Nos últimos tempos, cafeicultores do País passaram a fazer uso da fermentação, uma técnica tão velha como o próprio mundo, a fim de aumentar um bocadinho mais a acidez, os sabores e os aromas frutados do café. Esse caminho tem sido usado como forma de mudar o perfil sensorial da bebida – e elevar de 3 a 5 pontos a classificação do grão na Specialty Coffee Association (SCA) –, uma diferença e tanto na hora de vender a saca. “Só que lidamos com uma xícara mais intensa. Seu preparo e apresentação dependem sobretudo das cafeterias”, avalia Eliana Relvas, barista e consultora da área de café do Grupo Pão de Açúcar.
De forma natural, já acontece uma primeira fermentação quando o fruto ainda está no pé ou durante a secagem. A observação de Eliana é particularmente direcionada a essa segunda fermentação, chamada de positiva, induzida ou assistida. “É um ‘café novo’ no Brasil, precisa ser muito bem entendido para que não haja a entrega de uma bebida amarga ou azeda”, pondera. Os produtores colombianos já praticam essa técnica há mais de cinquenta anos, sem o objetivo de interferir no aroma e no sabor do café. Lá ela é aplicada para tirar a polpa rapidamente e evitar a fermentação ruim em clima muito úmido.
A análise de Georgia Franco de Souza, fundadora da cafeteria Lucca Cafés Especiais, em Curitiba (PR), harmoniza com a interpretação de Eliana Relvas. Para Georgia, além da responsabilidade do preparo nas lojas, o Brasil está construindo o perfil desse produto. “Por isso, o café fermentado não ocupa mais do que 30% das opções nas unidades do Lucca”, diz ela. Um deles, por sinal, com pontuação de 91,5, cujas sacas chegaram a R$ 55,5 mil cada uma, em leilão, é produzido pela Nunes Coffee, no Cerrado Mineiro. “O aroma tem frutas amarelas e papaya, notas de açúcar mascavo e acidez leve cítrica”, descreve.
No entanto, Georgia avalia que, de modo geral, o consumidor de cafés especiais ainda está apegado a sabores convencionais, como chocolate e caramelo. Por isso, uma xícara feita com grãos fermentados pode ser encarada como intensa demais ou enjoativa. “Mas a renovação surge para mudar horizontes”, comenta.
Não existe uma receita definida
Para entender esse processo desde o começo, a empresária decidiu fazer os próprios experimentos: um deles numa propriedade do Paraná, o outro no Cerrado Mineiro, com fermentação a seco. Nesse processo, conhecido como maceração carbônica – o mesmo que se dá na fabricação de vinhos –, as cerejas são colocadas em um tanque, sem oxigênio, e a fermentação proporciona o crescimento de leveduras, que vão interferir no aroma e no sabor. “Ainda vamos iniciar os testes”, diz.
“Não existe receita de bolo”, adverte o classificador Sílvio Leite, que também resolveu fazer os próprios testes no início do ano, na Chapada Diamantina, na Bahia. Ele ressalta que cada região tem seu clima, solo, altitude, “o seu terroir”, – e esse processo depende disso. Por essa razão, a fermentação natural (proporcionada por resíduos provenientes da digestão de micro-organismos, como ácido láctico e acético, que enriquecem o sabor e o aroma do produto final) tem se mostrado superior à dos experimentos com adição de leveduras de vinho, champanhe ou cerveja. Sílvio Leite comenta que já soube de produtores que adicionam baunilha, limão, leite ou Yakult para mudar o gosto da bebida. “Gente, isso é café!”, diz.
Estar disposto a encarar esse processo significa testar tempo e temperatura diferentes e correr o risco de perder grãos de qualidade. “Fermentação não é mágica nem faz milagres”, pondera Georgia. Mesmo ciente desses riscos, Leonardo Custódio, supervisor de qualidade da Fazenda Mantissa, no Sul de Minas, decidiu arriscar. Tudo começou em 2015, quando um punhado de café amontoado foi deixado próximo ao lavador. “O café que imaginei que estivesse estragado bateu 88 pontos”, lembra. Só tempos depois, ele concluiu que ali havia acontecido um processo involuntário de fermentação. História semelhante ocorreu com um agricultor da Serra do Caparaó (ES), ao deixar algumas sacas de plástico cheias de café cereja no campo, na sombra das árvores.
A partir daí, Léo foi entender o processo, agora completamente dominado. A técnica aplicada na Fazenda Mantissa consiste em deixar as cerejas por 34 horas no terreiro, transferi-las por mais sete dias para o terreiro suspenso e depois amontoá-las numa estufa por quarenta horas. Nesse meio-tempo, o café é revolvido. “Quando surgem aqueles mosquitinhos parecidos com helicóptero significa que os grãos estão com muito açúcar; quando eles somem é porque o açúcar se transformou em álcool”, explica. Esse é o sinal natural da fermentação desejada, além das medições técnicas de pH e temperatura.
Na última safra, das 6 mil sacas colhidas, de trinta a quarenta foram fermentadas. Segundo Leonardo Custódio, o preço do café fermentado no mercado chega a ser três vezes superior, mas a procura ainda é restrita. “O produto é visto como um ‘café visitante’ nas cafeterias”, diz. Para ele o gosto dos consumidores de café especial vai se ampliar muito nos próximos dez anos. “O grão fermentado vai ganhar com isso porque proporciona uma clareza nas notas de frutas”, comenta.
Aos clientes que têm receio de provar novos sabores, Ricardo Marques Rodrigues, da empresa Auma Café (Ânima é a marca no mercado) recomenda: “Café você experimenta, não enfrenta”, diz. Para ele, ainda vão surgir níveis mais consistentes de fermentação que deixarão a bebida “menos agressiva” na xícara, que é a sensação comum hoje. Mas o positivo, segundo ele, é que essa prática aponta como os produtores vêm se renovando. “Hoje se presta muito mais atenção nas tendências de mercado, na procura das microtorrefadoras, e isso é um grande passo”, afirma. Das 500 mil sacas produzidas pela Auma, apenas 0,1% é de grãos fermentados. “O produto é carimbado pelo mercado como exótico”, compara. Segundo ele, por enquanto, começaram a ser comercializadas cepas selvagens próprias para o café (encontradas em ambientes naturais e que não passaram por modificações), que prometem facilitar muito o trabalho de fermentação no campo. “Tem tudo para emplacar”, afirma.
Na comida e na bebida
Para alguns estudiosos, a fermentação natural é um processo tão essencial para a espécie humana como o controle do fogo. Afinal, foi a principal forma de evitar que a comida se estragasse antes do surgimento de latas, freezers e geladeiras. Essa técnica antiga de conservação, por meio da qual os alimentos são transformados por fungos e bactérias “do bem” – os resíduos da digestão de microorganismos são substâncias (moléculas aromáticas, ácido lático e acético e álcool) benéficas para a saúde e que enriquecem o sabor e o aroma do produto final –, passa por uma onda de revalorização nas mãos de profissionais da área de alimentação e de pessoas cada vez mais preocupadas em comer e beber algo mais natural, como kombuchas e kefires.
Um dos árduos defensores dessa técnica é Sandor Katz, autor de A Arte da Fermentação (Sesi-SP), conhecido como o guru dos fermentados. Segundo ele, na guerra da civilização moderna contra a bactéria – a pasteurização passou a ser empregada para evitar riscos na produção dos alimentos em larga escala –, foram eliminados microorganismos que fazem bem à saúde. Além dessa questão, para alguns críticos, a indústria percebeu logo cedo que as pessoas gostam do doce e do salgado, e por isso “infantilizou” o paladar dos consumidores, dificultando a apreciação do sabor mais intenso dos fermentados.
No entanto, pelo menos um terço de toda a comida produzida no mundo passa por processos de fermentação, como aponta o escritor americano Michael Pollan em Cozinhar – Uma História Natural da Transformação (Intrínseca). Café, chocolate, baunilha, vinho, cerveja, iogurte, molho de soja e missô são alguns desses alimentos.
As mais usadas no Brasil
Existem muitas formas de fermentação positiva de café. As mais comuns no País, de acordo com o pesquisador Leandro Carlos Paiva, da IFSULDEMINAS, em Machado (MG), são:
Maceração carbônica: quando grãos naturais ou cereja descascado são colocados dentro de um tambor, tanque ou saco plástico hermeticamente fechados. Nesse ambiente ocorre a fermentação anaeróbica, o que proporciona o crescimento de leveduras que vão produzir ácidos cítrico, láctico e acético e outras substâncias que interferem no aroma e no sabor do café. Via de regra, o resultado vai depender da quantidade de polpa e açúcar existente na maceração e da temperatura do processo de fermentação.
Dupla fermentação: a maceração carbônica é feita duas vezes seguidas para que sobressaiam os sabores frutados do café.
Aeróbica com água: os grãos são colocados em tanques abertos, com 30% de água, onde permanecem de 24 a 48 horas, e são revolvidos durante esse período. O final da fermentação é quando o pH alcança valores de 3,5 a 4, e a temperatura se estabiliza.
Aeróbica sem água: os grãos são colocados em tanques abertos, sem água, onde ficam de 24 a 48 horas, e são revolvidos durante esse período. O final da fermentação é quando o pH alcança valores entre 3,5 e 4, e a temperatura se estabiliza.
TEXTO Janice Kiss • FOTO Divulgação