O café é a terceira cultura mais dependente de clima do mundo e o momento presente nos mostra que é preciso realizarmos novas atitudes para construirmos o que queremos hoje
Estrada da Catiara, Região do Pântano, Cerrado Mineiro. Distante 700 quilômetros de São Paulo, depois de meses e meses sem ir a uma região produtora mineira, aterrissamos em Uberlândia. Na estrada, cenas tristes de quilômetros de cafés queimados pela geada próximo à cidade de Patrocínio. Depois de receber muitas fotos e depoimentos de cafeicultores em grupos pelo Brasil, nada substitui a visita in loco e ver de perto tantas plantações atingidas pelas baixíssimas temperaturas nunca antes relatadas ali. A mudança é urgente e necessária. E é sobre isso que queremos falar.
Distante 200 quilômetros de Uberlândia, chegamos ao Pântano. Na estrada de terra, muita poeira e a falta de chuva deixam tudo mais seco e a visão por meio do para-brisa do carro um tanto quanto turva. Inevitável não imaginar os desbravadores produtores de café que há quarenta anos escolheram fincar raízes naquela região que não tinha, até então, história na produção do fruto.
Visitar o Cerrado Mineiro é ter a certeza de que o ser humano é capaz de se reinventar e criar novas formas de realizar o que tem paixão. Foi assim que o casal Gerson e Hercília Naimeg fez ao chegar à região, em 1981, vindos do Paraná, após as geadas terem atingido a plantação de café. Foram pioneiros e hoje a família tem 210 mil pés de café nas fazendas do Grupo Naimeg.
Gerson, José Aparecido, Mauro e Jorge Fernando, os Naimeg, estão sempre buscando todas as inovações no campo para melhorar as práticas regenerativas que ajudam também na qualidade do café
Fomos recebidos pela segunda geração, os filhos, José Aparecido, Jorge Fernando e a esposa, Natália, Gerson e Mauro, que atualmente são responsáveis pela produção. Após muitos quilômetros em estrada de terra, chegamos à Fazenda Pântano. Os Naimeg, como são conhecidos, têm uma enorme reputação pela conquista de dezenas de prêmios ao longo desses quarenta anos. O primeiro deles, conta José Aparecido, o filho mais velho, foi recebido em 1992, quando a torrefação illycaffè iniciava os concursos no Brasil: “Foi uma chancela muito grande, pois iniciou o reconhecimento do trabalho com qualidade aqui na região”. A conquista do primeiro lugar com o café natural foi o começo de uma história mais dedicada ao café especial e, com ele, vieram os investimentos nas propriedades. Em 2001, colocaram os primeiros terreiros suspensos e, alguns anos antes, já haviam começado a investir no café cereja descascado. Para Jorge Fernando, a parceria com microtorrefações, a visita às feiras de café desde 2011 e a avaliação do café por profissionais mudaram a forma deles de se relacionarem com o mercado. Os projetos são muitos e a família fala entusiasmada de todas as novidades: “O uso mais racional dos nutrientes gera uma planta mais saudável e que vai produzir um café de melhor qualidade”, reforça Jorge Fernando.
Protagonismo no campo
Para o cafeicultor, é preciso se reconhecer também como essa potência na produção de cafés especiais. Na maioria das vezes, esse alerta vem por meio de concursos e de profissionais de outras pontas do setor, como cooperativas, torrefadores, classificadores, baristas. Cada vez mais os cafeicultores se tornam protagonistas de suas histórias.
Conhecer produtores que se dedicam ao café especial e se preocupam com a qualidade do produto final é apaixonante. Famílias e colaboradores se integram com o objetivo de ter um resultado melhor, ano a ano. A cafeicultura, por ser uma empresa a céu aberto, exige centenas de manejos e mudanças constantes. Há alguns anos, a importância de olhar para o pilar da sustentabilidade com foco no tripé “social, ambiental e econômico” já é realidade para as propriedades que são referência no Brasil na exportação do fruto e fornecem a grandes marcas.
“Desenvolvemos diagnósticos para verificar a emissão de CO2 em cada propriedade. É um mercado forte que vai ganhar uma dimensão gigantesca” – Eduardo Estanti, Agrobiota
O aumento do consumo do café de qualidade em todo o mundo impactou direta e positivamente as lavouras pelo Brasil. O foco em oferecer bons produtos, com rastreabilidade desde o talhão em que foi colhido, o uso mais racional de nutrientes na planta, a condição essencial de cumprir com as leis trabalhistas, o cuidado no pós-colheita, a separação de lotes e outras centenas de cuidados tornou a atividade de produzir café um negócio custoso e que hoje busca encontrar o equilíbrio entre os gastos e o retorno no preço e na comercialização do café.
A preocupação com a conservação da atividade cafeeira em muitos países fez com que as grandes marcas começassem a olhar a importância do relacionamento direto com os produtores e do entendimento de que é necessário estar próximo para garantir um produto final de excelência em todos os quesitos, não somente o sensorial: “O relacionamento com os produtores é a base de tudo. O Cultivado com Respeito – que é o programa da Nestlé – tem dez anos e é o maior programa de sustentabilidade do mundo. Ele é baseado no relacionamento: você ir à fazenda, escutar o produtor, ajudar com questões mais complexas”, explica Taissara Martins, gerente de marketing e sustentabilidade de Nestlé. A empresa tem dentro do programa um total de 1.200 fazendas que a equipe visita anualmente.
Resolvemos então estar juntos em três dessas visitas para entender melhor os bastidores de um novo projeto que a Nestlé vem desenvolvendo com esses produtores. Para isso é preciso entender que, em 2019, a Nescafé – a marca mais valiosa da Nestlé – lançou o projeto Origens do Brasil. De um produto exclusivamente solúvel a marca aumentou o portfólio para o segmento de torrado e moído no Brasil.
“Queremos modelar a cafeicultura do futuro. O Brasil está liderando essa agenda. Como Nestlé, exportamos cafés para quarenta países: paladar consciente, sensorial exigente e sustentabilidade desde o nascimento” – Taissara Martins, Nescafé Origens do Brasil
De forma exclusiva, a Espresso teve acesso a um trabalho recente, mas que já vem dando frutos: o Projeto Regenerar. Hoje ele conta com as 35 fazendas fornecedoras que integram o Origens do Brasil, das regiões de Chapada Diamantina, Sul de Minas e Cerrado Mineiro.
A meta do projeto é, em 2022, essas propriedades serem 100% carbono neutro e se tornarem ‘fazendas-modelos’: “Temos que falar da produção, pois 80% da emissão de carbono na cadeia do café está nessa etapa. Não dá mais pra produzir do jeito que a gente produz até então”, analisa Taissara. Ela lembra que o Brasil está numa boa situação, se compararmos com outras realidades, “mas podemos ser bem melhores e devemos liderar isso”.
Cafeicultura do futuro no presente
Para pôr imediatamente em prática o projeto, a Nestlé buscou iniciar um diagnóstico das fazendas integrantes do Origens do Brasil. Thaisa Herzog, supervisora agrícola da Nestlé, explica durante as visitas que o trabalho começou neste ano com o levantamento minucioso das atividades e realidades de cada uma das propriedades. “Aqui no Cerrado Mineiro e no Sul de Minas, temos um perfil de fazendas maiores. Já na Chapada Diamantina, são produtores menores, então atendemos cada produtor por meio desse diagnóstico, seguido das recomendações para melhoria para alcançar a neutralidade de emissão de carbono.”
Para auxiliar nessa missão, a Nestlé tem a consultoria da empresa Agrobiota. Com visitas a cada uma das 35 fazendas, a equipe de engenheiros agrônomos deu início aos diagnósticos do ano agrícola de 2021. Segundo Eduardo Hilário Estanti, consultor da região que visitamos, a medição dessa forma detalhada é pioneira no café: “Usando uma ferramenta de inserção de dados fazemos o raio-X da propriedade. É muito interessante para os produtores compreenderem que é para otimizar todo o sistema e, com isso, evoluir todo o seu custo e benefício, diminuir gastos e viabilizar algumas técnicas para melhorar a emissão. É uma evolução que o mercado traz e é benéfica para todos”, reforça.
Um exemplo muito direto percebemos na Fazenda Pântano, de Wagner Ferrero. Lá tudo é mensurado, mas, ao receber o diagnóstico, o produtor pode ter acesso mais preciso aos gastos de combustível dos tratores, por exemplo. Na propriedade, 95% da colheita é mecanizada e a produção chega a 1.100 hectares de café. Wagner conta que é muito aberto a novidades e que é importante testar outras maneiras de fazer a cafeicultura. No local, uma grande área de compostagem prepara os adubos orgânicos e, próximo ao terreiro e ao benefício do café, é possível ver a área destinada à captação de água que, depois de tratada, volta para a irrigação, além do filtro para poluentes. A propriedade é certificada UTZ e Rainforest Alliance há mais de dez anos e comercializa cafés para países europeus, Estados Unidos e Austrália, entre outros.
Ferrero é daqueles filhos de italiano bem enfáticos quando o assunto é preservação: “Estamos aqui de passagem e temos de deixar a terra melhor para os nossos descendentes”. De um lado para o outro da fazenda, Ferrero se mostra entusiasmado com a redução da emissão de carbono: “Mas a agricultura regenerativa não é só sequestro de carbono, é outro meio de pensar”.
“Estamos produzindo 5 mil toneladas de composto orgânico para colocar nas lavouras e ao longo dos anos já plantamos 15 mil árvores de reflorestamento”, explica Ferrero
Pensar de outra forma já faz parte do DNA da família Velloso Heitor. Ao entrar na fazenda, já é possível perceber que há muito cuidado com a preservação do meio onde vivemos. “Meu pai era um conservacionista” explica Sheyla Velloso Heitor. O lugar onde não havia água no passado hoje abriga uma reserva com trilhas de árvores catalogadas e plantadas, uma a uma, por ela e Wilson Francisco de Brito. As 12 mil árvores tomaram lugar do que antes era um pasto: “Eu ando aqui hoje e não acredito que fui eu que comecei isso aqui”, revela Sheyla.
O nome Reserva Heitor veio depois, em 2017, com a consultoria do Sebrae Minas. “Há doze anos fazemos parte do Educampo, e é muito importante para desenvolver a gestão. O que mais gosto é a troca entre os produtores. Teve um encontro aqui na fazenda em que o produtor chegou, olhou e me falou: ‘Tive várias ideias para solucionar lá na minha fazenda’. Fiquei feliz de poder contribuir”, explica Marcus Heitor de Queiroz.
A família chegou à propriedade nos anos 1990. Quem conta a história é Mariana Heitor, filha dos produtores que, formada em Psicologia, morava em Brasília, onde nasceu. Em 2010, voltou para a fazenda, que fica próximo à cidade de Patos de Minas. O avô, Manoel, veio para a região do Cerrado Mineiro na década de 1970. Na Fazenda Chácara Colônia Agrícola moravam italianos e o português Manoel comprou deles, já preocupado em “cuidar dos animais”, segundo a neta. Mariana anda pela fazenda com orgulho, explicando cada etapa dessa nova fase de composto orgânico e de “reconstruir a vida no solo com as braquiárias nas entrelinhas do café”. Hoje são 131 hectares de café, com 11 variedades diferentes de café arábica e 86% da plantação irrigada com um sistema muito organizado que estão implantando para usar menos quantidade de água.
Wilson, orgulhoso de onde trabalha há 24 anos, fala que o “sonho dele era plantar”. Não só plantou como contribuiu para a criação de uma grande reserva, aonde, anualmente, há 13 anos, as escolas rurais da região levam as crianças para plantar mais de 100 mudas de novas árvores para celebrar o Dia da Árvore, em 21 de setembro. Embaixo dessas árvores ressurgiu a mina d’água da região, e é possível caminhar entre trepadeiras, bambuzais, árvores frutíferas e até paus-brasil. “Cresci com essa visão do meio ambiente”, diz Sheyla. Esperamos que mais crianças possam dar continuidade a esse legado e que o Regenerar seja possível hoje e sempre. A Reserva Heitor nos mostrou que o futuro é hoje.
Marcus, Sheyla, Mariana e Marina trabalham com respeito à natureza e fizeram “brotar” água com novas práticas agrícolas na Reserva Heitor
Agricultura Regenerativa
O que é?
O conceito foi elaborado pelo norte-americano Robert Rodale, nos anos 1990. De acordo com o site do Instituto Rodale, a prioridade número 1 na agricultura regenerativa é a saúde do solo, que está intrinsecamente ligada à saúde total de nosso sistema alimentar. Isso afeta da saúde das plantas ao bem-estar humano e ao futuro do nosso planeta.
Entre os pontos importantes, está o sequestro de carbono. E nesse ponto o Instituto Rodale também alerta que a solução para o aquecimento global está bem debaixo de nossos pés. Gases de efeito estufa – principalmente dióxido de carbono, mas também metano, ozônio e óxido nitroso – foram liberados do solo e da água para a atmosfera por processos naturais por milhões de anos. Precisamos de alguma quantidade desses gases, pois eles capturam a radiação solar e tornam nosso planeta habitável. As plantas e o carbono vivem em constante diálogo. Durante a fotossíntese, as plantas usam energia solar para extrair moléculas de carboidratos, ou açúcar, do dióxido de carbono.
Esses açúcares à base de carbono são expelidos das raízes da planta, alimentando bactérias e fungos no solo próximo. Por sua vez, esses microrganismos transformam simbioticamente os minerais do solo em nutrientes que alimentam as plantas e as ajudam a combater doenças e a pressão das pragas.
Durante essa troca, os açúcares que são consumidos pelas bactérias e fungos do solo são convertidos em materiais mais estáveis, que retêm carbono no solo por décadas, até séculos. Solo mais saudável significa realmente um planeta mais saudável.
TEXTO Mariana Proença • FOTO Murilo Gharrber