Cafezal

Raízes da terra

Com persistência e profundo vínculo entre homem e campo, aos poucos pequenos produtores provam o valor do café orgânico e familiar

Um janeiro chuvoso tomou conta de Poço Fundo, Sul de Minas, neste ano. Os produtores contam, com alívio, que o clima tem entrado nos eixos. Logo na chegada à cidade, a Cooperativa dos Agricultores Familiares de Poço Fundo e Região (Coopfam) agita-se com produtores e produtoras discutindo mercado e produção orgânica versus convencional. Não é só a chuva que torna a terra fértil aqui. O clima no município é inundado por debate, política e inquietação.

Antes desse cenário, quem reinava era o fumo de corda, mas, nesses anos de lida, Sinval Domingues da Silva, 53, viu a cultura cair 90% enquanto o café tomava seu lugar. Ele também estava lá quando os cafeicultores começaram a se organizar na política e no manejo. “Considero-me presente desde a fundação. As pessoas não conheciam orgânico, não achávamos o insumo correto e, por isso, a produtividade caía pela metade”, revela.

As dificuldades do início exigiram persistência do grupo que se reunia na igreja, na Câmara dos Vereadores ou nas calçadas da cidade. “Ninguém acreditava. Os idealizadores tiveram que ir sozinhos, com a cara e a coragem”, conta Sinval. Para superar os percalços, eles aprendiam como potencializar as lavouras. “A minha orgânica, posso dizer com orgulho, era referência. Eles tinham medo que o café não aguentasse, mas os meus ficavam de pé. A terra é muito boa”, afirma o produtor sobre seus nove anos com orgânico.

Uma nova leva de mudas de café tem sido adquirida pelos produtores. Com o apoio da Cooperativa, a época do plantio tem levado mais variedades resistentes ao solo de Poço Fundo (MG)

Anos depois, a Cooperativa enfrentou novos desafios e o desânimo geral, quando produtores abandonaram o cultivo orgânico. Foi nesse tempo que os cooperados decidiram buscar novas lideranças, entre elas Clemilson José Pereira. “O presidente entrou novo, a gente desconfiava por conta da idade. Mas hoje vemos que valeu a pena!”, confidencia Sinval.

Ainda em 1991, quando os fundadores tinham em comum a ligação com a Pastoral da Terra, Clemilson já frequentava as reuniões. “Foi fazendo, errando e acertando, que tudo foi construído”, explica. “Comecei a participar com 13 anos e até 2010 eu era apenas associado. Foi aí que entrei para a diretoria como vice-presidente”, pontua Clemilson, que permaneceu no cargo de vice por dois mandatos e, agora, segue para encerrar seu ciclo como presidente, que pretende abrir para outras pessoas e ideias.

Nas mãos das próximas gerações, a Coopfam entrega uma estrutura com benefício, rebenefício, torrefação e equipe de provas. Só em 2016 foram recebidos 1.700 lotes que resultaram em 40 mil xícaras provadas. “Muita gente está voltando para o orgânico. O trabalho está nota 10 e temos mercado certo para o produto”, pontua Sinval. sobre as mais de 300 famílias que seguem aprendendo juntas.

Mais novo que parte dos cooperados, Clemilson José Pereira assumiu a presidência da Coopfam lutando contra a desconfiança. Agora, encerra seu ciclo vendo a retomada do cultivo orgânico.

Cultivando raízes

Na luta diária, a família Domingues da Silva vive há 35 anos a cafeicultura. Agora, com Heverton Willian da Silva, sua esposa, Clis Amanda Oliveira Muniz Silva, e a pequena Vitória, filha do casal, o ciclo se perpetua. “Comecei ajudando com 13 e 14 anos”, conta Heverton, que acompanhava o pai, Sinval, e hoje tem a própria lavoura.

Entre as lavouras da família, está o Sítio Jacutinga, onde residem, e o Sítio Santo Expedito, que fez nascer o café premiado pela Coopfam, em 2016. Mesmo cultivando as raízes da produção familiar, o casal soube trazer novas técnicas. “Eu ouvi falar de um produtor na região que tinha secador de caixa. Fui visitá-lo e pedi o projeto. Aí copiei em um papel e, voltando para casa, construí este”, conta com simplicidade o produtor que, a partir da observação, fez o próprio equipamento.

Sinval Domingues da Silva incentivou o potencial criativo do filho Heverton Willian, que construiu o próprio secador de caixa. Junto à esposa, Clis Amanda, Heverton teve seu café eleito o melhor de 2016

Mas não foi tão fácil convencer os pares da boa iniciativa. “Ninguém queria apostar, então nós secamos nosso próprio café e provamos que funcionava”, afirma Heverton. Na região das lavouras, que chega a mais de 1.100 metros, a secagem é demanda de Clis Amanda, que roda o café no terreiro até oito vezes por dia.

O secador veio em boa hora e, ainda em 2016, o próprio microlote enviado ao concurso foi o que pôs à prova a qualidade do método. “Estava chovendo e a gente teve que colocar tudo no secador”, conta o casal. Enquanto o terreiro aguardava o tempo firmar, o secador de caixa cuidou dos grãos campeões.

Luta feminina

Entre idas e vindas de luta e inovação, outro café produzido na Cooperativa se manteve fiel às raízes: o Orgânico Feminino. Quem explica a história, que começou antes mesmo de sua participação, é Vânia Lucia Pereira Silva. “As pioneiras iam às reuniões com os maridos, mas não podiam votar! Elas perceberam que isso não era justo. Hoje parece um absurdo, mas era assim quando elas começaram.”

A partir daí, foi formado o Grupo Feminino, com reuniões mensais para debater estratégias e abraçar a causa uma das outras. “Com a luta, elas conseguiram entrar como cooperadas e, hoje, mulheres e homens andam lado a lado dentro da Cooperativa”, argumenta Vânia, que começou a participar do Grupo Feminino em 2006 e vê na filha Camila continuidade para seus passos firmes mesmo que distantes do cafezal.

Tatiana Samara da Silva Mendes, filha de cafeicultores, conhece bem o potencial da produção familiar e hoje atua na Coopfam.

Na lavoura ficaram ela, o marido, Sebastião Oliveira da Silva, e os filhos Daniel e Gabriel. Mas somente há doze anos, com o cultivo orgânico, Vânia conseguiu tranquilizar seu coração. “Muito além do dinheiro, do financeiro, está a qualidade de vida. Saber que meus filhos estão trabalhando sem perigo de contaminação. Saúde não tem preço que pague”, declara.

Para incentivar as produtoras, a Coopfam doou mudas orgânicas e micronutrientes. Hoje, a cafeicultora tem 3.800 pés em produção, entre catuaí vermelho e catucaí amarelo, e outras 2 mil mudas da variedade arara, que promete ser mais resistente às pragas. “Aqui em casa, a gente faz tudo junto, e primeiro colhemos o orgânico, que requer mais cuidados. Mas quanto ao meu café, sou eu que comercializo e gerencio todo o processo”, afirma.

Apesar de todo o empenho, não é toda produção que pode ser declarada orgânica. Segundo Vânia, “é difícil mudar essa mentalidade e acreditar que é perigoso mesmo, porque o orgânico dá mais trabalho, mais mão de obra”, revela a produtora que ainda vê seu sítio cercado por propriedades convencionais. Mesmo assim, a família já tem seu pomar todo orgânico, com certificação participativa, e no cafezal, onde a técnica é trabalhada há mais tempo, vê as análises de solo mais positivas. “Meus talhões estavam em processo e só neste ano vou vender como orgânico de fato. Nosso objetivo é comercializar tudo com a certificação”, conta Vânia.

Arte em café

Mas nem só a lavoura é a base da união entre as mineiras. O Grupo Feminino acolhe também quem trabalha com artesanato, como Dayane de Assis dos Santos Ferreira. No Sitio Pinhalzinho, ela e Fábio Antonio Ferreira dividem mais do que a produção de 2.500 cafeeiros. Os dois têm gosto e dom para a arte, que já mostra ser hereditária quando a pequena Bianca decreta: “Eu também faço artesanato!”.

Em meio a brinquedos dela e do irmão Felipe e desenhos feitos por ela, a pequena mostra seu parquinho de madeira no quintal e o álbum de fotos de seu aniversário. O escorregador, as esculturas de princesa que enfeitaram a festa e o próprio álbum, tudo foi feito pelas mãos habilidosas dos pais.

A produtora Dayane Ferreira e a pequena artista Bianca.

De café, muitas outras peças. O baú que enfeita a cozinha da casa é fruto do trabalho da produtora com juta de café e borra. Os materiais são os mais utilizados junto à palha do café, explica ela, que está no grupo de mulheres há quatro anos. A matéria-prima é farta pela propriedade, que tem 2.500 pés de café convencional mundo novo, base para a subsistência da família, enquanto outros 1.200 pés de catucaí engatinham em seu primeiro ano de transição para orgânico e começam a mostrar potencial.

Em paralelo, Dayane trabalha com encomendas do artesanato e de cigarro de palha. O que já está no planejamento é uma loja virtual onde eles possam vender as peças, que vão de luminárias e caixas a chaveirinhos e modelos decorativos. Enquanto o artesanato não é o carro-chefe, as mãos que trabalham com delicadeza também levantam paredes. “Fizemos tudo o que temos. A casa, a tulha, o parquinho”, conta a produtora sobre a construção que guarda sacas do grão beneficiado.

Quem faz o manejo e a colheita é Fábio, enquanto Dayane seca os grãos, de maio a agosto. “Não tem descanso. Sete dias por semana e em 2016 deu muito trabalho. Tudo na chuva por uma semana inteira. Mesmo assim a qualidade surpreendeu”, conta ela.

Hoje a família tem 320 metros quadrados para secar seu café, mas sonha com o novo terreiro, que deve agregar mais 250 metros quadrados. A conquista vai ser financiada pela Coopfam. “O projeto destina R$ 5 mil por produtor para a construção dos terreiros ou outras instalações que forem necessárias e se encaixarem no orçamento”, explica Dayane, que já se prepara para pôr a mão na massa neste ano.

Terra de todos

A alguns quilômetros dali, outra família traça planos para o futuro. Sandra Aparecida dos Santos sai para o trabalho fora da propriedade, enquanto Luís Carlos da Silva não abre mão do trajeto até o Sítio Cachoeira. “Fui com 17 anos para São Paulo, fiquei por cinco anos lá e depois voltei”, lembra ele sobre o tempo longe do campo, quando trabalhou como gesseiro. “Toda a vida a gente gostou de mexer com café. Eu lido desde que tinha 7 anos e estou com 53”, conta.

Natural de Campestre (MG), Luís sempre teve uma profunda ligação com seus padrinhos, de Poço Fundo. Foi através desse elo que Luís conquistou sua terra. “Deus ajuda porque eles (a família do padrinho) decidiram vender a parte do café e me avisaram.” A notícia animou o produtor, que já sabia do Programa de Crédito Fundiário, difundido na região pela Cooperativa.

“Já começamos a cuidar da terra desde que o dono disse que era certeza que seria nossa. Pedi licença e vim trabalhar”, conta Luís Carlos da Silva

Luís então se inscreveu para financiar o terreno, em 2010, e aguardou. “Demorou dois anos. O governo achou muito caro o que estavam pedindo pela terra. Então fizeram reunião para mostrar que valia isso mesmo, os R$ 40 mil”, explica. Na época, a propriedade não alcançava boa produtividade por falta de manejo, mas nada abateu os agricultores. “Já começamos a cuidar da terra desde que o dono disse que era certeza que seria nossa. Eu pedi licença e vim trabalhar”, lembra com entusiasmo.

Em uma altitude de 1.170 metros e com bons cafeeiros já plantados, a conquista tão desejada resultou em premiações pela qualidade do café, em 2014 (2º lugar) e 2015 (campeão e 5º lugar) no concurso da Coopfam. “Agora a gente cuida direitinho”, afirma sobre a lavoura de catuaí vermelho que segue esqueletando para reaproveitar a matéria orgânica.

Dono do sítio há um ano, o produtor entregou a terra com 1,4 mil mudas de cinco meses em um novo espaçamento. Os pés que já estavam em produção e que nasceram bem antes têm espaçamento mais largo e antigo. Lá embaixo, um terreiro e a tulha histórica recebem os grãos de toda a propriedade para que a primogênita do casal, Jéssica, 20, seque tudo com cuidado. “Ela gosta de trabalhar nisso. Acorda cedinho há três anos e vai o dia inteiro na secagem. Minha esposa e meu filho ajudam na lavoura”, conta Luís, que tem com Sandra mais uma filha, Julia, de 12 anos.

Com a produção familiar, eles descobriram juntos a qualidade de seus grãos. “Eu consegui uma lavoura mais alta e comecei a participar do concurso em 2014. Nem sabia que era bom o meu café e, a cada ano que passa, dizem que melhora. Nós caprichamos para não perder qualidade depois de colher”, destaca o produtor, que valoriza mais ainda o trabalho da natureza na terra destinada a eles.


(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso referente aos meses março, abril e maio de 2017 – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).

TEXTO Thais Fernandes • FOTO Lucas Albin / Agência Ophelia

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