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Por trás da torra

Todo o processo do café é importante, mas é aqui que acontecem as grandes descobertas sensoriais que serão percebidas na xícara. Saiba detalhes sobre essa etapa tão decisiva e anote as dicas para quem quer começar a torrar

Você sabia que, quando verde, o grão de café não tem cheiro de café? Os deliciosos aromas que amamos e identificamos de longe quando abrimos um pacotinho de café recém-moído, extraímos a bebida ou tomamos o primeiro gole dela só aparecem durante a torra. A mestre de torras Angélica Luizz explica que nesta etapa são desenvolvidos de 800 a mil compostos aromáticos diferentes. E são eles os responsáveis pelos aromas e sabores da nossa bebida favorita. Você sabe como este processo acontece? Destacamos, aqui, algumas informações importantes sobre técnicas e sobre os equipamentos utilizados nesta etapa!

Como se dá a torra do café?

Este é um processo complexo e fundamental para o resultado final do café. O produtor pode cultivar o fruto com todo o cuidado e atenção, mas se o torrefador não souber trabalhá-lo nesse momento, o grão pode perder todo o seu potencial. A etapa da torra envolve o controle cuidadoso do calor (energia) e do tempo aplicado à matéria-prima.

Angélica explica que existem vários métodos diferentes para torrar café, mas o mais comum é utilizar um torrador de tambor, que conta com um tambor giratório, aquecido a gás ou à eletricidade. Uma vez dentro do equipamento e expostos ao calor, os grãos de café verde são torrados à medida que o tambor gira. “Essa ação de rotação garante que todos os grãos sejam torrados uniformemente, recebendo a mesma carga de energia aplicada”, diz Angélica. Para entendermos o processo, ela divide em três etapas:

Secagem/desidratação: Os grãos precisam ser secos, desidratados. Para que isso aconteça, o café deve perder seu percentual de umidade, e chegar a cerca de 12%. A temperatura média no final deste ciclo é 160ºC. Esta etapa também é importante para a captação de energia para o grão, uma vez que a última etapa da torra envolve a produção de calor.

Escurecimento/caramelização e desenvolvimento/finalização: Embora a fase de escurecimento ocorra após a secagem, ela continua durante a fase de escurecimento. “A partir de 160ºC, aproximadamente, o grão exala aromas específicos de pão torrado. É quando os precursores de aroma começam a se converter em compostos aromáticos”, explica Angélica. Nessa etapa de caramelização/escurecimento, vários açúcares presentes no grão cru são decompostos – ou caramelizados – devido à exposição a altas temperaturas no interior do equipamento. Segue-se, então, a Reação de Maillard, que é uma reação de escurecimento não enzimática presente em diversos tipos de processamento de alimentos. “Na reação de Maillard, certos açúcares (redutores) e aminoácidos reagem, formando centenas de compostos de aroma e cor diferentes, conhecidos como melanoidinas”, detalha ela. Neste estágio, a torra desacelera naturalmente – alguns mestres de torra, porém, podem induzir essa desaceleração, para garantir manobras no desenvolvimento do sabor.

O desenvolvimento é a fase final da torra, que começa no primeiro crack e termina no final do ciclo. A temperatura final da torra depende do grau de torra desejado. “O desenvolvimento é, geralmente, a etapa responsável, diretamente, pela modulação do sabor”, ensina Angélica. Essas reações, aliadas à temperatura de retirada do café (temperatura do torrador quando o mestre de torra conduz o café para a bandeja de resfriamento), definem de modo mais claro o nível de doçura e acidez do café.

Angélica destaca que cada café exige um processo ligeiramente diferente. Geralmente, os profissionais alteram a temperatura e a duração do processo. Dependendo do tipo de torra, o grão de café pode precisar de mais ou menos tempo para ser torrado, a temperaturas mais altas ou mais baixas. “Mestres de torra experientes elaboram fórmulas perfeitas para seus cafés, ao conhecê-los como a palma da mão, depois de muito estudo, avaliação e provas”, diz a especialista. Isso é necessário porque a torra adequada para um determinado grão envolve várias tentativas (e erros). “É preciso paciência”, aponta.

Estágio de resfriamento: É a etapa final do processo. A torra é interrompida para que os grãos cheguem à temperatura ambiente, cessando, de forma pontual, as modulações químicas que estavam acontecendo durante a torra. O tempo médio de resfriamento é de três a cinco minutos.

Agora que sabemos como se dá, quimicamente, o processo de torra dos cafés que consumimos, vamos conhecer um pouco mais sobre os equipamentos utilizados.

Principais características de um torrador

Um bom torrador tem um painel de controle para administrar a temperatura de torra e a rotatividade do tambor (este último existe apenas em alguns modelos). É preciso, ainda, que o torrador tenha um mecanismo que regule o fluxo de ar. Angélica destaca que a principal diferença entre os torradores é a transferência de calor aplicada aos grãos, que pode se dar por condução, convecção ou radiação.

Condução: É a transmissão de calor que envolve o contato direto de um sólido mais quente (no caso, o metal do tambor) com outro sólido cuja temperatura é mais baixa (o café cru). “A condução ocorre quando o metal condutor, já aquecido pela chama do torrador, transfere calor para os grãos”, detalha a torrefadora.

Convecção: É a a transferência de calor diretamente para o grão de café cru, por ar aquecido. A convecção acontece de duas maneiras. Uma delas é a convecção natural, em que o ar quente sobe e o ar frio desce naturalmente. Já na convecção forçada, o ar quente é expelido por um ventilador/ciclone ou ducto, transmitindo calor aos grãos.

Radiação: Aqui, não é preciso que haja contato direto entre um sólido e outro para que aconteça a troca ou emissão de calor. “O corpo aquecido emite energia radiante em todas as direções dentro do torrador”, explica Angélica. “Essa energia é refletida e transferida a outros corpos. Quando absorvido, o calor torra os grãos de maneira uniforme”, completa.

Dicas para quem quer torrar café

Quem quiser entrar no ramo de torra deve ter em mente que essa atividade depende, principalmente, do investimento na aquisição de equipamentos. Angélica recomenda que, como pontapé inicial, o torrefador iniciante dê preferência a equipamentos nacionais. “Eles têm um custo-benefício melhor”, conta a profissional. Ao mesmo tempo, equipamentos nacionais dispõem de assistência técnica, o que é essencial. “Vale investigar o que cada marca oferece a esse respeito”, sugere Angélica.

Dicas para torrefadores que desejam aumentar sua produtividade

O primeiro caminho é procurar torradores que comportem uma quantidade maior de grãos por vez. É necessário, porém, certificar-se da consistência que o equipamento oferece. “Com o auxílio de softwares específicos para monitoramento preciso dos efeitos aplicados no processo, você garante a consistência e a replicabilidade da torra desejada”, garante ela. Mas, quando o projeto do torrefador é aumentar a produção, ou seja, adquirir um torrador maior, Angélica alerta que é importante ficar atento a outros segmentos, pois essa mudança envolve todo o setor operacional, como envase e logística.

A importância do registro de dados

Aliada ao uso do torrador, a utilização de softwares de torrefação permite que o usuário trace, em tempo real, as informações em um gráfico, seguindo-as com exatidão. “Utilizar um software que se enquadre às necessidades e preferências do torrefador é uma ótima maneira de entender melhor o café utilizado e como ele reage à torra”, ensina ela.

Os dados coletados permitem ajustar fatores importantes na torra, como a temperatura, a fim de melhorar o próximo lote. Além disso, registrar dados durante o processo ajuda o torrefador a recriar perfis com consistência. “Com o tempo, o software pode gerar dados suficientes para contribuir com a criação de um banco de dados, que pode ser utilizado para planejar torras futuras”, diz Angélica. Segundo ela, os processos de produção tornam-se, então, mais eficientes, e as métricas disponíveis contribuem para a tomada de decisões de compra mais inteligentes.

O que é a reação de Maillard? Angélica explica:

A reação de Maillard é uma série de reações químicas que desempenham um papel importante no desenvolvimento dos sabores característicos do café e da cor marrom do grão torrado.

Para entendermos melhor, vamos primeiro analisar a interação entre os açúcares redutores e os aminoácidos quando o café é submetido a altas temperaturas. Os açúcares redutores são quaisquer açúcares capazes de atuar como agentes redutores, que são elementos ou compostos que perdem (ou doam) um elétron para um receptor de elétrons (agente oxidante) em uma reação química. De uma forma bem resumida, quando submetidos a altas temperaturas, os açúcares redutores reagem com as proteínas presentes quando decompostas em seus blocos de construção (aminoácidos). Vale ressaltar que o café já contém alguns desses aminoácidos sem a necessidade de quebrar as proteínas.

Ainda na reação de Maillard, em suas etapas finais, ocorre a formação de polímeros marrons contendo nitrogênio – conhecidos como melanoidinas –, que fornecem aos grãos torrados grande parte da cor do café e podem ter sabores torrados, maltados, de pão, amargos e queimados. As melanoidinas também têm um papel fundamental na percepção de corpo na bebida.

A taxa de reações de Maillard torna-se significativa na torra do café a partir de cerca de 140°C. Acima de 160°C, a caramelização entra em ação e começa a consumir os açúcares restantes. O peso molecular do café é afetado pelo tempo que fazemos a reação de Maillard na torra. Como mestre de torra, não é apenas importante fazer isso de forma correta e consistente entre os lotes, mas é uma das decisões mais importantes que tomamos antes do início do processo.

Quanto mais prolongamos a reação, maior será o peso molecular do café. Se queremos um café mais desenvolvido, a reação de Maillard é nossa amiga. Se for mais prolongada, obteremos uma sensação na boca mais pesada e rica em notas de caramelo. O importante, aqui, é prestarmos atenção à etapa de caramelização – que ocorre quase que ao mesmo tempo em que acontecem as reações de Maillard –, que também afeta a doçura do café, mas de forma diferente. Assim como na fabricação de doces, a caramelização e o escurecimento do açúcar são o início da redução da doçura percebida. Se a caramelização prolongar-se por muito tempo, o café fica com sabor queimado. Se muitos açúcares solúveis forem queimados, a xícara terá muito menos doçura e mais sabores desagradáveis, amargos ou estranhos.

Por outro lado, se a reação de Maillard durar menos tempo, o peso molecular do café será menor. Em termos de sabor, isso é ótimo para cafés que possuem qualidades inerentemente frutadas ou florais – obter um corpo leve e uma acidez pronunciada requer uma reação de Maillard que dure menos tempo, a fim de desenvolver o caramelo/a doçura sem que estes sejam ressaltados, de modo a “passarem por cima” de outras notas sensoriais.

Essas são algumas importantes decisões ligadas à reação de Maillard que os mestres de torra devem tomar na hora de construir um perfil sensorial para o seu café, levando em consideração o que a matéria-prima tem a entregar. E muita, muita prova de xícara para que haja um monitoramento e investigação dos perfis sensoriais desenvolvidos, na garantia de ter como feedback uma resposta positiva ou não às suas decisões!

Texto originalmente publicado na edição #81 (setembro, outubro e novembro de 2023) da Revista Espresso. Para saber como assinar, clique aqui.

TEXTO Gabriela Kaneto • FOTO Agência Ophelia

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