Cafezal •
De ponta a ponta – Fazenda Sertãozinho
As etapas de produção do café especial são minuciosas, são diversas mãos para chegar ao consumidor. Fomos conhecer a história do Café Orfeu, que, de fazenda que exportava, virou foco do mercado interno, e cujas variedades mostram a história da pesquisa do grão no Brasil
Dia nublado e a esperança de um solzinho para aquela foto ficar incrível. Assim que chegamos à Fazenda Sertãozinho, em Botelhos, no Sul de Minas, encontramos esse céu e uma vista maravilhosa. Lá conhecemos alguns personagens que nos guiaram pela história de toda a fazenda que tem tradição no café: seu talhão mais antigo é de 1948.
Foi no ano de 1995 que Roberto Irineu Marinho se interessou pela fazenda e começou a investir em tecnologia e maquinário para uma produção melhor. José Renato Gonçalves Dias (conhecido como Zé Renato), engenheiro agrônomo e atual diretor de todo o grupo das Fazendas Sertãozinho, que são compostas por 5 fazendas, sendo 2 localizadas no Sul de Minas Gerais (Sertãozinho e Cachoeira) e 3 localizadas na Mogiana, região do Vale da Grama (Rainha, Santa Inês e Laranjal). A principal e maior fazenda é a Sertãozinho, onde se localiza o Jequitibá-rosa de 1.500 anos, um ícone da marca, e também a Torrefação de Orfeu, local em que o café já sai embalado e pronto para consumo, conta que sempre se produziu café na fazenda Sertãozinho. O problema, segundo ele, é que todo grão colhido virava um único lote. “Começamos a perceber que cada área dava uma bebida diferente, por isso tínhamos que separar os lotes das fazendas”, explica.
O café plantado até então era exportado e muito conhecido pelo mercado japonês, inclusive por marcas como Nespresso e illy (para o café italiano). “Quando os gringos vinham a Sertãozinho, a fazenda era rota certa de visita”, afirma Zé Renato.
Com investimento e muito estudo, os funcionários perceberam a importância de mapear a fazenda por variedade, altitude, fácil exposição solar e tipo de solo. Os grãos passaram a ser colhidos isoladamente e guardados nas tulhas. “Quando separamos esses lotes, vimos os verdadeiros tesouros que estavam ali, mas o que acontecia antigamente era que misturávamos o café especial com um não tão bom e tínhamos um tipo de café”, explicou o agrônomo.
Segundo ele, a partir do momento em que os lotes foram separados, descobriram as bebidas excepcionais que estavam escondidas na fazenda e a importância desse processo. Os cafés foram então explorados e passaram a participar de concursos de qualidade.
Café premiado e variedades
Em 2005 ocorreu a entrada oficial no mercado de cafés especiais da Café Orfeu. Foram dez anos de investimento nas fazendas até que se chegasse à marca. Antigamente todo café fino era exportado, até que os proprietários fizeram uma avaliação e hoje eles mantêm os grãos no mercado interno.
Com essas mudanças na fazenda, foi muito importante conhecer os aromas e entender qual café era produzido. “Vimos uma única fazenda produzindo uma diversidade grande. Imagina pelo Brasil todo, quantos grãos não temos?”, questiona Zé, que se especializou na prova dos cafés para entender sobre a bebida que era produzida ali.
A cada 5 hectares, uma variedade é plantada. A sorte é que o solo e o clima local contribuem muito para as plantações. Zé brinca que a colheita ocorre nos meses sem “r” (maio, julho, junho, agosto), que são os mais secos e frios do ano. “Se, na época da colheita em determinada região, chove e não é tão frio, será mais difícil ter um bom café. Aqui temos o privilégio de não ocorrer chuva nesse período. Assim, conseguimos doçura e qualidade, com tempo seco e frio, e, é claro, o capricho na hora de tirar o grão da árvore e não misturar lotes”, completa.
Tudo é produzido ali na fazenda, do café às cápsulas que chegam às lojas. Os grãos, inclusive, já ganharam várias premiações. No ano passado, no concurso Aroma BSCA (Associação Brasileira de Cafés Especiais), o café ficou em primeiro lugar na categoria via úmida e segundo na via seca. Os funcionários que participam do processo dos cafés premiados recebem uma homenagem, “afinal as mãos deles ajudaram a produzir o café, é uma forma de incentivar”.
Trabalho minucioso
A fazenda conta com dois processos de produção: para o cereja descascado, Zé explica que, assim que é seco, esse café já está pronto para ser torrado, por ter boa doçura, acidez, aroma. Agora, aquele café que seca na árvore e vai virar o natural é guardado e seco. “Coloco 11% de umidade, guardo nas tulhas e vou usar seis meses depois. Já que é um café mais encorpado, não consigo torrar imediatamente, senão terá gosto de folha. Por isso deixo que ele descanse na tulha (uma espécie de tonel de madeira, para guardar o café com a casca), para me dar um café encorpado e doce.”
Normalmente a exposição ao sol é de 4 a 5 dias para a secagem. Depois os grãos vão para um secador estático, que imita a natureza. O café recebe um pouco de vento e calor durante o dia e à noite o secador é desligado, para que o café se iguale e chegue a 11% de umidade uniforme – igualzinho dentro e fora do grão. “É preciso secar e descansar, secar e descansar. Se você sai de 22% de umidade e leva para 11%, ou com alta temperatura, o que acontece? Ele seca por fora e fica com umidade dentro do grão, ou seja, cru como um bolo quando não assa corretamente. Daí a importância de secar bem devagar. Chegamos aos 11%, 11,5% e guardamos nas tulhas. Secar café é uma arte que exige muito cuidado e capricho”, pondera Zé.
A fazenda planta também o café orgânico, que, segundo o agrônomo, antigamente era visto como um café de baixa qualidade, já que possuía muitos fungos, brocas, pragas e normalmente não produzia uma bebida excepcional. Assim, muitos produtores saíram do café orgânico por conta de uma produtividade que era baixa, não compensava financeiramente.
José Braz Matiello, agrônomo da Fundação Procafé e o maior especialista em genética do café do Brasil, trouxe para a fazenda uma variedade super rigorosa, resistente a doenças. Essa variedade foi plantada a 1.300 metros de altitude, o que resultou em uma boa bebida, quebrando o tabu do café orgânico. “Já estamos indo para a terceira safra, usando a genética a nosso favor. A primeira foi plantada em 2014 e conta com alta pontuação. Em 2017 chegamos a 94 pontos, e, em 2018, a 92 pontos.”
“Ah, o café é minha vida”…
José Renato Gonçalves Dias, o Zé Renato, é quem hoje está por dentro de tudo o que acontece na Fazenda Sertãozinho, conhece todos os detalhes, e sabe sobre as prioridades do café. Foi ele quem nos acompanhou ao longo do dia e apresentou cada pontinho especial.
Zé Renato é a sexta geração da família no café. São mais de vinte anos dedicados ao grão. Ele nasceu numa cidade que fica na divisa de Minas Gerais com São Paulo e acompanhou o avô e o pai nesse ramo. “Com 12 anos já participava de congressos de café, acompanhei o processo desde menino.” Formou-se na cidade de Lavras e se tornou engenheiro agrônomo. Fui fazer Agronomia para me especializar no café, minha vida sempre foi o café”. Foi ele quem acompanhou de pertinho todo o processo de mudança do conceito do café da fazenda.
“Hoje construí minha família aqui na fazenda, tenho três filhos e o mais velho também quer fazer Agronomia. A família da minha esposa também é do café desde 1890 e a minha está no ramo desde 1870.” Segundo Zé Renato, seu objetivo é produzir um café de qualidade, e hoje é muito gratificante olhar para trás e ver tudo o que foi construído.
Em meio a tantas variedades plantadas na fazenda, a sua preferida é a arara, que, segundo ele, é excepcional, produtiva e resistente. Prefere saborear o café coado. “Tomo o dia todo feliz. O espresso tomo uma vez por dia.”
Sem rotina e com muitos testes
Sabe aquele senhorzinho simpático que você encontra em filmes e de quem tem vontade de ouvir todas as histórias? Esse é o doutor José Braz Matiello, que há mais de cinquenta anos se dedica ao grão, com muito brilho nos olhos (que percebemos durante toda a visita à fazenda), trazendo novas variedades. Anos de pesquisa, cuidado e atenção.
Seus avós italianos chegaram ao Brasil para trabalhar nas lavouras de café, algo que se tornou uma tradição na família. Matiello, que viveu no Espírito Santo, seguiu os caminhos dos avós e pais, tornou-se agrônomo e passou a dedicar sua carreira a criar variedades de café, e assim renovar a cafeicultura. Em 1951 passou a fazer parte do Instituto Brasileiro do Café (IBC) e a coordenar uma equipe de 400 agrônomos na parte de pesquisa e assistência técnica. “Renovamos a lavoura desde a década de 70, pensamos na mecanização, irrigação, zoneamento climático, determinação das regiões, espaçamento, adubação…”, contou Matiello.
Em 1990 o IBC acabou, e assim foi criada a Fundação Procafé. “Criamos estatutos e aproveitamos a estrutura para as pesquisas, e assim mantivemos o patrimônio tecnológico.”
Neste ano a Orfeu homenageou Matiello com uma edição especial do acauã, uma variedade que foi cruzada em 1980 e apenas nos anos 2000 teve seu plantio expandido. Matiello conta que essa variedade foi criada com resistência à ferrugem, nematoide, produtiva e com porte baixo, o que facilita o manejo e o trato. Para um cruzamento desses são pelo menos quatro safras (seis anos e meio) para se ter certeza de que o resultado é positivo.
Sobre o trabalho, Matiello afirma que é necessário ter interesse e muita vontade de trabalhar. Ter ideias e testá-las é o caminho principal para criar variedades. “Claro que a sorte ajuda muito, já que se pode realizar um cruzamento e não dar certo. Observar cada detalhe é importante.”
Um sonho? “Que o preço do café não caia, que o produtor siga animado em trabalhar, pois a motivação é a melhor maneira de produzir, e que novas variedades sejam encontradas”, finaliza.
(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso referente aos meses junho, julho e agosto de 2019 – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).
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