Café & Preparos

O tecido musical de Ná Ozzetti

A cantora e compositora de raiz experimental e independente comemora quarenta anos de carreira fazendo o que sabe melhor: boa música brasileira

No meio do já urbanizado bairro da Água Branca, em São Paulo, surgiu, no final da década de 1950, numa rua de terra batida e sem iluminação, um loteamento. Foi nesse pedacinho de interior dentro da cidade grande que cresceu a cantora Ná Ozzetti.

“Minhas primeiras memórias são todas musicais. Lembro dos almoços na casa do meu avô materno, nos quais os casais dançavam ao som do acordeon tocado pelo meu tio. Eu me encostava na parede e acompanhava as danças”, conta.

“Meu pai ouvia músicas em um radinho à noite e eu me recordo de adormecer escutando as canções. Também tinha facilidade para aprender a cantar. Era afinada desde pequena”, garante.

A incursão pela música se aprofundou quando seu pai comprou um piano. Ná aprendeu a tocar e experimentava novos sons com seu irmão, Dante Ozzetti. Mas, quando chegou a hora de prestar vestibular, o destino quis que ela cursasse Artes Plásticas.

“A faculdade de Música em São Paulo na época era a Escola de Comunicação e Artes (ECA), da Universidade de São Paulo. Ela era voltada para a música erudita e buscava estudantes com histórico em conservatório que já haviam sido preparados para isso. Não era o meu caso”, lamenta.

“Passei em Artes Plásticas e a experiência de lidar com outra linguagem artística que não a música foi muito importante. Enriqueceu minha relação com a música”, destaca.

Grupo Rumo

A faculdade de Artes Plásticas sem querer também empurrou Ná para a música. Ela e a hoje artista plástica Edith Derdyk ficaram amigas. Edith – que na época namorava Paulo Tatit, um dos fundadores do Grupo Rumo – comentou que a banda procurava uma voz feminina. O ano era 1979.

“Paulo era o mentor da ideia da banda, que é baseada no canto falado e no processo da canção brasileira. Ele e Luiz Tatit agregavam músicos e não músicos ao projeto. Formou-se um grupo que era mais de estudo, de experimentações, e que fazia apresentações sempre com muito público”, contextualiza. “Eu estava louca para cantar profissionalmente, encantei-me com a proposta e achei muito bacana a ideia experimental”, relembra.

Ná consolidou-se como vocalista do Grupo Rumo e quase dez anos se passaram até ela tentar um voo-solo, incentivada pelo pessoal do Teatro Lira Paulistana. “Eles faziam um projeto intitulado Cantoras da Vanguarda Paulista para shows em versão solo. Caso das cantoras das bandas do Arrigo Barnabé e do Itamar Assumpção. Eles me convidaram e eu chamei o Dante, meu irmão, para me ajudar com os arranjos. Foi a primeira vez que fizemos música que não no contexto de casa”, assinala.

Os amigos do Grupo Rumo também estimularam sua nova empreitada. “A proposta do Rumo era clara e eu como integrante tinha total disponibilidade para trabalhar naquela linguagem. Adorei a experiência de explorar o canto e o repertório de outras formas. Comecei a fazer shows, a ir experimentando a banda e formando público”, relata.

Certo dia um dos donos do Lira Paulistana, Wilson Souto Jr. (o “Gordo”), foi chamado para ser o diretor artístico da gravadora Continental, especializada em música brasileira. Ele teve a ideia de fazer um especial com música regional paulistana e chamar um compositor, uma cantora e um grupo instrumental para gravar álbuns. Os escolhidos para esse especial foram respectivamente Itamar Assumpção, Ná Ozzetti e o grupo Pau Brasil.

“Foi aí que tive a oportunidade de gravar um disco com infraestrutura. Até então era uma artista independente”, revela.

Música e letra

Para o repertório do primeiro álbum, Ná reuniu os amigos e parceiros importantes naquela época. Participaram José Miguel Wisnik, Itamar Assumpção, seu irmão, Dante, entre outros. No Rancho Fundo, que era parte do repertório dos shows do Rumo, também entrou no álbum.

Após essa experiência, a versão compositora de Ná Ozzetti começou a nascer. “Nem me imaginava compositora. Sempre gostei de cantar e para mim teria sido isso. Acontece que eu dirigia minha interpretação de acordo com o arranjo”, explica. “Entre o primeiro e o segundo disco, voltei a estudar piano e harmonia para ter mais independência, para já chegar aos processos tocando as minhas ideias”, complementa.

Durante uma viagem em que estava experimentando exercícios musicais, a amiga Edith Derdyk identificou boas músicas na produção de Ná. Escreveram as letras e as mostraram a Luiz e Paulo Tatit, que adoraram.  “Foi aí que comecei a compor. Enviava os arranjos para que Luiz Tatit e Itamar Assumpção, meus primeiros parceiros, colocassem as letras”, lembra.

Ainda hoje Ná associa o processo de composição a uma brincadeira de infância. “É um processo lúdico muito gostoso de ficar imaginando coisas. Eu pego uma linha melódica, depois crio uma segunda e brinco de inserir uma na outra. Assim vou criando um tecido musical”, entrega.

Balangandãs

Em 2009 Ná ficou conhecida por interpretar clássicos de Carmen Miranda no show e álbum Balangandãs. A relação com a obra da Pequena Notável começou ainda no Grupo Rumo, durante o projeto Rumo aos Antigos, que tocava músicas de cantores e compositores da década de 1930.

“A gente vê a coisa externa do visual de Carmen, que é bárbaro, mas esquece que ela tinha uma inteligência no seu canto, que é tão exuberante quanto a imagem. Comecei a notar como ela influenciou o canto tipicamente brasileiro”, revela.

Ná havia incluído algumas músicas de Carmen Miranda em um show de retrospectiva, de 2007, quando o então diretor da gravadora MCD deu a ideia de ela gravar um álbum interpretando apenas a obra da cantora.

“Na hora falei: jamais. Mas pensei melhor e vi quanto ela era importante para o meu canto. Fiz primeiro os shows, depois gravei o CD, foi o inverso”, brinca. “E foi um trabalho em conjunto, de banda, com os músicos que tocam comigo até hoje e que participaram dos álbuns posteriores”, pontua.

Celebração

O ano de 2019 é importante para Ná Ozzetti: ela completa quarenta anos de carreira. O momento, tão especial, foi celebrado com o lançamento de um novo CD do Grupo Rumo, Universo. É uma turnê denominada Ná 40 .

“Foi incrível esse processo com o Rumo porque a gente não imaginava fazer outro trabalho. E foi uma sensação maravilhosa de que o tempo não havia passado. Parecia que tínhamos feito shows no dia anterior e nos encontrado para gravar outro CD”, relata ela, que participa do novo álbum como compositora de duas canções.

Já a turnê comemorativa também é um momento de celebração. “Engraçado que hoje eu me sinto muito confortável com as minhas escolhas. Estou muito feliz com o caminho que acabou sendo trilhado porque eu sempre segui meu coração em relação à música. Eu consegui realizar as coisas que queria e da forma que queria”, reflete.

(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso referente aos meses setembro, outubro e novembro de 2019 – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).

TEXTO Leo Valle • FOTO Marcus Steinmeyer

Deixe seu comentário