Alguns meses depois de me mudar da Inglaterra para São Paulo, adoeci. Fui ao hospital para fazer alguns exames e, depois duma coleta de sangue, eu desmaiei. (Não se preocupe, esta história acaba bem, prometo). Depois que acordei, a enfermeira disse que sabia o que me ajudaria. Ela fez meu marido me ajudar a ir até um corredor, onde ela apontou não para um copo d’água, suco ou biscoitos (coisas que eu esperaria receber nessa situação num hospital inglês), mas, sim, para uma garrafa térmica de café.
Eu bebi… E, sim, eu me senti um pouco melhor. (Viu? Disse que ia acabar bem).
É uma boa história, ilustrativa quando eu explico meu trabalho para estrangeiros porque qualquer pessoa que tenha um interesse por café em qualquer lugar do mundo sabe que o Brasil é o maior produtor mundial de grãos. Muito menos conhecido, porém, é o fato de o Brasil ter recentemente ultrapassado os Estados Unidos como o maior consumidor de café do mundo. Como eu descobri no hospital, o café realmente está em todo lugar. Essa combinação simultânea de altos níveis de produção e consumo criou uma economia de café híbrida em que as demandas de produtores e consumidores são mais aproximadas do que nos países importadores do café. Foi em resposta a esse cenário único que estive em São Paulo: eu estava conduzindo uma pesquisa que fazia a pergunta: “como é a comunidade de consumidores de café especial num país produtor?”. É claro, o café na garrafa do hospital não era o especial, mas eu também tive que entender o panorama geral do consumo da bebida: se o café já está em toda parte da sociedade, por que se dar ao trabalho de buscar, comprar, pagar e gastar tempo com outro tipo? Em outras palavras, por que fazemos as coisas que fazemos em relação ao café?
Uma parte complicada dessa pesquisa foi como definir “comunidade de cafés especiais”. É um exercício mesmo! Experimente: como você definiria esse grupo? Quem está dentro? Quem não está? Durante minhas observações, era comum encontrar uma gama diversificada de profissionais e entusiastas em eventos e oportunidades educacionais, muitos dos quais ocupavam as duas metades do binário. Aqueles que inicialmente imaginei serem profissionais do café muitas vezes mudavam do café para outros empregos de hospitalidade ou serviços, enquanto muitos entusiastas eram ex-profissionais do café ou esperavam trabalhar com ele algum dia. E todo mundo era um ‘consumidor’ de alguma forma.
A fronteira que define essa comunidade é nebulosa, na medida em que o termo engloba uma longa cadeia de produção e fornecimento, da origem agrícola do produto ao barista que serve uma bebida a um cliente ou ao indivíduo que faz seu próprio café em casa de manhã. Eu não fui a única pessoa com dificuldade em entender a forma desse grupo. Como me disse o dono de um café em São Paulo: a comunidade de café especial “não é visual como a do rock. Você não vê alguém e fica tipo, ‘Ah sim, aquele cara com a jaqueta jeans, com certeza ele é da comunidade do café’”. O que, além das transações comerciais, liga todas as pessoas nessa ‘cena do café’?
A solução foi fornecida pela Tereza Cristhina Barbosa, da Pasta de Amendoim da Tereza, numa tarde chuvosa, enquanto tomávamos café na cafeteria Takkø. Além de ser empreendedora de pastas de amendoim, ela ama cafés especiais. Ela os ama tanto que se descreveu como “apaixonada”. Aqui estava a minha chave: paixão.
Nem todos os bebedores de cafés especiais sentem paixão, da mesma forma que nem todo cliente de uma cervejaria artesanal é fanático por cerveja. Encontrei muitos clientes de cafeterias especiais que só moram ou trabalham nas proximidades e as visitam por conveniência, ou tenham uma preferência genuína por café especial em comparação com o café convencional, mas não se preocupam em fazer disso um hobby. O que distingue as pessoas que constituem essa comunidade é que a sua paixão por cafés especiais é um pilar importante de seu estilo de vida; a paixão motiva as ações. Ter a paixão como denominador comum me permitiu considerar pessoas de todo o setor cafeeiro brasileiro em meu trabalho, conversar, aprender e conhecer pessoas de toda a cadeia como parte dum único grupo.
A paixão é assim: não é estática. Sentimos profundamente, queima, está vivo. É um sentimento que inspira e motiva, pode dar forma à vida e nos ajuda a encontrar valores além do monetário. Por exemplo, conheci um jovem barista que viajava quase duas horas da periferia para chegar a seu emprego numa cafeteria especial – sua paixão por café o ajudou a moldar a sua aspiração por uma vida diferente. Ele teria ganhado quase o mesmo dinheiro trabalhando na padaria de seu bairro, mas seguiu sua paixão até o centro da cidade. Ou considere os dois advogados que conheci que haviam deixado seus empregos na advocacia para trabalhar com café: eles não eram felizes como advogados, e o valor de sua paixão pelo café superava o corte no salário que veio com essa transição de trabalho. Através da paixão vêm as possibilidades da vida. A paixão por café também nos conecta com outras pessoas: até eu morrer, não esquecerei o som de todos gritando na SIC 2018, quando Emi Fukahori, de Switzerland, ganhou a copa mundial de cafés coados com um café brasileiro – ou de que vi vários trabalhadores agrícolas supermasculinos chorar neste momento. A paixão nos une. Até mesmo, no caso da vitória de Fukahori, em um momento turbulento no país, poucas semanas após a última eleição presidencial.
E então, o que é ser uma comunidade de café especial em um país produtor? É usar a paixão como forma de construir um futuro diferente, melhor, com mais autodeterminação. É usar isso como uma força motivadora para superar obstáculos e, em seguida, removê-los: mesmo quando são muitos, mesmo quando é desafiador.
TEXTO Dra. Sabine Parrish - antropóloga e pós-doutorada no Centre for Food Policy da City University London • ILUSTRAÇÃO Eduardo Nunes