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Fermentação positiva. O que é?

fermentação positiva do café

A expressão café fermentado é usada há décadas para definir café de má qualidade, mas experimentos recentes provam que a fermentação simplesmente ainda tem muita história para contar

Na era dos cafés especiais, cada ponto do cupping final é valioso (na metodologia norte-americana SCAA)! Grãos com pontuação alta podem ter o preço até quatro ou cinco vezes maior que o de mercado. “Já pagamos R$ 2.700 na bica corrida de cereja descascado do Rancho Dantas (Brejetuba-ES). Ele foi campeão do concurso de qualidade que promovemos em 2015 no Espírito Santo e atingiu 91,5 pontos”, conta o trader da Bourbon Specialty Coffees, Thiago Trovo.

Ao entrar no mercado de cafés especiais, o produtor tem mais chance de aumentar seu lucro e ainda não fica refém das oscilações de preço de commodity. É por isso que muitos estão investindo tempo, trabalho e dinheiro no campo e no manejo pós-colheita para melhorar cada vez mais o perfil sensorial dos grãos. É nesse cenário, portanto, que técnicas de fermentação positiva no café estão sendo testadas e estudadas.

Foi com um café de fermentação positiva, por exemplo, que o atual campeão brasileiro de barismo – Leonardo Moço – ganhou seu último título, em 2015. “Usei um lavado (washed) com uma levedura específica que fermenta cervejas tipo ALE, em parceria com o produtor Thiago Mota, da Fazenda Jatobá, na cidade de Patrocínio”, explica Leonardo.

O experimento, porém, foi uma casualidade. Ao saber que o barista procurava um café único para sua apresentação no
campeonato, o representante da Federação dos Cafeicultores do Cerrado Mineiro, Juliano Tarabal, sugeriu que ele usasse grãos do Cerrado. Para escolher um perfil sensorial diferente, técnicas de fermentação com levedura de cerveja foram adotadas. Esse café “tinha características de um washed como se fosse colombiano ou da América Central”, recorda Leonardo.

Testes e muitas perdas

Na esperança de produzir cafés que vão surpreender o paladar, testes com diferentes leveduras e de fermentação natural (com micro-organismos presentes na fazenda) estão acontecendo em várias regiões do Brasil. Alguns deram muito errado, poucos continuam com resultados positivos.

Antes de celebrar um aumento de 40% nos preços de sua saca (com cafés de maior pontuação) por meio de técnicas de fermentação, Mariano Martins, produtor da Fazenda Santa Margarida, localizada em São Manuel (SP), amargou grandes prejuízos. “No começo, perdi de 20% a 30% do valor até acertar a mão”, recorda-se. Ele decidiu manipular o processo de fermentação no ano de 2008, quando foi registrado o inverno mais chuvoso de que se tem notícia. “Isso foi logo no começo, quando assumi a fazenda e o café não secava no terreiro de jeito nenhum!”, conta.

As piores crises são berço das melhores ideias e foi assim que Mariano começou a estudar alternativas. Suas respostas foram encontradas na Colômbia, mais especificamente em Huila, região onde as características climáticas eram semelhantes às de sua fazenda, com a única diferença de que os grãos colombianos têm fama no mundo todo. “Para minha surpresa, descobri que os cafés lavados dessa região eram 40% mais caros que o padrão brasileiro”, afirma.

Outro acaso também inspirou o pesquisador da IFRJ Ademário Júnior a estudar os caminhos da fermentação positiva de cafés. Segundo ele, a ideia de pesquisa surgiu quando um cafeicultor da região da Serra do Caparaó esqueceu algumas sacas de plástico cheias de café cereja no campo, na sombra entre os pés de café. Para não jogar fora, Ademário decidiu ir em frente, provou o café e notou que seu sabor estava melhor. Foi assim que um projeto de pesquisa foi
redigido, em conjunto com cafeicultores, provadores de café e pesquisadores, e aprovado no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

“Após longas discussões com os cafeicultores, foi preparado um experimento que controlava: (I) tempo de fermentação nas condições originais, (II) tipo de descascamento (ou não) da polpa e (III) altura de pilha no terreiro para quatro cafeicultores de altitudes diferentes”, explica o pesquisador. Além disso, a temperatura da sacaria em que o café fermentava foi medida durante os sete dias (prazo máximo) de fermentação, de meia em meia hora.

Cada cafeicultor gerou quinze amostras na combinação desses fatores em sacas de plástico. Os cálculos feitos a partir da resposta sensorial por cupping mostraram que havia uma melhora de qualidade. “A resposta não era a mesma e dependia do cafeicultor, mas, de modo geral, quatro dias de fermentação funcionavam bem para todos eles naquela região”, afirma.

Pesquisas e resultados

A cafeicultura do maior produtor do mundo, porém, não pode viver de acasos. Foi por isso que o professor e pesquisador da IFSULDEMINAS Leandro Carlos Paiva começou uma pesquisa em 2015 para mapear diferentes processos de fermentação. “No começo, as experiências buscavam melhoria sensorial na qualidade do café de acordo com a metodologia SCAA. O objetivo era apenas achar um meio de aumentar a pontuação, valorizando o produto final”, explica Leandro.

Nessa primeira fase, o tempo de fermentação estava entre catorze e dezoito horas em caixa d’água de plástico na IFSULDEMINAS e em tanques de concreto nas fazendas. “A ideia era evitar um ambiente laboratorial, onde qualquer parâmetro pode ser controlado. Queremos simular as condições que qualquer produtor terá em sua propriedade”, conclui. Durante os testes, notou-se uma fermentação bem intensa com temperatura máxima do mosto de 28 ºC, e o pH variou entre 5 e 3. Nesse cenário, o café não apresentou nenhum cheiro de ácido acético (vinagre), mas dava para observar que a polpa já havia se desprendido.

fermentaçao-positiva

Na Fazenda Santa Margarida, em São Manuel (SP), o produtor Mariano Martins realiza as fermentações em tanques, com medição precisa do pH e da temperatura

Vale lembrar que esse processo é utilizado na Colômbia há mais de cinquenta anos, mas nunca houve um estudo científico que avaliasse os sabores e aromas. Essa técnica é usada por lá para retirar a polpa rapidamente e evitar a fermentação ruim em clima muito úmido. Ou seja, a técnica é a mesma, mas os objetivos são totalmente diferentes entre Colômbia e Brasil. Como conclusão dos experimentos do ano passado, uma novidade bastante inspiradora: “Notamos um aumento médio de 3 pontos na classificação da SCAA”, afirma.

Essa constatação provada cientificamente nos estudos da IFSULDEMINAS já permeava as teorias de Mariano Martins e do barista Leonardo Moço muito antes. Em toda a história da Fazenda Santa Margarida, da família Martins, essa foi a primeira vez que ela produziu cafés com perfis tão diferentes, na safra de 2009.

Mesmo com um café melhor, não houve interessados na compra daquele grão diferentão. “Tive que vender o café como commodity, mas procurei entender o que ele tinha de diferente”, explica Mariano.

Depois de enviar amostras para diferentes degustadores, foi a barista Isabela Raposeiras que incentivou seus experimentos ao provar o café. “Ela me disse: ‘Não sei o que você está fazendo, mas continue fazendo. Eu conheço o café da região e esse está diferente’.’’ Na sequência, ela indicou um comprador em Nova York que adorou o resultado final. “Ele disse que o café tinha uma acidez macia”, afirma Mariano.

Com boas perspectivas no horizonte e sem estudos acadêmicos em mãos, ficou decidido que era necessário compreender esses cafés cientificamente. Foi quando uma parceria com uma universidade da Europa foi fechada e testes de cromatografia (teste laboratorial que mede quantitativamente a presença de ácidos nas unidades por grama) foram realizados.

Desde então, “comecei a modular o tipo de ácido que eu queria no café”, conta Mariano. Para 2016, seu desafio é dominar corpo, textura, maciez e finalização. “Quero acrescentar camada de potência sensorial mais pesada, como foi com o Guaranoia (corpo agradável, licoroso, com potência aromática). Esse é nosso brinquedo mais recente”, conclui.

Lá em Machado, na IFSULDEMINAS, o desafio deste ano é dar sequência à pesquisa com os resultados positivos registrados em 2015. Essa segunda fase, que ainda está em andamento, tem o objetivo de identificar que tipo de levedura será mais eficiente no melhoramento sensorial do café. Três leveduras (cerveja, vinho e champanhe) e dois lactobacilos (thermófilos e mesófilos) estão sendo testadas em intervalos de tempo diferentes: entre sete e cem horas no tanque de fermentação.

Feita em cooperação técnica com as fazendas O’Coffee (Pedregulho/SP), Iracema (Machado/MG) e Santa Jucy (Cassia dos Coqueiros/SP) e a IFSULDEMINAS/Machado, a pesquisa já mostra indícios surpreendentes. De acordo com o pesquisador Leandro, os resultados preliminares indicam que as leveduras tiveram respostas, mas os resultados foram parecidos independentemente do tipo de fermento. “O mais importante na fermentação é dar condições para ela acontecer e saber o momento certo de finalizar. Os parâmetros importantes nessa decisão são temperatura e pH. O ideal é manter entre 25 ºC e 30 ºC e pH entre 3 e 5”, explica.

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Detalhe da mão do produtor com o melado do açúcar natural do fruto do café, que contribui para o sabor final da bebida

Perguntas e respostas

Entre os experimentos que estão acontecendo em diferentes partes do Brasil, alguns fatos foram citados pelos aventureiros que estão apostando na peleja dos cafés fermentados.

Leveduras realmente fazem a diferença? Resultados prévios da IFSULDEMINAS indicam que o uso de leveduras diferentes não representa grandes alterações sensoriais na xícara. De modo geral, elas melhoram o perfil sensorial, mas não conferem características mais frutadas ou mais doces ao grão. Ou seja, uma levedura de cerveja não garante uma nota mais cítrica, por exemplo.

Existe uma fórmula para seguir? Não existe uma “receita de bolo” ou uma padronização de fermentação. Cada região, cada fazenda, cada talhão faz a diferença, principalmente se a fermentação for natural (com micro-organismos do local). Para testar em sua fazenda, o produtor tem que estar disposto a aprender e a perder um pouco de dinheiro em testes. “Você vai ter que estudar muito! Você terá que ser um integrador de conhecimento”, ressalta Mariano.

Fermentação de café versus fermentação de cerveja e vinho? Infelizmente, a fermentação do café não tem as facilidades e os padrões da indústria do vinho e da cerveja. De acordo com o professor Leandro Carlos Paiva, existe um controle melhor de temperatura e pH do vinho e da cerveja e o controle da quantidade de açúcar do mosto do vinho, do lúpulo e do malte da cerveja é mais simples. “Esse controle é mais fácil para decidir o volume de levedura que será adicionado (número correto de micro-organismos que serão inseridos por litro) ao café”, explica.

No café, o controle de açúcar e temperatura não existe. Portanto, fica complicado definir a quantidade exata de levedura (número de micro-organismos por litro de café cereja – que pode ser descascado ou natural).

Além desses parâmetros, o café pode sofrer muita influência na secagem dos grãos e ainda passa por um processo térmico: a torra. Daí a complexidade dos cafés de fermentação positiva. Existem altos riscos de perder toda a qualidade adquirida na fermentação se a secagem for malfeita. O mesmo princípio é válido para a torra. “Por isso, muitas vezes certas fermentações não têm o resultado esperado”, finaliza Leandro.

(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui)

TEXTO Kelly Stein • FOTO Divulgação Martins Café/Fazenda Santa Margarida

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