Pelo Mundo por Gustavo Paiva

Trump, a COP 16 e a virtude da ignorância

Comecei a escrever este artigo em Cali, na Colômbia, onde, durante as últimas semanas, foi realizada a Conferência das Nações Unidas sobre Biodiversidade – a COP 16. A sede foi escolhida depois da desistência da Turquia em sediar o evento, em julho de 2023. 

O tema é relevante para o produtor de café, pois a Colômbia é o terceiro colocado mundial em biodiversidade e na produção de café. Nos dois casos, um dos únicos países a estar à frente dos colombianos é o Brasil. 

Neste ranking geral de biodiversidade, elaborado pela organização norte-americana Conservation International, dezessete países no mundo podem ser considerados megadiversos. Destes, nada menos do que oito são produtores relevantes de café, e outros cinco foram produtores relevantes no passado e ainda produzem café em menor quantidade.

Os cafeicultores já sabem que produzem um dos cultivos mais amigáveis ao clima, mesmo quando se avalia o impacto ambiental total da cadeia. Esse cultivo (o café) é ainda mais amigável quando feito em baixa intensidade, em sistemas agroflorestais e com uso mínimo de produtos químicos. Por mais que esta não seja (e nem há meios de ser) a realidade do produtor brasileiro, é a realidade da imensa maioria de produtores de café no restante do mundo. 

Portanto, a valorização da sustentabilidade ambiental nas cadeias agrícolas tende a penalizar cultivos agressivos e a premiar cultivos amigáveis, como o café. Principalmente o café brasileiro, que, apesar de tudo e de todos, ainda é mais amigável do que a maioria das outras cadeias agrícolas no mundo, como por exemplo, o cultivo de cereais nos Estados Unidos.

Nestas últimas semanas, seria de se esperar que o produtor brasileiro estivesse atento ao desfecho da conferência internacional na Colômbia e às eleições norte-americanas. Seria natural que houvesse uma grande torcida por medidas ambientais arrojadas, no desfecho da COP16, que favorecessem o produtor de café, e que, igualmente, houvesse uma vitória do campo político norte-americano que favorecesse as exportações para o maior comprador de café do mundo.

Pouco ou nada disso aconteceu. O café ainda não foi considerado o protagonista que é na preservação da biodiversidade. Nos Estados Unidos, venceu o campo político que tende a implementar péssimas medidas para o produtor agrícola. E, no final das contas, tampouco houve o engajamento merecido por parte do setor produtivo.

Por mais que ainda seja cedo para avaliar os impactos de um segundo mandato de Donald Trump para os EUA com relação ao comércio do café ou de qualquer outro produto agrícola, alguns alertas são, evidentemente, negativos. E eles contrastam com o otimismo e a euforia dos produtores, políticos e organizações aqui do interior de Minas, de onde eu continuo a  escrever este artigo.

Em 2024, Trump fez várias promessas muito parecidas com as de 2016, porém mais radicais. Algumas delas foram totalmente esquecidas durante o primeiro mandato, seja por inviabilidade política, seja porque se tratava de mero discurso de campanha. 

Vale nos concentrarmos, agora, naquelas que foram de certo modo cumpridas ou que podem impactar o produtor de café brasileiro: medidas protecionistas, redução de impostos, deportação em massa, suspensão de incentivos à economia verde e controle ideológico dos departamentos de saúde e de agricultura.

As medidas protecionistas devem afetar o Brasil em campos onde somos concorrentes dos produtos de lá, como aviões, peças e produtos agrícolas, como soja, milho, algodão, etanol e suco de laranja. Porém, medidas protetivas geram pressão inflacionária, pois originam menor disponibilidade de produtos em um setor produtivo que já tem um preço, muitas vezes, pouco competitivo. 

Mas o cenário pode ser ainda pior, pois o país vive um desemprego historicamente baixo. Se medidas protetivas forem adotadas conjuntamente às que restringem a mão de obra (como, por exemplo, dificultar a entrega de vistos de trabalho e deportar em massa), os EUA passariam a viver em um território desconhecido. 

Outra bandeira de campanha – a reforma tributária com redução expressiva de impostos a empresas e indivíduos de alta renda – adicionaria ingredientes extras a uma mistura que já é explosiva.

Por fim, temos ainda duas medidas que foram citadas frequentemente no discurso de Trump, mas que não são tão centrais como as que acabei de me referir: a retirada de incentivos a setores da economia verde e o controle ideológico dos dados emitidos pelo governo norte-americano. 

Robert F. Kennedy foi um dos concorrentes à Casa Branca este ano, até que se retirou da disputa e anunciou apoio a Donald Trump. Na última semana de outubro, Kennedy afirmou que recebeu a promessa de controlar instituições, como os departamentos de saúde e de agricultura, em um eventual governo Trump. Kennedy seria do núcleo ideológico do governo – entre outras coisas, negou a pandemia de Covid e a eficácia de vacinas. Caso controle o departamento de agricultura, controlará, também, as estatísticas elaboradas pelo USDA. Entre elas estão os dados sobre consumo e importação de café nos EUA, que acabam sendo os fundamentos mais importantes na avaliação da produção e no preço pago ao produtor na bolsa de Nova Iorque. 

Fazendo parte de um governo ultraconservador e nacionalista, as chances de que as estatíscas futuras sejam favoráreis aos países produtores de café são risíveis.  

Portanto, estamos diante de um governo que promete repetir ações que já foram implementadas no passado, resultando em um aumento relevante da inflação e na queda no poder de compra do cidadão médio dos EUA. Menos poder de compra implica menor consumo de bens e serviços – como o café propriamente dito ou o café fora de casa. Suspensão de incentivos a produtos de baixa emissão de carbono implica uma ainda menor possibilidade de renda extra aos cafeicultores, que deveriam vir a ser pagas pelos serviços ambientais prestados. Controles ideológicos e pouco técnicos dos números de produção e consumo de café envolvem uma oportunidade, para a indústria e compradores americanos, em manipular e especular o preço e a produção de café. 

Absolutamente nenhuma destas medidas traz ganhos ao produtor rural brasileiro, especialmente o de café, nem deve ser motivo de comemoração para eles. Todas elas são prejudiciais ao consumidor final de lá e benéficas apenas aos grandes importadores e comerciantes de café. Mesmo assim, existe um alinhamento ideológico automático e, porque não dizer, uma paixão pela figura de Donald Trump nos campos brasileiros e nas zonas rurais norte-americanas. 

Em um dos atos dedicados à campanha de Kamala Harris, o ex-presidente Barack Obama ressaltou algumas falas, nas quais Trump dizia se orgulhar da própria ignorância. Obama argumentou que a ignorância não deveria ser nunca um motivo de orgulho de ninguém. Nem para quem não consegue entender os fatos, nem para quem se recusa a vê-los como são. 

Exemplificando em bom português, temos o velho ditado de que o pior cego é o que não quer ver. Se existe alguém que não é cego e nem ignorante nesta história é Donald Trump. Melhor para ele, e pior para quem não quer ver.

Gustavo Magalhães Paiva é formado em relações internacionais pela Universidade de Genebra e é mestre em economia agroalimentar. Atualmente, é consultor das Nações Unidas para o café.

TEXTO Gustavo Paiva • FOTO Agência Ophelia

O que nos une é maior do que o que nos separa – o dilema dos jovens cafeicultores de Antióquia

Em um artigo passado, comentei sobre a semelhança de Medellín, capital do departamento de Antióquia, na Colômbia, com Belo Horizonte, capital mineira. Se as semelhanças entre as duas cidades não é difícil de notar para quem as conhece, a mesma lógica se mantém ao compararmos Antióquia e Minas Gerais.

Antióquia é o segundo departamento (equivalente aos nossos estados) mais povoado da Colômbia. Também é o segundo mais rico e um dos motores da independência colombiana. Foi ali que nasceu José Maria Córdova, uma das figuras mais atuantes para a independência da Gran-Colômbia, o que torna a comparação com Tiradentes óbvia.

O título desta coluna reflete uma frase comumente dita quando rivais se unem em prol de um bem maior. Desde a aliança das ex-colônias espanholas para a libertação até a ação de jogadores de times rivais que se unem para defender Los Cafeteros, como é chamada a seleção nacional colombiana.

Não seria difícil ouvir de algum cafeicultor brasileiro que o maior, ou segundo maior, rival brasileiro neste campo seria justamente o cafeteiro, de ofício, colombiano. Mas será que dentro do universo do café podemos dizer aos colombianos que o que nos une é maior do que o que nos separa?

Durante a Colombia Coffee Expo, realizada em Bogotá entre 2 e 5 de outubro, vários temas relevantes ao cafeicultor colombiano foram levantados, de tratos culturais, passando por mudanças climáticas e preços no mercado externo até o problema dos jovens colombianos em continuar na zona rural e manter o ofício dos pais.

A Federação Nacional de Cafeicultores da Colômbia (FNC) promoveu uma ampla pesquisa com os produtores de café com menos de 30 anos para entender os problemas, na visão deles próprios, que o campo colombiano enfrenta e quais as razões principais para ficar ou deixar a produção. A pesquisa foi coordenada pelo diretor de desenvolvimento social, Guillermo Arcila, e contou com entrevistas em campo com centenas de cafeicultores abaixo dos 35 anos. Os resultados foram apresentados, no evento, por Valeria Ríos e Juan Vélez.

O que se constatou foram quatro problemas principais: falta de estrutura, falta de renda adequada, dificuldade de inovar e de fazer parte de decisões importantes.

Com relação à falta de estrutura, as queixas baseiam-se na falta de estrutura privada e, também, pública. A iniciativa privada colombiana não investe ou não quer investir em estruturas básicas, como internet, e itens relacionados à qualidade de vida, educação e lazer. Os jovens entendem que, para exportar café e agregar valor, precisam ter bom inglês – mas geralmente não existem escolas de inglês em um raio de até uma hora de suas casas. 

Até mesmo o futebol foi apontado como um fator de desinteresse para a cultura do café, já que aqueles que pretendem estabelecer-se no campo não poderão dar aos filhos a oportunidade de jogar em uma escolinha, e nem eles próprios terão como manter o tradicional futebol do fim de semana – os que vivem ali são poucos e já se sentem velhos para jogar. Não tem mais time. Junte-se a isso o preço alto do maquinário, a falta de peças de reposição, a escassa assistência técnica para repor os itens defeituosos e a falta de um melhor treinamento quanto ao funcionamento das máquinas. 

Mas é claro que as queixas também recaem sobre o poder público, que não oferece rodovias adequadas e que, muitas vezes, oferece serviços de luz e água precários.

Quanto à renda, a queixa é muito similar à brasileira. Preços baixos, dificuldade de manter o café armazenado para esperar o melhor preço, excesso de intermediários e grande volatilidade do mercado são apenas alguns dos exemplos que fazem o jovem cafeicultor desistir ou, muitas vezes, nem sequer tentar a vida no campo.

Por último, as dificuldades na inovação e na tomada de decisões. É inerente ao jovem de praticamente qualquer lugar do mundo ter maior abertura ao e desejo do novo. No café não é diferente. Mas como inovar com todos os desafios citados? A resposta vem por meio da qualidade do grão e do seu valor agregado. Mas passa, também, por outras iniciativas, como o turismo e a oferta de experiências no campo para pessoas urbanas. 

Em termos de qualidade, a saída foi melhorar os processos de produção e promover a marca própria como expressão do próprio estilo. O nome, o rótulo e a marca podem parecer etapas protocolares no lançamento de um produto. Mas são, talvez, a única forma de o cafeicultor mandar sua mensagem ao mundo expondo o seu estilo. Nos tempos de influenciadores e brigas por likes, esquece-se que muitos ainda sonham com uma internet adequada.

E mesmo que o tenham, a mensagem enviada através de um rótulo e de um trabalho por trás de um pacote de café torrado tende a ser infinitamente mais profunda do que um story de quinze segundos. Portanto, quando o assunto é o cafeicultor, o que nos une é muito maior do que o que nos separa. A questão é a percepção da unidade na diferença, e a cooperação apesar da distância.

Gustavo Magalhães Paiva é formado em relações internacionais pela Universidade de Genebra e é mestre em economia agroalimentar. Atualmente, é consultor das Nações Unidas para o café.

TEXTO Gustavo Paiva

A capital latina dos cafés especiais

Se alguém contasse que a capital mais apaixonada por cafés especiais fica em um país que não planta café, você acreditaria? Claro, pois os primeiros palpites que vêm à mente poderiam ser, facilmente, Berlim, Amsterdã ou Viena, por exemplo. Mas, e se alguém dissesse que até mesmo entre países latinoamericanos esta lógica se repete? Dependendo dos quesitos considerados, a resposta é evidente: Buenos Aires é a capital latina dos cafés especiais.

Apesar da crise persistente e do descontrole inflacionário na Argentina, a capital do país assistiu, nos últimos anos, ao crescimento exponencial de estabelecimentos oferecendo grãos especiais. Esta coluna foi, então, conversar com baristas, clientes e donos de cafés para entender o fenômeno bonaerense, saber quais lições poderiam ser aplicadas ao Brasil e entender por que, apesar de tantas dificuldades econômicas, o café especial é mais respeitado na capital argentina do que nas grandes cidades brasileiras.

Antes de mais nada, é importante quebrar o primeiro preconceito relacionado ao consumo de café pelos argentinos: a suposta rivalidade com o mate. Café não é mate. Apesar das semelhanças, o consumo de mate muito raramente é feito em estabelecimentos comerciais. 

Existe uma diferença enorme entre pessoas se encontrarem para tomar mate e irem a um estabelecimento consumir mate. Além disso, o consumo do mate se dá em momentos específicos – antes do café da manhã, geralmente, ou no meio da manhã ou da tarde, quando as pessoas estão trabalhando ou estudando. Consome-se mate, também, no tempo livre, para contatos sociais, para compartilhar algum assunto. Por fim, a variedade de métodos de preparo de café, de origens dos grãos e de experiências oferecidas pelas cafeterias, diferem largamente da cultura do mate. 

Ao olhar para os indicadores econômicos e sociais, fica clara a vantagem da capital argentina em relação às outras no quesito educação. Com um ensino público acessível e de qualidade, as universidades locais recebem estudantes de vários países da América Latina, inclusive do Brasil. Pelo fato de ter um dos mais altos índices de IDH entre esses países, aconteceu em Buenos Aires o que geralmente ocorre em mercados com consumidores e mão de obra qualificados: os argentinos souberam, rapidamente, entender a importância da valorização da qualidade do produto. Mas, principalmente, aprenderam a identificar e consumir um produto de qualidade superior.

A capital argentina tem, hoje, dezenas de cafés relativamente bem espalhados pela cidade. A proporção é maior nas áreas de escritórios no centro da cidade, nas zonas ultra-turísticas de Palermo e Recoleta, e nas zonas residenciais, como Colegiales, Belgrano, Núñez e Chacarita. 

Foi justamente nesta última que o contexto dos cafés especiais começou a mudar. Cansados das hordas de turistas, dos preços surreais e da alta concorrência, muitos donos de bares e cafés deixaram Palermo e migraram um pouco mais para o oeste, para o bairro vizinho de Chacarita. O bairro, tradicionalmente de classe média, foi tomado pelos hipsters, pela gentrificação, e, claro, pelas torrefações de café de qualidade.

É evidente a influência dos bares de Palermo quando se visitam as cafeterias de Chacarita. Muitas delas parecem cervejarias artesanais, com música alta e ambiente alternativo, servindo diferentes métodos de preparo e uma ampla variedade de origem dos grãos. Mas existem, ainda, outros estilos de cafeterias que agregaram o café especial a um ambiente mais calmo, onde se pode ler, trabalhar e levar as crianças.

Por outro lado, até mesmo as redes tradicionais de café incorporaram elementos da quarta onda, ao trazerem informações detalhadas sobre a origem, o beneficiamento e o perfil da xícara – embora essas ofertas limitem-se apenas ao método espresso, e com grãos similares ou um pouco melhores dos oferecidos pelas redes comerciais brasileiras. 

É importante destacar que nestas cafeterias não se serve mate. As raras pessoas que são vistas tomando a bebida por ali já trazem tudo de casa ou pedem apenas água quente ao estabelecimento, que geralmente oferece sem custos, desde que o cliente esteja consumindo alguma coisa no local.

O sucesso também se deve ao apelo ao público jovem, que frequenta as cafeterias tanto como consumidores, quanto como baristas. Muitos destes jovens argentinos são estudantes universitários, mas há, também, a participação de imigrantes colombianos, venezuelanos e peruanos. O café especial ajuda estes imigrantes a se sentirem conectados aos seus países de origem, e também os valoriza pelos seus conhecimentos, já que muitos têm uma relação prévia com o café.

É evidente também que Buenos Aires e os argentinos tem um espírito ‘de rua’, de desfrutar a cidade e consumir algo fora de casa – seja para tomar ou comer algo entre amigos ou com parceiros. Em tempos de crise, sair para tomar um café acaba sendo muito mais econômico do que sair para jantar ou almoçar. Então, o café especial torna-se a alternativa viável para que o hábito de se conectar com pessoas queridas fora de casa não se perca.

Todos sabem das conquistas recentes do futebol argentino e da sua superioridade em relação à seleção brasileira. E todos conhecem a situação econômica e social do país nos últimos anos. Ou seja, os argentinos sabem fazer mais com menos recursos. Talvez o início da solução para nós, brasileiros, seja a humildade de aprender com eles e a maturidade de deixar de lado picuinhas nacionalistas infantis. Também vale revisitar ideias antigas como a de investimento em educação e integração de populações estrangeiras, bem como o hábito de chamar pessoas queridas para tomar um bom café.

Gustavo Magalhães Paiva é formado em relações internacionais pela Universidade de Genebra e é mestre em economia agroalimentar. Atualmente, é consultor das Nações Unidas para café.

TEXTO Gustavo Paiva