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Turismo e lucro crescem em regiões cacaueiras com Indicação Geográfica
Por Lívia Andrade
O azul do mar em contraste com o verde da vegetação é a paisagem que salta aos olhos de quem chega de avião em Ilhéus, no Sul da Bahia. A exuberante floresta deve-se à cabruca, cacau plantado sob a sombra da Mata Atlântica, sistema de cultivo responsável por manter a mata em pé.
Esse patrimônio agroflorestal é um dos requisitos que caracteriza a qualidade das amêndoas do Sul da Bahia – região que, depois de obter sua indicação de procedência (IP), tenta, agora, conquistar uma denominação de origem (DO). A valorização do cacau movimenta Linhares, no Espírito Santo, que também faz seu pedido de DO, e Tomé Açu (PA), que tem visto o turismo crescer desde a obtenção de sua IP há cinco anos.
Ao todo, o Brasil tem quatro origens do cacau chanceladas pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), todas elas na modalidade indicação de procedência (IP). Além do Cacau do Sul da Bahia, que se tornou IP em 2018, do Cacau de Linhares, que conquistou o selo em 2012, e de Rondônia (desde 2023), são também amêndoas de procedência as de Tomé Açu, no Pará (desde 2019).
Um modelo de produção como a cabruca, que acumula 250 anos de saberes de comunidades locais e que predomina em 78% das fazendas cacaueiras (segundo estudo do Instituto Floresta), reflete a valorização do território – algo intrínseco a qualquer pedido de origem. Mas a importância do território é um de uma série de requisitos de qualidade que caracterizam a conquista de uma IG. E o caminho para obter um selo destes envolve um processo longo, que engloba a elaboração de um dossiê com uma extensa documentação e informações sobre o produto, seu local de produção (solo, altitude, clima) e sua qualidade. Primeira origem de cacau reconhecida no Brasil, o Cacau de Linhares entrou com requerimento em 2009, para obter o reconhecimento como IP somente três anos depois.
“A IP é um selo de origem e de qualidade”, explica Adriana Reis, gerente de Qualidade do Centro de Inovação do Cacau (CIC) e autora do projeto da IG do Cacau do Sul da Bahia. Além de aumentar a reputação do produto e valorizar a cultura local e seu saber fazer, Adriana explica que o selo da IP abre mercado, principalmente para o segmento de cacau especial, e, consequentemente, atrai o turismo.
O selo também reconhece o terroir único do Vale do Rio Doce, em Linhares, uma terra de aluvião alagadiça, que sofre enchentes em determinados períodos do ano, acumulando matérias orgânicas e sedimentos carregados pelo rio. “Isso confere características à nossa amêndoa”, explica Kellen Kiepper de Jesus Scampini, presidente da Associação dos Cacauicultores do Espírito Santo (ACAU), responsável pelo pedido. “Ela é mais rica em manteiga de cacau e resulta num chocolate com um sensorial mais suave”, diz ela.
É por esta ligação estreita que relaciona território e sabor que Kellen, por meio da ACAU, está começando a reunir documentos para pleitear a denominação de origem. “A IP foi solicitada com o conhecimento que se tinha na época”, lembra. Agora, ela reconhece que, mais do que a tradição na produção de cacau – característica que ajuda a definir uma indicação de procedência –, as amêndoas provenientes dessa terra de aluvião têm características únicas, que não são encontradas em nenhum outro lugar.
Já no Sul da Bahia, o desafio é pleitear a DO do catongo, uma variedade de cacau com amêndoas brancas originária de uma mutação genética ocorrida na Bahia. “Esta mutação causa albinismo, e estas amêndoas, depois de fermentadas, se tornam caramelo claro, com características sensoriais específicas e um sabor mais suave”, diz Cristiano Sant’Ana, diretor executivo da IG Sul da Bahia, que está pensando em tornar o catongo o tema de seu doutorado, para embasar a solicitação da DO.
“A DO será muito importante para a Bahia”, explica Sant’Ana. “Até onde eu sei, vai ser a primeira DO de cacau do mundo”, declara. Além disso, vai destacar a catongo, variedade única no planeta. “Isso vai gerar uma agregação de valor ainda maior aos lotes desta variedade e, por tabela, melhorar a inserção no mercado de todas as amêndoas do estado”, completa.
Um divisor de águas
Independentemente da modalidade da IG, o fato é que ela identifica para o mundo o produto e sua região. Champagne, por exemplo, designa o vinho espumante produzido na região homônima na França, assim como o queijo Canastra leva o nome da Serra em que é produzido em Minas Gerais. No caso do Cacau de Linhares, além da notoriedade, a IP tem ajudado os produtores a agregar valor às amêndoas. “Em épocas de preços normais, já registramos mais de 100% de ágio em relação ao cacau commodity”, explica Kellen.
Para o Sul da Bahia, a conquista de uma IG foi um divisor de águas. “Ela trouxe um grande avanço ao chancelar o que é e o que não é um cacau de qualidade”, frisa Sant’Ana. “Antes do Caderno Técnico da IG do Sul da Bahia, isso não existia”, completa. Outra contribuição, explica Sant’Ana, é a governança do território, que está sob o guarda-chuva de uma federação, que reúne 16 cooperativas e quatro associações, congregando mais de 3,4 mil produtores espalhados por 83 municípios. Graças a uma série de parcerias com universidades e instituições (Sebrae, Ceplac, Instituto Cabruca, Instituto Arapyaú, Centro de Inovação do Cacau, entre outras), a IG lançou um sistema de rastreabilidade do cacau em blockchain, que gerou melhores negócios aos produtores.
Mais do que agregar valor à amêndoa, a IG certifica e protege o valor cultural de um produto. No caso do cacau, basta pisar no Sul da Bahia para ver referências do fruto em todos os lugares: o cacau enfeita os jardins da prefeitura, dá nome às lojas da cidade, está presente nas decorações, foi enredo de novela e é um ícone vivo da literatura, reconhecido mundialmente nas obras de Jorge Amado.
A mais recente IG do cacau no Brasil foi conquistada por Rondônia em 2023 e envolve todos os 52 municípios do estado. “Além de sua importância econômica, o cacau faz parte do desenvolvimento histórico e cultural do estado, inspirando nomes de municípios como Cacoal, Cacaulândia e Theobroma, este último derivado do nome científico do cacau, uma planta nativa da Amazônia”, explica Marcileide Zirondi, gestora do projeto da IG do Cacau de Rondônia.
No passado, Rondônia chegou a produzir entre 20 mil e 40 mil toneladas de amêndoas, mas devido à vassoura-de-bruxa (doença endêmica na região amazônica), a produção caiu para 6 mil toneladas, número atual. “Mas o estado tem a meta de ultrapassar 15 mil toneladas por ano”, explica Marcileide, referindo-se ao aumento da produtividade dos atuais 350 kg/ha para 1.000 kg/ha. Segundo ela, esse crescimento será possível através de inovações tecnológicas e capacitação dos 9,6 mil cacauicultores que atualmente cultivam 17.250 hectares”.
O cacau é estratégico para Rondônia. “É uma planta nativa, que contribui para a preservação ambiental, se adaptando aos sistemas agroflorestais e promovendo a conservação de áreas de preservação permanente e reservas legais”, diz a gestora, destacando que as amêndoas do estado possuem características únicas de sabor e consistência, com qualidades físico-químicas diferenciadas, como o teor de manteiga e o ponto de fusão, essenciais para a produção de chocolates com diversos perfis de sabor e textura.
“A IG trouxe visibilidade ao cacau do estado, o que incentivou alguns produtores e chocolateiros a aprimorar a qualidade e a diferenciação de seus produtos”, explica Mercileide. “Embora seja um processo gradual, alguns agricultores de ponta já colhem os frutos, como Deoclides Pires da Silva, que conquistou prêmios nacionais de melhor cacau em 2022 e 2023”, completa. Agora, a Associação dos Cacauicultores e Chocolateiros de Rondônia (Cacauron), com o apoio do Sebrae e outras 12 instituições, está trabalhando no planejamento estratégico da cadeia para os próximos dez anos.
Alavanca para o turismo
A IG também é um catalisador do desenvolvimento regional, fomentando o turismo e os novos negócios. No Espírito Santo, a IG de Linhares fez multiplicar o número de fábricas de chocolate artesanal e uma série de outros produtos vinculados ao fruto, como nibs temperado, mel de cacau e aguardente de cacau. Por falar nesta última, ela tem o nome de Cacauhuatl e é produzida pela Velho Carvalho, empresa do marido de Kellen, que fechou uma parceria com a suíça Billy&Bugga para fabricação de chocolate feito com amêndoas de Linhares e Cacauhuatl, que será vendido na Suíça e no Brasil. Todo este movimento fomentou o turismo de experiência em Linhares. “Estamos com quatro fazendas abertas à visitação com hospedagem e refeição, e a ACAU está mobilizando a governança para avançar mais nesta área”, diz a presidente da associação.
No caso de Tomé Açu (PA), cidade colonizada por imigrantes japoneses que chegaram ao Brasil em 1929, o incentivo para pleitear a IG do cacau foi dado por Masaaki Yamada, professor da Universidade Agrícola de Tokyo, que, em seu doutorado, estudou o sistema agroflorestal de Tomé Açu (Safta), caracterizado pelo consórcio de cacau com outras árvores, como andiroba, e palmeiras, como açaí e dendê. “Em conversa com a diretoria da Camta (Cooperativa Agrícola Mista de Tomé Açu), o pesquisador sugeriu que tentássemos um diferencial, para resguardar e proteger o nosso cacau num mercado tão exigente e competitivo”, diz Silvio Shibata, ex-presidente da Associação Cultural e Fomento Agrícola de Tomé Açu (ACTA), que esteve na coordenação da IG.
De lá para cá, a cidade exportou amêndoas finas com o selo para a Meiji, segunda maior chocolateria do Japão, e passou a receber turistas interessados em conhecer os Saftas, modelo de produção, que ajuda a preservar a floresta na Amazônia. “Hoje, na Rota da Imigração Japonesa – Experiências e Vivências, os visitantes têm a oportunidade de conhecer a história da cooperativa Camta e algumas propriedades com Saftas”, explica Shibata, referindo-se às propriedades como Fazenda Konagano, Casa Suzuki, Agroforestal Sakaguchi, Fazenda Oppata e Fazenda Inada.
O fruto também é um chamariz de visitantes para o Sul da Bahia. “Existe uma influência direta, o cacau atrai os turistas interessados em conhecer mais sobre a história, andar por uma lavoura de cacau e degustar um chocolate”, diz Sant’Ana. Hoje em dia, a região tem várias propriedades abertas ao turismo: Fazenda Irerê, Fazenda Capela Velha, Fazenda Provisão e Chocolate Hotel, entre outras.
Uma das mais badaladas é a Dengo Origem, fazenda da marca de chocolate Dengo que é sinônimo de qualidade no Brasil. A propriedade fica no caminho de Ilhéus no sentido Itabuna e oferece ao visitante uma imersão no universo cacaueiro – uma experiência do cacau ao chocolate. Num tour guiado, o turista conhece o viveiro de mudas, caminha pela cabruca (onde o cacau é sombreado, também, por árvores frutíferas como jaca e banana, que servem de insumo para as barras de chocolate), “quebra um cacau” e experimenta a polpa que envolve a semente.
Além disso, tem a oportunidade de provar o mel do cacau, conhecer o processo de fermentação e secagem das amêndoas e experimentar chocolates de várias intensidades de sabor. Apesar de bons exemplos, o setor de turismo no Sul da Bahia tem um caminho a trilhar. “Ainda não é como o Vale dos Vinhedos, que tem toda aquela organização entre o setor de turismo e serviços”, finaliza Sant’Ana.
O que é Indicação Geográfica (IG)?
É uma ferramenta de valorização e um meio de proteger uma região reconhecida por ter tradição na produção de um certo produto, que se destaca por sua qualidade diferenciada e tipicidade.
As modalidades de IGs
1) Indicação de Procedência (IP) valoriza o “saber fazer” e a notoriedade pública de uma região na produção de um determinado produto. Este selo protege a relação entre o produto e sua reputação, em razão da sua origem geográfica.
2) Denominação de Origem (DO) reconhece uma região pela tradição e qualidade na elaboração de um determinado produto e chancela que o produto oriundo daquela localidade tem características singulares, não encontradas em outros lugares.
Por dentro das IGs do cacau
Sul da Bahia
Região: 83 municípios (como Ilhéus, Camamú, Canavieiras e Itabuna)
Variedades: todas
Sistema de produção: no mínimo 50% de cacau cabruca
Padrão: mínimo de 65% de amêndoas totalmente fermentadas, livre de impurezas
Cacau de Linhares
Região: uma determinada área no interior do município de Linhares
Variedades: todas
Sistema de produção: Cabruca, Sistema Agroflorestal (SAF), Pleno Sol
Padrão: amêndoas premium, amêndoas especiais
Cacau de Tomé Açu
Região: município de Tomé Açu
Variedades: todas
Sistema de Produção: Sistema Agroflorestal de Tomé Açu (SAFTA)
Padrão: Amêndoas tipo 1, 2 e 3
Cacau de Rondônia
Região: todos os 52 municípios do estado
Variedades: todas
Sistema de Produção: SAFs
Qualidade: mínimo de 65% de amêndoas totalmente fermentadas, livre de impurezas
Texto originalmente publicado na edição #86 (dezembro, janeiro e fevereiro de 2025) da revista Espresso. Para saber como assinar, clique aqui.