros países do sudeste asiático como Vietnã, Indonésia e Filipinas. Todos na casa dos três milhões de sacos consumidos por ano. Algo similar ao consumo da tradicional Itália. Lembrando que a população italiana hoje em dia está em 56 milhões de pessoas, e os três países somados têm quase dez vezes mais, cerca de 500 milhões de habitantes. 

Não chegamos aqui por acaso. Este preço astronômico do café vem sendo preparado há muito tempo, graças às mudanças climáticas, aumento no consumo e negligência dos setores público e privado. Pode-se encontrar algum produtor surpreso com o valor da saca, mas nenhum produtor está surpreso com a falta de café no mercado. A questão principal é por que os consumidores e os mesmos agentes públicos e privados estão surpresos?

O título desta coluna faz um convite à reflexão sobre o que ocorre com o café, não apenas porque estamos vivendo algo histórico, mas também por que o que estamos vivendo no café pode ser o prenúncio do está por vir em outros cultivos, inclusive aqueles que compõem a cesta básica do brasileiro e alimentam mais de 200 milhões de pessoas por aqui. E tantos milhões lá fora.

A preocupação se deve ao fato de que o café tem um perfil de produção no Brasil e no mundo baseado no pequeno produtor, relativamente disperso no território. No Brasil, os seis primeiros estados produtores de café estão em quatro macrorregiões distintas: Sudeste, Sul, Nordeste e Norte. No mundo, os seis primeiros estão em quatro regiões geográficas diferentes: América do Sul, Sudeste Asiático, África e América Central. Pode-se concluir que a crise no território produtivo é generalizada. E que, mesmo que a produção mundial e a produção brasileira tenham um claro líder, pode-se dizer que o café tem alta capilaridade no território. 

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 80% da produção brasileira se deve ao pequeno e médio produtor com menos de 50 hectares. No mundo, segundo dados da Organização Internacional do Café (OIC), 95% dos produtores mundiais têm menos de 5 hectares. Portanto, a produção depende do pequeno produtor, que é o mais vulnerável em tempos de crise e já vem sendo fragilizado há anos. 

A crise do preço do café é grave e merece mais atenção porque pode ser um aviso de outras crises, principalmente alimentares. A resolução dela poderá nos dizer não somente qual tipo de estrutura cafeeira queremos para o mundo, mas, principalmente, que tipo de sociedade queremos cultivar.

Gustavo Magalhães Paiva é formado em relações internacionais pela Universidade de Genebra e é mestre em economia agroalimentar. Atualmente, é consultor das Nações Unidas para o café.

TEXTO Gustavo Paiva

Deixe seu comentário