
Por Celso Vegro
Em 1957, os economistas J. H. Davis e R. Goldberg, ao reconhecerem a estrita interdependência dos segmentos mobilizados para atender os sistemas de produção na agropecuária, cunharam o conceito de agribusiness, dividindo-o em quatro agregados (insumos, produção agropecuária, processamento e distribuição).
O conceito ganhou força no Brasil a partir da liderança do engenheiro agrônomo Ney Bittencourt, então diretor-presidente da Agoceres (sementes, nutrição animal e genética), ao criar a Associação Brasileira do Agronegócio (Abag). Com a ampla adoção desse conceito, superou-se a repartição econômica clássica entre setores primário, secundário e terciário. Consolida-se, então, a percepção de que os sistemas de produção de alimentos, bebidas, fibras e energia compõem a matriz econômica brasileira enquanto um sistema produtivo integrado (contratualmente ou não), criando-se a partir dessa perspectiva novas estimativas sobre sua participação na criação de riquezas no país.

Fluxograma da cadeia produtiva do café. Fonte: SESSO, et al (2021)1.
Os quatro componentes que formam esse agronegócio comportam distintos atores econômicos com interesses que lhes são próprios, inclusive mutuamente contraditórios. Os segmentos a montante compostos por produtores de sementes/mudas, fabricantes de fertilizantes, combustíveis, defensivos, montadoras de máquinas e equipamentos e serviços financeiros possuem estrutura de mercado em que prevalece a concentração e a centralização do capital (oligopolização), ou seja, capacidade potencial de formar seus preços, ainda que possam, em períodos ocasionais, atuar competitivamente.
Adentrando a porteira, encontramos os responsáveis pela oferta física do produto: os cafeicultores. Trata-se do grupo mais numeroso de agentes econômicos dessa cadeia, contabilizando centenas de milhares de estabelecimentos rurais dedicados à lavoura. A conversão de todos os insumos mencionados em café – após o pagamento dos salários dos trabalhadores envolvidos na atividade e a amortização do crédito concedido – aporta à matriz econômica brasileira incremento líquido na renda nacional de, aproximadamente, R$ 15 bilhões (50% do total apurado pelo segmento)2.
A torrefação, a moagem e a solubilização, a exportação e a distribuição/consumo encerram o fluxo do produto dessa cadeia produtiva. Grandes agentes econômicos atuam neste capítulo, tendo destaque as cooperativas de produção de café, que oferecem equalização das margens praticadas pelo mercado e, ainda, garantem a adoção de padrões de sustentabilidade, qualidade e governança para todo o segmento.
Esse panorama demonstra a relevância do agronegócio café na composição do PIB brasileiro (aproximadamente 0,34% do PIB). Sua importância está em franca evolução diante do avanço da produção de conilon e robustas, encaminhando o Brasil, em futuro próximo, para o posto de maior produtor mundial também desta espécie.
Em agosto de 2025 foi empregada tarifa de 50% sobre as importações de café do Brasil para o mercado estadunidense, criando verdadeiro embargo às exportações para aquele país3. Em ato contínuo, a National Coffee Association (NCA)4, visando reverter a decisão governamental dos Estados Unidos em taxar o café brasileiro, divulgou estudo contabilizando que o mercado doméstico de café no país gira, anualmente, US$ 350 bilhões! Mais especificamente, para cada dólar de importação de café, ocorre efeito multiplicador na economia do país que alcança US$ 435.
Embora a metodologia de matriz insumo-produto empregada para o caso brasileiro e aquela utilizada pela NCA para a apuração do tamanho do mercado de café estadunidense não sejam comparáveis, a dimensão dos valores contabilizados em ambos os casos é chocante. A entidade norte-americana mensurou que o segmento contribui em 1,2% do PIB do país.
Por sua vez, representantes do segmento do café brasileiro, incumbidos de sensibilizar a autoridade comercial estadunidense no sentido de rever a taxa aplicada ao nosso café, sentiram-se prestigiados em seu esforço pela abertura de canais de negociação a partir da divulgação do estudo da NCA, e nele ancoraram suas expectativas de desfecho favorável ao segmento. Ainda que louvável, esse posicionamento deveria instar uma profunda indignação com essa desproporcionalidade que pauta a relação comercial entre os agentes econômicos das contrapartes do hemisfério americano6.
O café, que recebeu valor de US$ 1 (ou R$ 5,33, ao câmbio de 3/10/2025) após todo o trâmite – logístico, de recolhimento de impostos e de retenção de margem do exportador (ou seja, posto FOB porto) –, salta para US$ 43 (ou R$ 229,20) em seus múltiplos desdobramentos no mercado estadunidense.
Essa repartição absolutamente espúria do valor adicionado nessa cadeia precisa ser restabelecida em patamares menos escorchantes aos países produtores. Nesse contexto, é legítimo perguntar: qual a possibilidade de alcance dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODSs) 1 e 2 (respectivamente, erradicação da pobreza e fome zero) entre os 17 estabelecidos pela Agenda 2030 das Nações Unidas?
Recentemente (24/09/2025), um evento promovido pelo Banco de Desenvolvimento da América Latina e Caribe (CAF), com apoio do Fórum Mundial de Produtores de Café (FMPC) e pautado pelo desenho de estratégias visando a prosperidade dos cafeicultores e o alcance das ODSs, ofereceu palestra do renomado Nobel de Economia Jeffrey Sachs,7 da Columbia University. Sua preleção centrou-se na argumentação de que, ainda que o café seja uma commodity vital para o mundo, muitas comunidades ainda padecem tanto por situação de pobreza multidimensional (econômica, de serviços sociais, discriminação de gênero etc.) quanto de ações/ferramentas para o uso sustentável da terra, uso este capaz de mitigar as mudanças climáticas/aquecimento global e promover a redução das desigualdades.
Não se trata, aqui, de divergir de tão eminente autoridade acadêmica, porém, é preciso despir-se da desfaçatez para uma correta interpretação da realidade e trilhar caminho civilizatório comum. Caso fosse obtida uma melhor partição do valor nessa cadeia – por exemplo, passando de US$ 1:US$ 43 para US$ 1,50:US$ 42,50, o impacto na redução da pobreza e a geração de prosperidade/sustentabilidade nos cinturões cafeeiros do mundo seria muitas vezes superior aos US$ 10 bilhões pleiteados pelo laureado Nobel para consolidar uma cafeicultura mais sustentável e mais próspera.
Essa concentração da riqueza na terça parte da cadeia produtiva demonstrada pela NCA não deve divergir em nada daquela capturada por outros mercados, como Canadá, Japão, Coreia do Sul e União Europeia. O desenvolvimento dos países produtores de café não será alcançado sem que as commodities produzidas (o café entre outras tantas) obtenham patamares menos injustos de remuneração. Todavia, ao não se vislumbrar esse cenário a longo prazo (pelos próximos cinco anos), resta concordar com os economistas latino-americanos, que, na década de 1950, formularam a teoria da dependência, em que o rompimento da relação desigual entre o Norte e o Sul só se daria por meio da industrialização acelerada.
Aderente a esse contexto está a fábula do rei nu. A produção do relatório da NCA trouxe um fato que nossos próceres da inteligência do agronegócio café evitavam, a todo custo, iluminar. Tomados pela vaidade por serem nascidos em berço esplêndido, são, de fato, cúmplices dessa construção de um mercado desigual, em que os perdedores são invariavelmente os cafeicultores e os países que buscam, na cafeicultura, trilhar seu caminho de desenvolvimento.
1 Sesso, P.P., Sesso Filho, U. & Pereira, L.F.P. “Dimensionamento do agronegócio do café no Brasil”. Cadernos de Ciência & Tecnologia. Embrapa, 38, 2, e26901, 2021.
2 Idem.
3 Ver a esse respeito: https://www.cafepoint.com.br/colunas/cenas-e-fatos-do-agro/resposta-ao-embargo-239026/
4 A National Coffee Association (NCA), fundada em 1911, é a maior e mais antiga organização comercial dos Estados Unidos, representando empresas de café de todos os tipos e tamanhos, incluindo produtores, torrefadores, marcas e outras empresas responsáveis por 90% do comércio de café nos EUA. Adultos americanos bebem café diariamente mais do que qualquer outra bebida (além de água engarrafada), e o café sustenta 2,2 milhões de empregos no país – operando em todos os estados e territórios e contribuindo com quase US$ 350 bilhões para a economia americana todos os anos. Fonte: https://www.ncausa.org/Newsroom/Grounds-for-celebration-Americans-remain-committed-to-coffee Acesso em 3/10/2025.
5 Traço marcante da construção social brasileira consiste na cultura da subserviência ou, como melhor formulou Nelson Rodrigues, a famosa “síndrome de vira-latas”. Tal mentalidade não se desvincula nem de nossos melhores quadros técnicos e empresariais no trato com os congêneres do norte desenvolvido.
6 Disponível em: https://www.usatoday.com/story/money/2025/04/10/coffee-tariffs-expensive/83029424007/ e https://www.caf.com/pt/presente/eventos/online-prosperidade-para-os-produtores-de-cafe-por-meio-de-planos-nacionais-para-a-sustentabilidade-do-cafe-com-base-nos-ods/ Acesso em 3/10/2025.
7 O economista liderou, em 2019, estudo sobre a problemática da economia cafeeira mundial em que, dentre diversas ações, propunha a criação de um Fundo Mundial do Café com US$ 10 bilhões em depósitos para implementação de um Plano Nacional de Sustentabilidade do Café. Ver: https://scholarship.law.columbia.edu/sustainable_investment_staffpubs/53. Acesso em 3/10/2025.
TEXTO Celso Luis Rodrigues Vegro é engenheiro agrônomo, mestre e pesquisador científico do IEA (Instituto de Economia Agrícola), vinculado à Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo.