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“O Brasil tem tudo para aumentar sua liderança no mercado mundial de cafés”, diz Eduardo Carvalhaes
Para o sócio do tradicional Escritório Carvalhaes, de análises, corretagem e serviços no comércio e exportação de café, o país reúne clima, história, conhecimento, pesquisa e técnica, mas corre riscos se não investir em pesquisa, visão estratégica e legislação clara
Por Cristiana Couto e Caio Alonso
Com mais de 40 anos no setor cafeeiro e à frente, com o irmão Nelson, do centenário Escritório Carvalhaes, em Santos, Eduardo Carvalhaes é uma das vozes mais respeitadas da cafeicultura brasileira. Na conversa com a Espresso, ele analisa as mudanças que transformaram o comércio do café, o novo papel do exportador e os impactos das novas tecnologias e novas exigências globais. Testemunha ocular da história recente do grão no país, ele acompanhou o fim do Instituto Brasileiro do Café, o surgimento do mercado livre, os anos de inflação alta e a estabilização da economia com o Plano Real.
Entre dados, memórias e visão de futuro, Carvalhaes comenta sobre o Brasil, seu papel como liderança mundial e seus desafios, e revela o sonho de ver os 300 anos da chegada do café ao Brasil sendo devidamente comemorados. Para ele, o país reúne clima, cultura, pesquisa e técnica, mas corre riscos se não investir em pesquisa, leis claras e visão estratégica para enfrentar a realidade do mercado atual. Confira a entrevista a seguir, feita ao vivo em Santos.
Espresso: O Escritório Carvalhaes tem mais de cem anos. Como começou essa história?
Eduardo Carvalhaes: Na década de 1880, meu tio-tataravô, produtor de café no sul de Minas, montou uma comissária exportadora em Santos. Meu bisavô, José Ildefonso Carvalhaes, tornou-se sócio da Vicente Carvalhaes Comissária e Exportadora em 1887. Por volta de 1914, com uma grande inundação no Porto de Santos, o negócio quebrou, e não havia seguro nem nada. Meu avô e seus irmãos, então, entraram na história. Já tinham conhecimento, um nome no mercado de café, e a economia do Brasil era o café. Eles começaram a trabalhar com prestação de serviço, em corretagem, porque não tinham capital para serem exportadores. Foi assim que nós começamos.
Quais são as linhas de negócio do Escritório Carvalhaes?
Hoje, atuamos principalmente com corretagem especializada em cafés de qualidade, com exportação, prestação de serviços para exportadores e cooperativas e com análise de café. Nosso Boletim Semanal circula desde 1933, sem interrupção. Fazemos amostragem, análise sensorial e física de café. Nosso Lab Carvalhaes possui certificação ISO 9001 desde 2003, auditado anualmente pela Fundação Vanzolini, e é credenciado pela Abic [Associação Brasileira da Indústria de Café] para seu Programa de Qualidade de Café. Orientamos, técnica e comercialmente, produtores e compradores de café que buscam um produto diferenciado.

Eduardo Carvalhaes em seu escritório, consultando antigas publicações da empresa – Foto: Agência Ophelia
Como você começou a trabalhar com café?
Sou engenheiro químico e trabalhei por oito anos em um escritório de projetos industriais em São Paulo. Vim para o café em razão da hiperinflação dos anos 1980, que prejudicou a engenharia de projetos industriais brasileira. Na época, 1983, o café estava indo bem e decidi experimentar. Acabei gostando e fiquei.
Eu e meus dois irmãos, Sergio e Nelson, que já estavam no Escritório Carvalhaes, começamos a trabalhar juntos. No final dos anos 1980, o sistema de cotas de exportação acabou, e foi possível registrarmos uma exportadora de café. A nossa foi uma das primeiras, e se chamava Porto de Santos.
Como construíram a parceria com a illycaffè?
No início de 1990, recebemos a visita de Ernesto Illy, presidente da illycaffé, que queria montar um negócio de café diferente. A illy, em termos mundiais, não era grande, mas era muito respeitada pela qualidade de seus cafés. Ernesto disse que comprava café brasileiro, um dos melhores para espresso. Ele vinha ao Brasil, experimentava o café, comprava, e o que chegava lá era diferente. Disse que pretendia fazer um concurso de qualidade para café no Brasil, para localizar e estimular a produção de cafés de qualidade para espresso, e que precisava de uma empresa que comprasse esses cafés.
Naquela época, já trabalhávamos no mercado de café gourmet. Inicialmente, fizemos um contrato para comprar os cafés do concurso e Nelson ficou à frente da nossa exportadora. Paralelamente, enviávamos amostras de cafés brasileiros finos para ele, e o negócio cresceu. A illy foi a primeira a comprar cafés descascados brasileiros, ainda nos anos 1990. Comprávamos pequenos lotes, pagando um preço acima do pago para os naturais. Embarcávamos tudo separadamente, e eles faziam os blends. Com os bons preços, a produção de CD foi aumentando, e o Ernesto, comprando, e outros compradores começaram a adquirir os nossos CDs, e produção e exportação cresceram rapidamente. Dos anos 1990 aos 2000, a illy pagava os maiores preços do mercado, estimulando a produção de cafés finos no Brasil.
Qual foi a grande transformação que aconteceu no mercado nas últimas décadas?
Foi o fim do Instituto Brasileiro do Café [IBC], em 1989, no dia da posse do Fernando Collor como presidente. Até 1960, mais de 50% da nossa receita vinha do café. O fim do IBC desmanchou uma rede de armazéns e técnicos de qualidade. A parte boa é que liberou o comércio de café no Brasil, e nossa produção e exportação cresceram exponencialmente. Muitos quebraram, gente que vendia seus estoques e produção para o governo, e muito cafeicultor saiu do negócio. Mas quem se adaptou, cresceu. Houve força para extinguir o IBC porque o Brasil já não dependia mais só do café. A industrialização avançava e a produção agrícola e a economia diversificavam. Essa decisão do Collor mudou tudo. Em 1999, o Brasil atingiu 20 milhões de sacas exportadas, depois 30 milhões em 2009, em 2019, 40 milhões e, no ano passado, mais de 50 milhões. Isso mostra como a liberdade de mercado e a qualidade do café elevaram a competitividade dos cafés do Brasil.
Santos já foi uma grande praça de comercialização. Hoje, esses lugares estão mais próximos das plantações?
Digo que a história do comércio de café é a história da evolução da comunicação e sua velocidade. Temos uma fotografia de Santos, do início da década de 1950, na rua XV [de Novembro], lotada de gente durante o dia. Era assim porque era na rua que a gente tinha a informação. A comunicação com o interior era feita somente por telegrama, que demorava para chegar e para voltar – levava uma semana, no mínimo, para completar. Só então podíamos vender o café. Às vezes, o mercado já tinha mudado.
Nós tínhamos uma ordem para vender por X e o valor já estava em “X mais dois”; vendíamos por “X mais dois” e entregávamos o dinheiro para o produtor. Mas havia quem vendesse por X e embolsas se o “mais dois”. Muitos fizeram fortuna assim. Também, não havia cooperativas no interior, mas existia o maquinista, alguém com capital que fazia esse papel. Ele comprava o café de produtores pequenos, rebeneficiava, fazia um lote grande e mandava para o corretor dele.
Só produtores maiores negociavam diretamente com o exportador. Na praça santista, o exportador era o primeiro a ter a informação, e comprava. Levava um tempo para a notícia se espalhar. O maquinista punha um rádio nos escritórios dos corretores, ficava sabendo o que acontecia no mercado e comprava. Me lembro de acordar e dormir com meu pai ao telefone, porque as linhas eram poucas e viviam congestionadas. Depois, vieram o DDD, o aparelho de telex, o computador, o fax, o e-mail, o whatsapp, a comunicação em rede, instantânea e a custo quase zero. Agora, convivemos com a inteligência artificial. Na pandemia, descobri que só preciso estar fisicamente no escritório para provar e analisar café. Fomos pioneiros no mercado de café no uso do computador, do telex, do fax, do celular. A cada ano, a grande praça de comercialização de café é a internet, as redes sociais. Hoje, trabalhamos com produtores e compradores de café de todo o Brasil. A nova rua XV do comércio de café é a internet.
E aí, com essa movimentação toda…
Naquela época, os sindicatos eram fortes. Tinha sindicato para quem carregava as sacas de café, para quem costurava as sacas, para quem fazia as sacas… Os sindicatos não perceberam que as coisas mudavam com as mudanças na comunicação. Esses serviços começaram a ficar caros, e as cidades do interior queriam fazer esses serviços. Já tínhamos as ferrovias e a via Anchieta. E, um por um, os armazéns foram embora da praça de Santos.
O que mais interfere no preço do café? Clima, câmbio ou política?
Tudo. O mundo globalizou. Se Donald Trump insistir na tentativa de desglobalização, pode tirar os Estados Unidos da liderança do mundo. Acho que não vai acontecer. A globalização, com esse nível de comunicação, não anda para trás.
O clima também mudou. São tantas variáveis que não é possível enxergar a resultante delas. Como toda essa mudança na economia mundial, por exemplo, vai influenciar o consumo? No tempo do IBC, o Brasil tinha estoques enormes. Quando houve a geada de 1975, nós tínhamos mais de uma safra estocada. Mas era outro mundo, não adianta olhar para trás e querer repetir a mesma coisa.
Com o consumo crescendo, o que vai acontecer a médio e longo prazos com os preços?
A produção de café no Brasil tem concorrência e disputa por terras com outros produtos agrícolas. E ele é muito mais trabalhoso do que outras culturas. Você não pode ser produtor de café como há 40 anos, morando na cidade e indo à fazenda só no fim de semana. Tem que estar presente, senão vai perder dinheiro. Por isso, acho que se não tivermos bons preços para o café, muitos podem migrar para outras culturas. O investimento em café é alto, e a maioria dos produtores está diversificando.
Tem também o clima. Termos saído de 20 milhões para 50 milhões de sacas em 25 anos acabou com nossos estoques de café. Nesse tempo, tivemos safras boas e ruins, e sempre crescemos porque havia estoque. Agora não temos mais. E quanto temos de estoque de passagem da safra 2024? Os exportadores acham que existe mais do que eu acredito, e as cooperativas reconhecem que os armazéns nunca estiveram tão vazios.
Antes, havia café de 10 anos guardado. Hoje em dia, é raro. O produtor vende tudo na safra, ou guarda um pouco se a próxima for pequena. O problema é que não temos estoques, nem aqui nem no restante do mundo, e o clima está irregular. Todo o resto deriva disso.
Além disso, não existe mais aquele pregão tradicional, nem nas bolsas de valores, nem nas de café. Tudo é eletrônico. E o que interessa para as bolsas é gerar corretagem: para isso, facilitam o giro. Existem milhares de pequenos investidores no mundo, e não dá para prever como vão reagir. Sai uma notícia nas redes sociais de que o Trump vai fazer algo e já começa a mudança de posição para garantir os lucros. Isso é novo.
Vejo análises com gráficos e projeções de mercado em bolsa, mas acho isso perigoso. O mundo mudou. As análises atuais consideram padrões que já não servem mais, ou servem muito pouco.
Como você vê o papel do Brasil nessas próximas décadas?
Há uma grande oportunidade para o Brasil. Nós temos terra, temos clima. Temos que continuar investindo em pesquisa. Vamos continuar crescendo. Se trabalharmos direito, vamos chegar a 50% da produção mundial. Não vejo, nos outros países, um movimento assim. Temos novas regiões, novos produtores, como em Rondônia. Existem, claro, barreiras. Há dificuldade de fazer com que os filhos voltem para o campo, e temos, também, que resolver os problemas da legislação trabalhista. Agora, se resolvermos esses problemas, vamos continuar sendo o celeiro do mundo. O mundo vai precisar de alimento. E o Brasil tem tudo para estar entre os principais produtores. No café, sabemos produzir, temos a cultura de produção, conhecimento e história.
Qual a sua opinião sobre os efeitos globais da EUDR?
Isso é uma guerra econômica. A grande maioria dos nossos cafeicultores segue a lei. O Cecafé [Conselho dos Exportadores de Café do Brasil] divulga regularmente no mercado uma lista denunciando produtores que não seguem a lei, para que exportadores não comprem deles, mostrando que está trabalhando nisso. São poucos, se considerarmos o universo de produtores. A EUDR vai ficar mais branda, mas temos que mostrar números. Sempre falamos em agregar valor ao café brasileiro. Mas até para prova de café e selo de qualidade, estamos mandando dinheiro para fora do Brasil.
Temos de reunir todos os segmentos – indústria, produção, comércio, exportação – e atualizar as provas e normas da Classificação Oficial Brasileira, para provas do tipo SCA, com notas. Outra coisa é selo de qualidade. Temos as leis trabalhistas mais rigorosas do mundo, e elas precisam ser claras. Também temos as leis ambientais mais rigorosas. Temos que criar um selo dizendo que aquele café que embarcamos é de um produtor que segue as leis brasileiras. Com a informatização, ficou muito fácil fazer rastreabilidade, já estamos fazendo. No começo, podem não aceitar os selos, mas com o tempo, trazendo compradores e imprensa para as fazendas, isso mudará. Mas precisamos de leis claras.
Então, no fundo, a EUDR é uma oportunidade para o Brasil.
Acho que é. Temos que ver quais são as intenções deles. Estamos numa situação boa em relação a nossos concorrentes, e temos que mostrar isso para o mundo.
Mas precisamos melhorar, sempre. E temos condições. Todo café embarcado passa por agências que emitem certificado de origem, comprovando que o café foi produzido no Brasil. Se montarmos um sistema de fiscalização, essas agências podem emitir o certificado de sustentabilidade, com rastreamento.
O que me entusiasma é ver as regiões produtoras começando a montar certificações de origem. Embora o prêmio ainda seja pequeno, estão construindo algo sólido para a próxima geração. É um movimento mais demorado, mas acho que o Brasil tem tudo para liderar nessa área.
A sustentabilidade no café é só um movimento de marketing ou é uma necessidade?
Alguns fazem por necessidade, mas as novas gerações acreditam nisso. Há um movimento, de uma geração para outra. As fazendas estão mantendo áreas de proteção. E o rigor da lei é bom, é um estímulo a mais. Temos exemplos belíssimos, como a Daterra. Conhecemos bem a Daterra, cuidamos, desde o início, dos serviços em Santos para suas exportações. Eles são um exemplo de sustentabilidade de verdade, de vontade. Eles exportam pacotes de 20 quilos para pequenas torrefações e cafeterias. É um modelo muito bom. E existem outros. Sustentabilidade é uma necessidade, não pode ser só discurso. É prática, no dia a dia, é fiscalização, é clareza nas regras e princípios.
Como você vê o papel do exportador no futuro?
Acho que as rápidas mudanças nas comunicações devem mudar a arquitetura comercial do café. Para grandes torrefações do mundo, o exportador sempre vai ser importante, porque é ele quem compra grandes volumes de café, monta os blends, cuida do embarque. O exportador de café, hoje, está preparando os embarques de daqui a três meses. Mas, com a facilidade de comunicação, surgem produtores que se transformam em pequenos exportadores, e isso está crescendo. Se você tem uma pequena torrefação dominando uma região ou uma pequena rede de cafeterias, você tem que ter um produto diferenciado, para os clientes irem até você e não até uma grande rede como a Starbucks. A cada dia ouve-se falar mais de pequenas indústrias de fora que estão estabelecendo contatos com produtores no Brasil. Esse movimento, de ir atrás de exclusividade, deve continuar. Nesse sentido, os concursos de qualidade de cafés foram muito importantes, e os de barista também. Levaram a imagem de qualidade do café brasileiro para fora.
Você tem algum sonho que ainda gostaria de realizar com o café?
Minha preocupação maior hoje é com a sucessão nas entidades de que faço parte, como o Museu do Café. Passar o bastão para as novas gerações. É preciso treinar as próximas gerações. Isso vale também para as fazendas. Em algumas regiões, há dificuldades para convencer os filhos a voltarem para o campo. Em outros setores, houve renovação.
Se quero algo, é ver essa transição acontecer. Outro sonho de curto prazo é comemorarmos dignamente os 300 anos da chegada do café no Brasil [em 2027]. Já estamos trabalhando nisso.
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