Uma reportagem feita para quem gosta de tomar café e ponto, desmitificando certo ou errado e pode ou não pode
Esta reportagem começa com um passeio num supermercado. É uma loja comum e fica em um bairro de classe média da Zona Sul de São Paulo. É de uma rede pequena e a unidade é tradicional na região, frequentada pelos moradores mais antigos. Não se enquadra na categoria dos empórios que vendem produtos sofisticados.
Na seção dos cafés, espalhados por um corredor inteiro, havia catorze marcas de cápsulas compatíveis com três sistemas diferentes, somando mais de cem opções entre cafés, bebidas especiais (como cappuccino e chocolate quente) e chás. De grãos, eram doze marcas e vinte opções. De drip coffee, três possibilidades. De moídos e solúveis… não foi possível contar. Quer dizer, a repórter desistiu na terceira tentativa, depois de se perder nos números.
Nesse mesmo supermercado, no início da pandemia, havia apenas duas ou três opções de café em grãos, alguns solúveis e os moídos tradicionais ou, no máximo, da categoria superior. É claro que a situação varia bastante conforme o porte e o tipo da loja, o bairro onde estão e as cidades todas do País. Mas, se você tem a impressão de que tem muito mais café no bule dos mercados que você frequenta, provavelmente está certo.
Quem trabalha com café e gosta da bebida sabe que essa é uma boa notícia, que demonstra que o mercado de cafés especiais está se expandindo e amadurecendo. E que, com o consumidor tendo acesso a melhores produtos, há a chance de a cadeia como um todo também evoluir. É importante, porém, ter consciência do tamanho dos pontos de interrogação que surgem na cabeça até de consumidores já iniciados na bebida e interessados pela queridinha do brasileiro.
Muita gente acostumada a tomar cafés diferentes em cafeterias, com a ajuda dos baristas para orientar o consumo, deixava para consumir produtos mais simples em casa. Com o cenário mudando, mesmo esse consumidor, quando fica ali, sozinho no corredor do mercado diante de tantas opções, pode se perder na escolha.
“É algo muito bom. Dificulta um pouco a vida do consumidor, mas ele tem de entrar nesse mundo do café se quiser aproveitar a variedade”, avalia a especialista e consultora Eliana Relvas, que conhece bem o mercado por ter atuado por muitos anos como consultora de cafés para redes de varejo.
“Cabe aos especialistas, a nós, da bolha do café especial, mostrar um jeito simples e acolhedor, senão esse mundo de opções afasta os novos consumidores”, diz Karla Lima, mestre de torra, classificadora, barista e coffee hunter, da Akan Coffee Experience, microtorrefação em São Paulo.
E, sim, é com esse mapa da mina do café no supermercado que, com a ajuda de quatro especialistas, vamos dar dicas sobre como fazer para chegar a boas experiências na xícara da sua casa. Antes, porém, vale entender o contexto no qual as prateleiras saíram do “suave, forte e extraforte” para essa infinidade de possibilidades. Passe seu café e vem com a gente!
No meio do caminho tinha um vírus
O mercado de cafés especiais vem evoluindo muito no Brasil nos últimos anos. Uma pesquisa realizada pela Euromonitor em 2017 mostrou um crescimento médio anual de 20,6% entre 2012 e 2016 para esse segmento. A previsão deles era de que, em 2020, o volume de vendas teria dobrado.
No meio do caminho, porém, havia algo bem menor que uma pedra, e que causou toda uma bagunça do nível de uma avalanche. Um microscópico vírus, que ainda afeta o mundo de maneiras bastante intensas, fez com que tudo tivesse sua rota recalculada. Com o café, o consumo caiu nas cafeterias (em 2020, essa queda chegou a 7,5%), que permaneceram fechadas ou sem receber público por muitos meses, principalmente durante o primeiro ano da pandemia de covid-19.
Com a impossibilidade de praticar atividades de lazer, como sair para comer fora, o consumo de café em casa aumentou, abrindo espaço para que outros produtos que antes ficavam restritos às ruas entrassem pela porta da frente do isolamento social. Quem pôde transferiu para seu lar alguns dos prazeres que eram possíveis de ser ressignificados fora das ruas, e o café definitivamente foi um deles. Há até um meme que fala de coisas que as pessoas compraram durante a pandemia e sua evolução: mostra picos de busca por papel higiênico logo no início de tudo, de pijamas um pouco depois, o declínio do uso do carro, e o café ali, plácido, com consumo sempre estável e alto.
Os dois movimentos, de expansão contínua do mercado de cafés especiais e de aumento do consumo doméstico por causa da pandemia, explicam bem o espaço que os cafés ganharam nas prateleiras do supermercado, algo que já vinha acontecendo, mas que certamente foi acelerado nos últimos anos. Não deu tempo, porém, de isso acontecer de uma forma mais estruturada, acompanhada de uma evolução de conhecimento e adaptação dos consumidores a tantos produtos diferentes.
Ainda sem terem informações suficientes para escolher os cafés, testar o paladar (falta faz uma degustação no mercado, né,?), e preparar em casa, tanta novidade é um desafio. Há muito conteúdo bom na internet, vale consultar e se inspirar. Na medida em que a pandemia for permitindo, os cursos e degustações de café ajudam demais. Enquanto isso, segue o fio aqui.
Por onde eu começo?
A primeira coisa a fazer é uma análise racional sobre você mesmo. É claro, optar por aquele café cujo preço caiba no seu bolso é fator decisivo. O que você vai fazer é, dentro da faixa de preço determinada, ter um resultado que combine mais com o seu momento.
Para além disso, identificar a sua caixa de ferramentas para preparar café já vai servir como um bom funil nas prateleiras do mercado: que tipo de preparos você pode fazer e gosta de fazer em casa? Usa cápsulas? Você tem moedor ou já vai comprar moído? Quer métodos rápidos, como o drip e os solúveis, ou vai investir em rituais demorados?
Para quem tem a opção de variar no preparo, vale comprar cafés em pacotes menores e adequados para cada tipo. Hoje já existem marcas que vendem o pó em granulometrias diferentes, mais grossas ou finas, e elas indicam na embalagem o tipo de preparo à qual cada moagem se destina. Para quem pode moer em casa, dá para usar o mesmo café e ajustar a moagem.
“Você precisa se perguntar de que café você gosta. Mais forte, mais fraco; gosta de tomar pouco, ou de ‘balde’; com ou sem açúcar, com ou sem leite. Tudo isso pode parecer básico demais, mas ajuda muito”, explica a barista e mestre de torra Letícia Souza, que tem o perfil @euquetorrei no Instagram e é parte da equipe do Futuro Refeitório, em São Paulo.
A barista e sócia do Borsoi Café, de Recife, Paloma Amorim Cunha aponta outra questão importante quando se pretende entrar no mundo dos cafés especiais para tomar em casa: “Se é a primeira vez que você vai comprar cafés diferentes sem a orientação de um barista, não adianta sair do que está acostumado e mudar radicalmente, pois você provavelmente não vai gostar”. Por isso, vá aos poucos, comece por sabores e referências que já conhece, e vá ampliando o seu paladar e repertório com calma.
Café é para ser prazer
Quando as pessoas sabem que trabalhamos com café, é comum ouvir a pergunta: “Qual é o melhor café?”. E, não importa quanto de conhecimento se acumule, a resposta para isso é uma só, sempre: o melhor é aquele que você gosta, do jeito que você gosta. Com açúcar ou sem, com leite ou sem, do jeito que for.
“Trabalho com cafés especiais e quero que todo mundo tome cafés melhores e gostosos. Mas café tem de acolher e não afastar”, diz Paloma, do Borsoi.
Para Letícia, do Futuro Refeitório, existe o mundo das supertécnicas específicas e avançadas e existe a vida real. “Tem hora que tudo o que se quer é um café gostoso, não importa saber muita coisa sobre ele. Por isso é legal respeitar as suas sensações quando tomar uma xícara”. Karla Lima, da Akan, complementa: “O café fica cada vez mais legal quanto mais a gente conhece. Aí não tem um melhor café, tem um monte deles”.
“Café é um prazer ainda permitido, ao menos para a classe média. É claro que se pode pesquisar e aprofundar os conhecimentos, mas não precisa virar algo chato. É bom ter cuidado com isso. Café é uma comfort food e tudo o que a gente quer no fundo é que ele abrace a gente”, resume a consultora Eliana Relvas.
TEXTO Cintia Marcucci • FOTO Gui Gomes