Pelo Mundo por Gustavo Paiva

A capital latina dos cafés especiais

Se alguém contasse que a capital mais apaixonada por cafés especiais fica em um país que não planta café, você acreditaria? Claro, pois os primeiros palpites que vêm à mente poderiam ser, facilmente, Berlim, Amsterdã ou Viena, por exemplo. Mas, e se alguém dissesse que até mesmo entre países latinoamericanos esta lógica se repete? Dependendo dos quesitos considerados, a resposta é evidente: Buenos Aires é a capital latina dos cafés especiais.

Apesar da crise persistente e do descontrole inflacionário na Argentina, a capital do país assistiu, nos últimos anos, ao crescimento exponencial de estabelecimentos oferecendo grãos especiais. Esta coluna foi, então, conversar com baristas, clientes e donos de cafés para entender o fenômeno bonaerense, saber quais lições poderiam ser aplicadas ao Brasil e entender por que, apesar de tantas dificuldades econômicas, o café especial é mais respeitado na capital argentina do que nas grandes cidades brasileiras.

Antes de mais nada, é importante quebrar o primeiro preconceito relacionado ao consumo de café pelos argentinos: a suposta rivalidade com o mate. Café não é mate. Apesar das semelhanças, o consumo de mate muito raramente é feito em estabelecimentos comerciais. 

Existe uma diferença enorme entre pessoas se encontrarem para tomar mate e irem a um estabelecimento consumir mate. Além disso, o consumo do mate se dá em momentos específicos – antes do café da manhã, geralmente, ou no meio da manhã ou da tarde, quando as pessoas estão trabalhando ou estudando. Consome-se mate, também, no tempo livre, para contatos sociais, para compartilhar algum assunto. Por fim, a variedade de métodos de preparo de café, de origens dos grãos e de experiências oferecidas pelas cafeterias, diferem largamente da cultura do mate. 

Ao olhar para os indicadores econômicos e sociais, fica clara a vantagem da capital argentina em relação às outras no quesito educação. Com um ensino público acessível e de qualidade, as universidades locais recebem estudantes de vários países da América Latina, inclusive do Brasil. Pelo fato de ter um dos mais altos índices de IDH entre esses países, aconteceu em Buenos Aires o que geralmente ocorre em mercados com consumidores e mão de obra qualificados: os argentinos souberam, rapidamente, entender a importância da valorização da qualidade do produto. Mas, principalmente, aprenderam a identificar e consumir um produto de qualidade superior.

A capital argentina tem, hoje, dezenas de cafés relativamente bem espalhados pela cidade. A proporção é maior nas áreas de escritórios no centro da cidade, nas zonas ultra-turísticas de Palermo e Recoleta, e nas zonas residenciais, como Colegiales, Belgrano, Núñez e Chacarita. 

Foi justamente nesta última que o contexto dos cafés especiais começou a mudar. Cansados das hordas de turistas, dos preços surreais e da alta concorrência, muitos donos de bares e cafés deixaram Palermo e migraram um pouco mais para o oeste, para o bairro vizinho de Chacarita. O bairro, tradicionalmente de classe média, foi tomado pelos hipsters, pela gentrificação, e, claro, pelas torrefações de café de qualidade.

É evidente a influência dos bares de Palermo quando se visitam as cafeterias de Chacarita. Muitas delas parecem cervejarias artesanais, com música alta e ambiente alternativo, servindo diferentes métodos de preparo e uma ampla variedade de origem dos grãos. Mas existem, ainda, outros estilos de cafeterias que agregaram o café especial a um ambiente mais calmo, onde se pode ler, trabalhar e levar as crianças.

Por outro lado, até mesmo as redes tradicionais de café incorporaram elementos da quarta onda, ao trazerem informações detalhadas sobre a origem, o beneficiamento e o perfil da xícara – embora essas ofertas limitem-se apenas ao método espresso, e com grãos similares ou um pouco melhores dos oferecidos pelas redes comerciais brasileiras. 

É importante destacar que nestas cafeterias não se serve mate. As raras pessoas que são vistas tomando a bebida por ali já trazem tudo de casa ou pedem apenas água quente ao estabelecimento, que geralmente oferece sem custos, desde que o cliente esteja consumindo alguma coisa no local.

O sucesso também se deve ao apelo ao público jovem, que frequenta as cafeterias tanto como consumidores, quanto como baristas. Muitos destes jovens argentinos são estudantes universitários, mas há, também, a participação de imigrantes colombianos, venezuelanos e peruanos. O café especial ajuda estes imigrantes a se sentirem conectados aos seus países de origem, e também os valoriza pelos seus conhecimentos, já que muitos têm uma relação prévia com o café.

É evidente também que Buenos Aires e os argentinos tem um espírito ‘de rua’, de desfrutar a cidade e consumir algo fora de casa – seja para tomar ou comer algo entre amigos ou com parceiros. Em tempos de crise, sair para tomar um café acaba sendo muito mais econômico do que sair para jantar ou almoçar. Então, o café especial torna-se a alternativa viável para que o hábito de se conectar com pessoas queridas fora de casa não se perca.

Todos sabem das conquistas recentes do futebol argentino e da sua superioridade em relação à seleção brasileira. E todos conhecem a situação econômica e social do país nos últimos anos. Ou seja, os argentinos sabem fazer mais com menos recursos. Talvez o início da solução para nós, brasileiros, seja a humildade de aprender com eles e a maturidade de deixar de lado picuinhas nacionalistas infantis. Também vale revisitar ideias antigas como a de investimento em educação e integração de populações estrangeiras, bem como o hábito de chamar pessoas queridas para tomar um bom café.

Gustavo Magalhães Paiva é formado em relações internacionais pela Universidade de Genebra e é mestre em economia agroalimentar. Atualmente, é consultor das Nações Unidas para café.

TEXTO Gustavo Paiva