Cafezal

Etiópia e Quênia: Diário das origens

A mestre de torra Daniela Capuano embarcou numa jornada inusitada para conhecer a produção de cafés nestes países

Era 3 de janeiro de 2020 quando eu e o fotógrafo Jean – trabalhamos juntos na mesma torrefação – embarcarmos para a Etiópia e aterrissamos no dia 24 Tahsas 2012, quatro dias antes do Natal, no calendário etíope. Eu estava desesperada porque, um dia antes da viagem, resolvera pintar o cabelo com a minha irmã, afinal, viajaria com um fotógrafo. O detalhe principal foi que erramos a cor, e meu cabelo ficou laranja! Sem chance de fazer nada nele, coloquei todos os bonés na mala e fui.

A viagem foi rápida, seis horas de avião de Paris a Addis Ababa. Fomos recebidos pelos parceiros da importadora. Eles já estavam nos esperando no estacionamento. Na Etiópia você só pode entrar no aeroporto se tiver passaporte e um bilhete para viajar. Entramos no jipe e fomos tomar café da manhã em uma coffee shop completamente europeia, no escritório/armazém de um exportador. Dali pegamos a estrada em direção à cidade de Awassa. Nosso programa para a semana incluía também Yirgacheffe, Kochere, Gedeb, Hambela e Guji, sendo duas fazendas e quatro estações de tratamento. Um dos meus objetivos era não criar expectativas e manter um olhar curioso e observador.

Saímos de Addis e pegamos a estrada. Awassa é longe? – perguntei. Uns 280 quilômetros (perto até) mas, quantas horas até chegar? “Umas cinco ou seis, depende”. A estrada era reta, uma linha infinita no meio de um deserto, uma imensa planície que se estendia ao infinito à direita e à esquerda.

Uma vez ou outra apareciam pequenos vilarejos ao longo da estrada. Mas todo o tempo havia pessoas andando na estrada, junto com os carros, caminhões, muitas carroças sendo puxadas por burrinhos, pastores com suas cabras e vacas e, de repente, um pastor com seus vinte dromedários; crianças correndo, atravessando de um lado para o outro, as cabras também, um pai ensinando o filho a andar de bicicleta, tantas cenas acontecendo e, ao mesmo tempo, a paisagem era monótona, continuávamos no mesmo deserto.

Eu estava angustiada de ver aquilo, mas nosso motorista e o guia estavam bem tranquilos, como os paulistanos com as motos na cidade. Seis ou sete horas mais tarde chegamos a Awassa, já era quase noite. No dia seguinte sairíamos em direção a Dilla.

Tudo demora na Etiópia. As estradas, mesmo asfaltadas, são cheias de buracos e pessoas. Rodamos na velocidade média de 30km/hora, ou seja, são longas horas no carro, praticamente um dia inteiro. Outra coisa é que eles não dirigem à noite, pois o seguro não cobre, e existe um grande risco de sermos “atacados” por algum grupo armado antigoverno ou outras coisas. Assim, seguimos ao longo da semana.

A paisagem mudou, tudo ficou verde, com montanhas, mais úmido e tropical. A primeira estação que visitamos foi em Kochere, próximo de Yirgacheffe. São duas estações da Moplaco, uma exportadora fundada em 1972 e hoje dirigida pela Heleanna. A estação em Yirgacheffe faz apenas café natural e a de Kochere, cafés lavados na maior parte, mas estão começando alguns lotes em cereja descascado e natural. A terceira estação, da Romina exportadora, trata um volume impressionante de café. Havia mais de 150 mulheres trabalhando, colocando os cafés nos tanques de lavagem e nos terreiros suspensos para secar. A mais velha era a chefe de todos. Ela organizava tudo, acelerava alguns, acalmava outros, atenta a todos os detalhes. Uma senhora muito elegante e firme. A maioria das mulheres naquele dia era bem jovem, estudantes que trabalhavam nos finais de semana para ter um dinheiro extra. As mulheres não são produtoras na Etiópia, porque elas não têm terra. São os maridos ou os pais os donos das “terras”.

Elas trabalham, sem parar! Colhendo, secando, lavando, carregando lenha nas costas e carroças com galões de água; fazem tranças nas filhas, nas irmãs, umas nas outras, nos pequenos salões de cabeleireira. Elas cozinham, preparam a cerimônia do café que servem nos restaurantes e hotéis, enfim, não param! Você deve estar se perguntando: mas, e os homens, fazem o quê? Bom, eles fazem uma parte do trabalho nas estações de tratamento, a recepção das cerejas, a lavagem e a despolpagem, consertam as máquinas ou são pastores, donos de rebanhos, restaurantes e comércios de beira de estrada. Mas passam a maior parte do tempo sentados, tomando café, jogando conversa fora ou mascando qat. 

Qat, é uma planta local. É um grande concorrente do café na Etiópia, no tocante à produção, pois dá menos trabalho, a venda é garantida e o dinheiro vem mais rápido que o do café, pois não passa por todos os processos. O qat é apenas colhido e vendido. 

O país tem várias religiões, os ortodoxos etíopes são a maioria, mas há também protestantes, muçulmanos, rastafáris e religiões tradicionais. Todos estavam se preparando para o Natal, os mercados nas ruas estavam cheios, vários animais à venda, as casas decoradas com flores, aquela euforia típica dos preparativos para uma festa. Celebramos em uma fazenda da Metad, empresa que faz um trabalho incrível. Sua história e a de Aman Adinew, a pessoa por trás dela, daria um artigo inteiro.

Metad fica numa região da Etiópia que não era conhecida pelo café, mas pelas constantes brigas entre duas etnias, os gedeos e os oromos. As fazendas se encontram na fronteira das duas regiões. Aman trabalha com mais de 700 produtores locais, todos com certificações orgânicas pela empresa. Conta ainda com laboratórios certificados pela Specialty Coffee Association (SCA) e muito café especial. Aman passou a noite de Natal conosco e alguns funcionários.

O cardápio foi tradicional etíope, acompanhado de vinho local, que, particularmente, não recomendo, mas como era um dia de festa, aproveitei! Foi um encontro inusitado de pessoas e culturas: Aman, da Etiópia, viveu nos Estados Unidos; um americano que trabalhou anos para a Starbucks; dois peruanos que importavam café da Etiópia; um colombiano que trabalhava para a Penagos; eu, brasileira que trabalha na França; e um chef japonês que todo ano passa férias por lá e importa café da Etiópia no Japão. Imaginou a bagunça de culturas?

No dia seguinte, depois de um tour pelas duas fazendas, fomos para Guji, com uma longa estrada pela frente. Guji Highland é um lugar lindo, a plantação fica toda no meio da floresta.

As árvores são as mais altas que já vi, os pés de café, de seis anos, parecem ter doze, são grandes, altos e bem flexíveis. Os terreiros suspensos ficam no alto de um morro, cercado por florestas. Nesta estação, a quarta, como em quase todas as que visitei, eles estavam fazendo testes com processos natural, honey e secagem na sombra. Tudo muito novo para eles.

Existe um mito na Etiópia de que é proibido fazer café natural ou honey, porque assim as sementes podem germinar. Em Guji tivemos direito a uma cerimônia completa do café. Desde a torra, passando pela moagem feita no pilão de madeira, a preparação na jebena, com direito a pipoca e flores, tudo muito lindo e cheiroso. O processo levou uns trinta minutos, mas foi um momento quase meditativo. As mulheres etíopes hipnotizam com seus movimentos delicados, os detalhes, as fumaças, a brasa, as xícaras tradicionais, tudo flui como um balé.

Quênia: um lugar mágico

No dia seguinte voltamos para Addis, pois na outra manhã tínhamos o voo para Nairóbi, capital do Quênia. Saímos tão cedo que vimos o sol nascer na estrada, e chegamos a Addis às 17 horas.

“Hakuna matata”, famosa frase do desenho O Rei Leão, é o jeito queniano de dizer “sem problemas, sem preocupações”. Fiquei apaixonada por esse lugar, pelas pessoas, pelos bichos e pela natureza. Quando você vai da Etiópia para o Quênia, lembra bem rápido o que é capitalismo, progresso, desenvolvimento e colonização. Nairóbi é uma grande cidade, moderna, diversa, movimentada, com grandes prédios, várias marcas, carros, comércio e parques naturais gigantes dentro da cidade. Chegamos eu, Jean e Delphine, uma francesa que mora há doze anos em Addis, e o David, que foi nos buscar no aeroporto. Fomos direto para Nyeri.

David Maguta é um jovem produtor de café que recuperou a fazenda da família e, junto com ela, recuperou vários pequenos produtores que tinham perdido o gosto e a vontade de plantar café. Em algum momento, no Quênia, parou de valer a pena produzir café por conta de pragas, preços baixos, obrigação de venda ao governo e demora no pagamento.

Por causa disso, alguns agricultores passaram a plantar chá, arroz, macadâmia, ou qualquer coisa que se pudesse colher e vender na beira da estrada. Outros foram para a cidade estudar e trabalhar. David se organizou e conseguiu convencer algumas pessoas a voltar para o café junto com ele. Essas fazendas têm entre 5 e 20 hectares.

Alguns desses produtores ainda vivem nas fazendas, são mais velhos e mandaram os filhos para a cidade. Outros herdaram as fazendas e agora trabalham durante a semana na cidade e nos finais de semana na lavoura. Todos têm um objetivo em comum, produzir cafés especiais, bons, diferentes, naturais, honey ou lavados. Como um deles me disse, eles fizeram as pazes com o café.

Todos estudaram, são professores, contadores, especialistas em finanças, engenheiros etc. No Quênia, nota-se claramente a influência da colonização inglesa. O inglês junto com o suaíli são as línguas oficiais, o que facilita muito a comunicação. Eles têm o hábito de tomar chá com leite, e nas fazendas o café vem acompanhado de batata-doce e araruta cozida (planta usada para o preparo de mingau, bolos e biscoitos).

Além dos pequenos produtores, visitamos uma grande produção, duas fazendas, Chania e Oreti Estate. Os donos, Boyce Harris e Georgina, são os últimos produtores brancos de café do país. A família veio da África do Sul fugindo da guerra e se instalou no Quênia, entre Nyeri e Nairóbi, em 1904. As fazendas são maravilhosas e as lavouras, na maior parte, bem antigas. Ali são produzidas quatro variedades, SL, French Mission Bourbon, K7 e Ruiru.

Ruiru é uma variedade nova, mais resistente às pragas e principalmente à chamada CBD (coffee berry disease), uma doença muito comum no local que consiste em um fungo que ataca a base da cereja fazendo com que ela caia do pé. Se o problema não for tratado, eles podem perder até 80% da produção.

Um dos lugares mais mágicos que pude conhecer foi um parque próximo à Nyeri, que conta com um hotel construído no topo das árvores, à beira de um lago, que as famílias de elefantes visitam todas as noites. Já foi um sonho poder ver búfalos, rinocerontes, babuínos e hienas, mas assistir a essas enormes criaturas magníficas beberem água, nadarem e comerem a lama do lago foi mágico e inesquecível. Eu poderia passar horas e horas observando-os.

Estou esperando ansiosamente pela chegada das amostras de todos esses produtores. E por ver o resultado na xícara de tanto esforço e amor para produzir o melhor café dentro das possibilidades de cada um. O fato de poder viajar e ver de perto as dificuldades e complexidades de cada país e de cada produtor me faz valorizar muito cada grão e, também, valorizar tudo o que o Brasil construiu até hoje para a cadeia do café.

*Daniela Capuano é brasileira de Três Pontas (MG). É barista, mestre de torra e foi premiada como a melhor torrefadora da França. Ela viajou pela Etiópia e pelo Quênia pela empresa em que trabalha, a Cafés Reck, em Estrasburgo, onde também reside.

TEXTO Daniela Capuano • FOTO Nis&For/Cafés Rec

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