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Existe cacau em SP
O cultivo do fruto amazônico, realidade no estado paulista, desperta a atenção das grandes indústrias e dos pequenos chocolateiros
Quando se fala em cacau brasileiro, a primeira região que vem à mente é o Sul da Bahia, imortalizada em obras de Jorge Amado e nos livros de história, que retratam a época áurea do cultivo nos anos 1920 e o
abrupto declínio no fim da década de 1980, quando a vassoura-de-bruxa devastou quase 80% do plantio. Quando parecia que o fruto tinha perdido protagonismo no Brasil, eis que a Bahia volta a tomar fôlego e a região norte dá notoriedade ao cacaueiro em seu berço, a Amazônia, em plantio que reúne volume e qualidade.
Mas como o Brasil está longe de ser autossuficiente em cacau e a disparada de seu valor tem sido motivo de preocupação mundial, novas frentes de produção fora das áreas tradicionais têm sido vistas com ótimos olhos. Aí é que São Paulo entra com força.
Depois de investidas pontuais no cultivo de cacau na década de 1970, o que parecia um sonho duvidoso
tornou-se realidade para cerca de 40 agricultores do estado. As apostas para ver o fruto do chocolate florescer com sotaque paulista vêm principalmente do programa Cacau SP.
O programa é um protocolo de cooperação entre Secretaria de Agricultura e Abastecimento (SAA), por meio da Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (CATI) e da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (APTA), e Ministério da Agricultura e Pecuária. Além de apresentar tecnologia no campo e capacitar produtores e técnicos, o programa se propõe a unir elos da cadeia, aproximando pesquisadores e compradores dos produtores.
Começa no Planalto
Iniciado em 2014 de forma experimental no Planalto Paulista para compensar a perda de valor das seringueiras e trazer o plantio do cacau em formato de consórcio, o programa hoje comemora os cerca de 300 hectares de cacaueiros nesta região, que fica no noroeste do estado.
Conhecido pela pecuária e pela produção de cana-de-açúcar e laranja, o Planalto Paulista tem clima quente e de baixa umidade, o que se torna um desafio ainda maior para um cacau bem-sucedido. Mas é aí que os conhecimentos técnicos entram em cena.
Além das seringueiras, atualmente são as bananeiras que se destacam no modelo consorciado. “Como a região tem insolação muito forte, as bananeiras fazem o sombreamento inicial para entrarmos com as mudas de cacau”, explica Carlos Eduardo Rosa, engenheiro agrônomo da CATI de São José do Rio Preto. “Além disso, as bananeiras auxiliam na proteção do vento e são outra fonte de renda para o agricultor”, completa.
Tão importante quanto esses aspectos é a irrigação, indispensável para tornar o cacau viável no Planalto. “Temos um inverno seco muito bem definido, que coincide com a época de enchimento de fruto, então precisamos de irrigação para suplementar essa falta d’água”, detalha Rosa.
Ainda é cedo para se falar em terroir, mas as variedades mais indicadas pelo programa para o Planalto já são encontradas em grande parte do Brasil: a CCN 51 e a PS 1319. Ainda não se sabe se, em terras paulistas, esses frutos ganham diferentes características. “Por enquanto, não temos um perfil sensorial bem definido, pois as novas áreas plantadas estão começando agora e a produção vai depender da época da colheita. Como tudo é muito novo, vamos devagar”, diz o agrônomo.
Quem está aguardando ansiosamente seus frutos é Mônica Munhoz, produtora agrícola no município de Palmares Paulista que, após quatro anos de plantio, vai poder colher seu próprio cacau este ano. “Optei por uma nova cultura, para não ficar tão dependente da seringueira nem da cana-de-açúcar e que fosse interessante para a família”, revela Mônica, que hoje tem 10 mil pés concentrados em seis hectares (juntamente com bananeiras, claro).
Mesmo ainda sem suas amêndoas em mãos, Mônica já recebeu a visita de grandes indústrias, como Barry Callebaut e Puratos. “A CATI, além da assessoria inicial, tem trazido pessoas importantes do mercado, o que abre inúmeras possiblidades”, relata a produtora que, em paralelo, dedica-se com a família à marca de chocolates Therê. Por enquanto, sua fabricação só leva as amêndoas secas e fermentadas da Bahia. “Mas a partir de agosto teremos nosso chocolate paulista”, diz.
Em direção ao Vale do Ribeira
A nova aposta do Cacau SP é a região do Vale do Ribeira, no sul do estado. Já há cultivos antigos na região – cerca de 300 hectares –, mas a intenção do programa na área, lançado em abril deste ano, é revigorar o que já existe, com conhecimento técnico e tecnológico, além de ampliar a área cacaueira. E potencial não falta.
Diferentemente do Planalto Paulista, o Vale do Ribeira tem clima quente e úmido na maior parte do ano, com grande área de Mata Atlântica, o que dispensa o uso de irrigação. “O Vale é mais parecido com a Bahia, com o sistema cabruca”, conta Bruno Lasevicius, presidente da Associação Bean to Bar, sobre o modelo de plantio do cacaueiro em meio à mata nativa.
Ele, que também é dono da marca de chocolates Casa Lasevicius, em São Paulo, acredita que a região tem vocação para o cacau fino, ideal para chocolates artesanais de qualidade. “No Vale do Ribeira, os materiais são mais antigos, menos produtivos, mas possuem variedades interessantes”, explica ele, que lançou em 2023 cinco chocolates com o fruto paulista, sendo um de Olímpia, no Planalto, e o restante de Itariri e Pariquera-Açu, no Vale. “Deu para ver o potencial do cacau, mesmo sem a experiência do cacau fino”, conta o chocolateiro, que aguarda a nova safra paulista.
Outra chocolateira que deposita suas fichas no Vale do Ribeira é Denise Aruquia, da Pé de Chocolate, também na capital. Uma de suas criações, o chocolate Cacau de São Paulo, é feito com café da Mogiana e cacau cultivado por seu pai, Adenor Luiz, no sítio da família em Itariri. “Ele plantou as sementes trazidas da Bahia por um amigo e, em 2020, teve sua primeira colheita”, relembra.
Depois de participar de cursos, Denise, que já era chef confeiteira, decidiu aproveitar o rico fruto para
dar vida a chocolates e abriu sua própria marca. “A produção do meu pai é pequena, então, tenho de comprar de outros produtores, mas o chocolate de São Paulo é o mais vendido”, conta Denise, que dá seu palpite sobre as características sensoriais do cacau: “O paulista tem a amêndoa mais escura e cheiro intenso de caramelo. Traz um pouco de adstringência e é mais seco em manteiga de cacau, diferentemente do cacau amazônico, que tem mais acidez e mais manteiga.”
Enquanto o cacau paulista vai tomando corpo, a curiosidade dos chocolateiros paulistanos só aumenta. A chocolatière Priscyla França, de marca homônima de chocolates bean to bar, na zona sul da capital paulista, está em contato com produtores locais. “Já quero começar a usá-lo”, adianta ela.
Arcelia Gallardo, da Mission Chocolates (SP), teve uma bela experiência com o fruto cultivado em Ilhabela, no litoral norte paulista, em 2017, quando fez uma barra 72%. Com notas de bolo de chocolate e acidez cítrica, ganhou medalha de bronze no Academy of Chocolate de 2017. “Só não usei outras vezes porque não tinha produção suficiente, mas gostaria de ter de novo”, revela.
Também vale mencionar as vantagens do cacau paulista frente às produções de outros estados. “A proximidade entre chocolateiro e produtor é algo positivo, assim como a facilidade logística e a questão tributária”, opina Lasevicius.
E, para os produtores, as benesses vão além do chocolate. “O cacau traz crescimento econômico para a região, pois é cultura de alto valor agregado”, pontua Rosa. Além disso, traz benefícios sociais. “São gerados muitos empregos; e há o benefício ambiental, já que é uma planta perene e que permanece vários anos no solo”, ensina.
Ainda há muitos frutos para São Paulo colher pela frente. O programa Cacau SP já tem um projeto de expansão em Caraguatatuba e Ubatuba, no litoral norte, onde existem cultivos da década de 1970 carentes de desenvolvimento.
E nada impede que o cacau apareça em novas áreas do estado. “São Paulo tem uma vocação para a fruticultura, por isso acreditamos que o cacau se adaptará muito bem com outros produtos”, explica
Rosa. Além disso, continua ele, exceto pelas regiões mais frias, o clima do estado é propício, de temperaturas altas e com bons níveis de volume de chuva ao longo do ano. “Esses fatores vão colocar o estado paulista como um dos grandes players de cacau no Brasil”, aposta.
Na merenda
Em parceria com a CATI, a cidade de Mendonça, no Planalto Paulista, criou o projeto Rota do Cacau, no fim de 2023. Além do foco no turismo rural sustentável e no desenvolvimento agrícola da região, o projeto incluiu o chocolate na merenda escolar. Quinzenalmente, as crianças das escolas municipais passaram a receber uma porção de 20 g de chocolate 50% cacau, feito com nibs e açúcar demerara, como um alimento funcional.
Saiba mais
Não é de agora que o Estado de São Paulo se interessa pelo plantio extensivo de cacaueiros. As primeiras tentativas são de 1950, em Caraguatatuba, na propriedade da indústria de chocolates Lacta. “Tentou-se implantar o cultivo de cacaueiros valendo-se tão somente de técnicas recomendadas a outras regiões cacaueiras do país”, diz Fausto Joaquim Coral, 90 anos, ex-diretor do Instituto Agronômico de Campinas (IAC) e destacado, em 1962 pelo instituto, para dedicar-se integralmente ao cultivo da planta.
A prioridade, por tradição e facilidade, diz ele, foi estudar cientificamente o cacaueiro nas condições de floresta – na Mata Atlântica do Vale do Ribeira e do Litoral Norte. Depois, sob diferentes condições de manejo, na Baixada Santista e, nos anos 1970, no Planalto Paulista, implantando projetos de pesquisa em cidades como Ribeirão Preto, Mococa, Pindorama, Bebedouro, Adamantina e Alvilândia, entre outras. “Os resultados obtidos com essas pesquisas demonstraram fartamente que o plantio tecnificado do cacaueiro em várias áreas potencialmente aptas do Planalto Paulista se justificava como alternativa economicamente viável e promissora”, relembra Fausto.
Em 1984, a Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo implanta um projeto de cacau para o estado, o PECASP (Plano de Expansão da Cacauicultura em São Paulo), tecnicamente apoiado pelo IAC e pelo CATI. “O Banco do Brasil daria apoio financeiro para financiar as lavouras, como se procedia em outras áreas do território nacional”, explica o cientista, lembrando da desistência posterior do banco no projeto. “Os agricultores paulistas tiveram, a contragosto, que recuar em suas metas e pretensões”, conclui.
Agora, em 2024, São Paulo retoma as antigas pretensões de poder, também, se projetar como região produtora de cacau. “Acho que agora o estado está mais forte e apto, e espero melhores atenções por parte das instituições financiadoras”, anseia Fausto. (por Cristiana Couto)
Texto (exceção ao box “Saiba mais”) originalmente publicado na edição #85 (setembro, outubro e novembro de 2024) da Revista Espresso. Para saber como assinar, clique aqui.
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