Quantas notas sensoriais podem ser encontradas dentro de uma xícara? Antes que você dê o primeiro gole e faça as suas anotações, profissionais treinados (provavelmente) já analisaram o seu café. Conheça o papel do Q-Grader na compra e avaliação de lotes e a sua importância para a melhoria contínua da qualidade dos grãos brasileiros
Foto: Agência Ophelia
Quando adquirimos um café especial, é comum encontrarmos na embalagem a descrição sensorial da bebida, como frutas vermelhas, açúcar mascavo, caramelo. Já na xícara, buscamos essas referências principalmente a partir de aroma e sabor, e acessamos nossa memória para identificar novas notas que podem aparecer entre um gole e outro. Para nós, consumidores, esse é um exercício despretensioso, um ritual a cada café tomado. Mas, por trás do prazer sensorial, existem características complexas, profundamente analisadas por profissionais que se dedicam, diariamente, a identificar, descrever e analisar o melhor (ou não) de cada grão.
Quem é e o que faz um Q-Grader
Os chamados Q-Graders — provavelmente você já ouviu falar deles — são os responsáveis por avaliar e emitir laudos de qualidade em café. Em inglês, Q é a abreviação de “quality”, enquanto Grader significa classificador, avaliador. Porém, diferentemente do classificador de café, o Q-Grader é uma certificação internacional que habilita profissionais por meio de uma metodologia específica, faz com que eles estejam aptos a avaliar física e sensorialmente um grão, e categorizá-lo como “especial” ou “não especial” dependendo dos atributos positivos e defeitos encontrados. Já o classificador não precisa, obrigatoriamente, ser certificado como Q-Grader.
“Os dois profissionais são extremamente importantes no mercado de cafés, tanto especial quanto comercial”, afirma Donieverson dos Santos, Q-Grader há quatro anos. “Essas profissões são complementares, e fazem com que a avaliação do café seja conduzida com seriedade e profissionalismo, valorizando o produto e destinando-o comercialmente de maneira correta”, completa.
Como tornar-se um Q-Grader
É necessário realizar o curso de capacitação, oferecido pelo Coffee Quality Institute (CQI). Durante o curso — que também acontece no Brasil, em locais validados pelo CQI —, o profissional é treinado e avaliado em diferentes aspectos relacionados à análise sensorial, para aprofundar-se em certificações específicas: Q-Grader, para cafés arábica, ou Q-Robusta Grader, para cafés canéfora.
KJ Yeung, Q-Grader há três anos, conta que a avaliação é feita em uma semana – mas não se engane: apesar do pouco tempo, é um aprendizado intenso. “A resiliência do candidato ao treinamento é a peça-chave para a aprovação”, explica KJ Yeung. Segundo ele, além da resistência física e mental durante as aulas e provas, o participante precisa conhecer avaliação sensorial em profundidade, a partir da vivência em provas no dia a dia, ou, pelo menos, uma boa percepção do método. Ainda segundo o profissional, as softskills adquiridas fora do ambiente de trabalho são essenciais: “ter curiosidade, não apenas sensorial, é a base para ser um bom avaliador. Quanto maior a experiência, mais ampla é a percepção de qualidade, que pode ser bem flexível e subjetiva dependendo do lugar”, ensina. Outra característica importante, de acordo com o Q-Grader, é ter senso crítico. “O que não significa ser severo, mas reconhecer, realmente, as características de um café, positivas ou negativas”, destaca.
Não é necessária nenhuma habilidade especial para ser um bom profissional. Ao longo do tempo, porém, algumas medidas podem ser tomadas para que o desempenho do profissional não seja comprometido, e ele consiga tornar-se referência. Entre elas, evitar o consumo excessivo de álcool e de tabaco, ter uma alimentação balanceada, buscar aumentar sempre seu leque sensorial e manter-se em aprendizado contínuo, além de continuar a ter foco e curiosidade.
Avaliação do café
O café é avaliado e classificado em duas etapas: classificação física e análise sensorial. No caso dos cafés especiais, faz-se primeiramente a amostragem. “Ela deve ser representativa do lote. Se a amostragem não for bem-feita, a análise e a compra do grão podem ser prejudicadas”, aponta a Q-Grader Camila Arcanjo, que atua no ramo há dez anos.
Na etapa de classificação física, o grão cru (café verde) é avaliado em uma série de fatores, como definição do produto (arábica ou canéfora), porcentagem de umidade, presença de material estranho, defeitos extrínsecos e intrínsecos, odor, cor, tamanho (peneiras) e porcentagem de defeitos (quebra ou catação).
Depois, parte dessa amostra é torrada para o processo de avaliação sensorial. “Aqui, aproveitamos e avaliamos a quantidade de quackers por 100 gramas de café torrado”, explica Camila. Quackers são os ‘grãos pálidos’ definidos na Classificação Oficial Brasileira (COB). “Essa amostra será avaliada no ponto de torra médio, e a granulometria deve permitir que 70 a 75% do pó de café passe por peneira 20 mesh (quanto maior o número do mesh, mais fino será o pó), entre 8 e, no máximo, 24 horas depois da torra”, detalha a especialista.
Durante a análise sensorial, se o produto for comercial, ele será avaliado em diferentes grupos de bebida: estritamente mole, mole, apenas mole, duro, riado, rio ou riozona. Se o café for especial, os parâmetros avaliados irão definir uma determinada pontuação, que geralmente varia de 60 a 100 pontos. Cafés considerados especiais devem pontuar acima de 80. São analisados nesta etapa aroma/fragrância, sabor, finalização, acidez, balanço (equilíbrio), uniformidade, limpeza (ausência de defeitos), doçura e avaliação pessoal.
Foto: Igor do Vale
Divergências entre avaliações
Um Q-Grader que trabalha para um produtor e um Q-Grader de concursos avaliam o mesmo café de formas diferentes? Para Donieverson, isso depende das condições em que o produto é analisado. “O protocolo padroniza a avaliação e dá respaldo para que o café seja avaliado nas mesmas condições, independentemente do local”, diz ele. No entanto, outros fatores podem colaborar para a divergência de avaliações: a calibragem, a experiência e o leque sensorial de cada provador.
“A calibragem pode ser um dos fatores que colaboram na divergência. Profissionais descalibrados tendem a avaliar cafés de forma equivocada”, acredita ele. A experiência e o leque sensorial também são pontos que podem contribuir. Donieverson destaca ainda que provadores mais experientes, cuja biblioteca sensorial é bem desenvolvida e que tiveram a possibilidade de avaliar cafés de diferentes regiões e propriedades, são mais coerentes. “O ideal é que, caso haja diferença, ela não seja maior do que 1,5 ponto. Se isso acontecer, é recomendável que o café seja novamente avaliado e, se possível, com mais profissionais envolvidos”.
O Q-Grader na indústria e no campo
Este profissional pode trabalhar em diferentes segmentos do setor, como indústrias, tradings, laboratórios de controle e qualidade, fazendas, cooperativas, associações e, também, de forma autônoma, com a emissão de laudos de qualidade e serviços de consultoria. Na indústria, ele atua em várias etapas, mas principalmente na recepção e checagem de qualidade da matéria-prima. “Por meio de avaliação física e sensorial, ele pode aprovar ou rejeitar um lote de café que foi comprado, ao verificar se a qualidade está de acordo com os parâmetros preestabelecidos em contrato”, explica Donieverson. Outro ponto importante é a definição do produto. “Por meio de avaliação sensorial e checagem de qualidade, o profissional pode chamar atenção sobre pontos em alguma etapa do processo industrial, para melhoria e, também, para fazer a seleção de uma linha de perfis que serão utilizados pela marca, direcionando os pontos de acordo com o público e o mercado consumidor”, completa.
No campo, o Q-Grader tem papel fundamental. É ele que faz a avaliação de todos os lotes de café produzidos na propriedade, por meio de metodologia internacional e respeito aos diferentes parâmetros de análise sensorial padronizados, a fim de que o mesmo produto possa ser avaliado por diferentes profissionais, nas mesmas condições ou o mais próximo possível delas. “Sem dúvida, as propriedades com recurso e estrutura para um laboratório, onde seja possível fazer a análise sensorial de todos os lotes cultivados, têm um diferencial”, aponta Donieverson. Ele acredita que é fundamental ter um profissional certificado para auxiliar na avaliação.
É importante, também, que este profissional esteja calibrado com profissionais da mesma região e de áreas diferentes, que lidam com perfis e processamentos distintos de cafés, para que o “vício sensorial” seja menor. Além disso, é importante que não haja restrição de acesso a diferentes terroirs. “Profissionais que estão sempre provando cafés da mesma região ou propriedade tendem a padronizar a avaliação, e avaliar de forma equivocada diferentes qualidades de cafés de qualidade diferentes”, alerta o profissional.”É fundamental, sempre que possível, a calibragem e a avaliação de diferentes grãos e regiões”, sugere. Por fim, é interessante que haja na propriedade pelo menos dois profissionais para análise sensorial do café, de modo que se possa discutir pontos convergentes e divergentes quanto à amostra analisada.
O trabalho do Q-Grader também é relevante na venda do café. “Com a classificação e o laudo, chega-se a um valor comercial estimado para o produto”, ensina Donieverson. Com essa análise em mãos, é possível buscar e aplicar o café em diferentes mercados e empresas de compra e venda, para a obtenção de uma rentabilidade atrativa para o produto”, explica. A classificação, porém, é um respaldo para a qualidade, e não um certificado obrigatório para as empresas de comercialização. Ou seja, a negociação deve acontecer de modo que as duas partes sintam-se satisfeitas.
Texto originalmente publicado na edição #81 (setembro, outubro e novembro de 2023) da Revista Espresso. Para saber como assinar, clique aqui.
TEXTO Gabriela Kaneto