Café & Preparos

Sabe como o café era torrado?

Torrar é um processo complexo, científico, com conceitos que mudam o tempo todo, e que exige atenção e cuidado no preparo. Segundo o campeão brasileiro do Campeonato de Torra, Donieverson Santos, no momento da torra do café, é necessário observar as condições da máquina de torra, saber o máximo de informações sobre a matéria-prima que tem em mãos, adequar a temperatura de entrada para iniciar o processo, observar se há algum vazamento de gás e se há recursos para agir em segurança durante todo o processo. “Ou seja, todo cuidado é necessário”, completa.

A torra dos grãos verdes é um processo de ruptura da estrutura molecular do café através do calor. A elevação da temperatura em intervalos de tempo faz com que ocorram diversas alterações físico–químicas nos grãos, como perda de peso, pela evaporação da água, pelo aumento do volume e pela liberação de certos gases. O tempo e a temperatura são os aliados para determinar o grau da torra e as características da bebida.

Funcionários da alemã Probat analisam a torra do café

E a torra do café antigamente?

Não existem muitos relatos ou arquivos sobre como era esse processo. O que pudemos notar é que antigamente o café era torrado em tacho e em panela de ferro, moído no moinho manual, a água do preparo já era adoçada com rapadura e, pronto, tínhamos o café. Para Jonathan Piazarollo, mestre de torra da Trentino Cafés Especiais, antigamente não havia a preocupação que temos hoje com o pós-colheita. A torra mais escura era o jeito mais fácil de esconder os sabores indesejáveis.

Nessa época, a coloração da fumaça exalada e o odor do grão eram o caminho para descobrir o ponto ideal da torra. Nathan Herszkowicz, diretor executivo da Associação Brasileira da Indústria de Café (Abic), acredita que por isso a bebida forte de uma torra escura que resultava em um café amargo eram tão consumidos antigamente.

Os primeiros implementos conhecidos para torrar grãos de café eram panelas finas, circulares, muitas vezes perfuradas, feitas de metal ou porcelana, usadas no século XV no Império Otomano e na Pérsia. Esse tipo de panela, rasa e côncava, era equipada com uma longa alça para que pudesse ser mantida sobre um braseiro (um recipiente de carvão quente) até que o café fosse torrado.

O primeiro equipamento cilíndrico com uma manivela surgiu no Cairo por volta de 1650. Feito de metal ou ferro fundido, era mantido em fogo aberto. Assim,em outros países foram surgindo modelos variados.

No século XIX, torradores comerciais apareceram nos Estados Unidos e na Europa. Eram usados para grandes lotes de café, enquanto os modelos caseiros permaneciam sendo usados em pequenos lotes. Por volta de 1849, surgiu o famoso torrador esférico, ou bolinha.

Durante a segunda metade deste século, as torrefações de café de todo o mundo experimentaram suas fontes de aquecimento e resfriamento, cilindros de torrefação e ventilações.

Em 1889, Carl Salomon introduziu uma técnica de torrefação rápida usando o princípio da ventilação a gás quente. Segundo ele, seria possível reduzir o tempo de torra, que era de 45 minutos, para vinte minutos. Nos anos seguintes, a maioria dos torradores passou a usar os princípios de Salomon.

Bolinha

Segundo pesquisas, um dos primeiros torradores a chegar ao Brasil foi o bolinha, confeccionado de metal e madeira, considerado um utensílio doméstico. Ele tinha um recipiente esférico, que, mantido no fogo, era movido por uma manivela, girada lentamente. Os movimentos circulares tinham como objetivo uma torra homogênea. A haste de madeira servia para abri-lo enquanto no momento ideal de torra do café, que era identificado pela coloração da fumaça.

All About Coffee

O livro, de 1922, foi escrito por William H. Ukers e editado por The Tea and Coffee Trade Journal. Ele traz alguns dados sobre como era o processo de torra antigamente. Nos Estados Unidos, o torrador mais utilizado era o cilíndrico. Na Inglaterra, França, Alemanha, Holanda e no Brasil, o torrador esférico, ou bolinha, era o mais popular.

Segundo o autor, era difícil as pessoas verem café verde e mesmo entenderem alguma coisa sobre ele, a não ser em alguma exposição. Nessa época (1920), o café já era tido como um negócio. Estabelecimentos de torrefação iam surgindo, mas havia o problema de distribuição dos cafés torrados de modo que chegassem em bom estado ao consumidor final.

Por muitos anos, as máquinas eram do tamanho adequado para torrar duas sacas de café de cada vez. Isso foi mudando e surgiram torradores maiores para comportar o consumo do café. Eles eram instalados em um espaço no último andar de um prédio, com luz e ventilação melhores, e uma claraboia (abertura no alto das edificações destinada a permitir a entrada de luz ou a passagem de ventilação) diretamente sobre o torrador.

Em 1906, na Alemanha, resolveu-se testar o torrador elétrico. Seu custo, porém, era considerado alto quando comparado ao torrador a gás e carvão. Em 1918, em Nova York, o governo federal defendeu a necessidade de conservar o carvão como medida de economia de guerra. Assim, especialistas apoiaram o uso do torrador elétrico. O inventor alegou que sua máquina reduziria o custo de torrefação, melhoraria o sabor e o aroma, e o calor seria constante e facilmente controlado.

Para torrar o café com o carvão, era necessário um tempo de 25 a trinta minutos, dependendo de como estava o grão. O uso do gás baixava esse período para quinze ou vinte minutos. Na época, quanto mais rápido torrasse o café melhor seria, por isso os Estados Unidos já buscavam uma torra mais leve, enquanto Inglaterra, França, Itália, Brasil, Turquia e demais países produtores consumiam a torra escura.

Torradores no Hemisfério Sul

Em 1918, foi fundada pelo imigrante italiano Vito Lilla a Cia. Lilla, um dos primeiros fabricantes de equipamentos de torrefação a vir para o Brasil. Vito teve que pensar em um torrador para utilizar em São Paulo, já que com o final da I Guerra Mundial era impossível conseguir as peças de um equipamento europeu. Passou a fabricar peças para o próprio equipamento e foi tão bem-sucedido que as máquinas de torrefação passaram a ser fabricadas no Brasil.

Por volta dos anos 20 o italiano Michelangelo Belloti usou sua criatividade, no Brasil, para criar um torrador de amostra, que ficou conhecido como Rod-Bel. Segundo sua bisneta Rebecca Nogueira, Belloti era um inventor. “Quem tem um Rod-Bel não abre mão”, comenta com alegria ao dizer que torra o café na máquina que ele idealizou há 100 anos. O Rod-Bel parou de ser fabricado na década de 60 por conta de uma grande seca que afetou os cafezais, mas até hoje há Rod-Bel preservados pelo país. Ao longo dos anos modelo foi desenvolvido por outras marcas.

Em 1970, Lilla, visando à melhoria na qualidade do maquinário, começou a produzir torrefadoras que funcionavam em um sistema de convecção, superior ao de condução, em que a chapa transfere calor para os grãos quando os toca, logo, a troca de calor depende exclusivamente do contato entre os corpos. A convecção funciona através do ar, que envolve o grão por completo, criando uma superfície de troca de calor maior. Os grãos são aquecidos por ar quente, que circula ao redor deles. Na maioria dos torradores, o calor é transferido 30% por condução e 70% por convecção.

Houve uma grande mudança nos padrões de tempo de torra do século XIX até os dias de hoje. Os torradores bolinha e cilindro eram aquecidos apenas na parte exterior, e foram substituídos pelos torradores de aquecimento direto com fluxo de ar dentro do cilindro, o que diminui o tempo no processo. A qualidade do sistema de convecção facilitou a torra do café, que ficou mais rápida.

Com o passar do tempo, os especialistas foram percebendo que o aquecimento direto traria um tempo mais curto e uma bebida de sabor e aroma refinados. Até hoje a Lilla mantém o sistema de torrefação por convecção. Segundo a marca, foi comprovado ao longo dos anos de experiência que a convecção converte melhor qualidade de torra.

Nos anos 1990, outras marcas nacionais de equipamentos de torra foram fundadas no Brasil já visando ao crescimento do mercado de cafés especiais. Entre elas, a Atilla e a Carmomaq, que produzem máquinas de diferentes tamanhos para atender às demandas de menores quantidades de café por torra.

Voltando para a Alemanha

A Probat, fundada em 1868, comemorou 150 anos em 2018. Em 1870 foi fabricado o primeiro torrador esférico, que deu início à era de produção do café. “Os fundadores da empresa queriam fabricar torradores de café comerciais de longa duração, que produzem consistentemente cafés de alta qualidade para clientes de todos os tamanhos”, afirma a marca.

No final do século XIX, a demanda por café torrado disparou não apenas na Alemanha, mas em todo o mundo. Em 1884, a empresa conseguiu a patente para o Kaffeeschnellröster (“torrefação rápida de café”), que foi fundamental para o desenvolvimento do torrador em forma de tambor, que gira ao longo de um eixo horizontal.

Só em 1920 surgiu o torrador com o nome Probat, derivado da palavra latina probatus, que significa “tried and tested” “(experimentado e testado)”. Torrefações de café de todo o mundo usavam o torrador. Theodor von Gimborn, que foi um dos fundadores da empresa, assim como seus descendentes, Carl e mais tarde Hans von Gimborn, viajaram muito pelo mundo comercializando os produtos.

Em 1973, surgiu o primeiro torrador centrífugo. Sua característica distintiva é a rotação da tigela de torrefação, que é equipada com um anel lamelar em torno do eixo vertical. Dessa maneira, o café verde é misturado suavemente durante o processo de torrefação. O ar quente é guiado para o torrador através do centro da tigela e, como resultado, o calor é transferido uniformemente, e os grãos são torrados homogeneamente.

Ao longo dos anos, a empresa se desenvolveu e abriu filiais em outros países. No Brasil, fica em Curitiba (PR) e tem um showroom em que é possível tirar dúvidas diretamente com técnicos e projetistas, além de testar os equipamentos. O objetivo da empresa é compartilhar a experiência com os visitantes.

São diversos modelos de torradores e empresas que fabricam as máquinas para que o café seja torrado e chegue à nossa xícara com um sabor diferenciado. Para Donieverson, uma dica para quem deseja torrar o café é: escolha uma boa matéria-prima, um bom equipamento, acompanhe constantemente o comportamento do grão no tambor de torra e tome cuidado com as altas temperaturas para que não haja acidentes. “Saber fazer análise sensorial também é muito importante, pois só assim você conseguirá observar o que pode ser melhorado. O mestre em torra deve, além de executar uma boa torra, fazer uma análise sensorial completa, a fim de identificar as principais características positivas ou negativas do perfil desenvolvido no processo”, completa.

Como saber se a torra deu errado

De acordo com o campeão Donieverson dos Santos, existem diferentes formas de avaliar se a torra foi correta:

Aspecto: se a amostra estiver desuniforme, com as camadas danificadas, enrugadas, pode ser sinal de que houve algum problema.

Cor: dependendo do perfil que procura desenvolver e das características sensoriais que busca no produto final, a cor pode ser um fator importante, desde que observada juntamente com o perfil desenvolvido. Por esse parâmetro, podemos notar se houve um subdesenvolvimento ou um superdesenvolvimento de torra, se houve rompimento celular e se os óleos essenciais estão saindo do grão.

Odor: após a amostra torrada, quebram-se alguns grãos e observa-se o olfato, a fim de identificar alguma característica do café ou algum defeito no processo. Experientes mestres em torra conseguem destacar características sensoriais interessantes da amostra já nesse momento.

Gosto: Comer um ou dois grãos após a torra também é outra forma de observar se a amostra remete gosto de amargor, carbonizado, entre outros.

(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso referente aos meses dezembro, janeiro e fevereiro de 2019 – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).

TEXTO Natália Camoleze • FOTO Probat

Deixe seu comentário