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Como a Inteligência Artificial pode servi-lo nas cafeterias?
A tecnologia, que começa a ser usada pelas cafeterias no mundo, oferece bebidas consistentes e eficiência nos processos da operação do negócio
Todos os dias parece surgir uma nova manchete sobre Inteligência Artificial (IA) revolucionando – ou mesmo ameaçando – o mundo como o conhecemos. Mas, por trás do alvoroço, essa poderosa tecnologia tem o potencial de reinventar a economia global e já está sendo aproveitada por empresas de café e de hospitalidade, trazendo novas possibilidades em áreas como personalização do cliente, consistência de bebidas e eficiência operacional.
É necessária uma coordenação, em altíssima velocidade, entre bilhões de neurônios no cérebro humano para que um barista receba um pedido de café, prepare a bebida e deseje um bom dia ao cliente. Cada vez mais, porém, há outra mente sofisticada trabalhando atrás do balcão. A Inteligência Artificial não é mais ficção científica, e já está sendo utilizada por empresas de hospitalidade ao redor do mundo para otimizar operações e fornecer atendimento personalizado ao cliente com uma precisão nunca vista antes.
Embora a tecnologia ainda esteja em sua infância, a IA promete revolucionar a economia global e, até, a humanidade. Um relatório recente da consultoria digital Accenture estimou que a IA poderia, até 2035 nos países desenvolvidos, dobrar o crescimento econômico nacional anual e aumentar a produtividade do trabalho em até 40%. Ao mesmo tempo, um grande estudo da PwC (antiga PricewaterhouseCoopers) estima que a IA poderia acrescentar 15,7 trilhões de dólares à economia global até 2030 – com 6,6 trilhões de dólares gerados apenas pelo aumento da produtividade.
Para o mercado da hospitalidade, a IA pode trazer um salto quântico na eficácia operacional ao melhorar a produtividade, a eficiência, a satisfação do cliente – e, em última análise, a lucratividade. Em meio a concorrência crescente e aumento de custos, o potencial de oferecer experiências perfeitas e qualidade consistente em escala é simplesmente grande demais para ser ignorado.
O que é IA?
O conceito de “inteligência artificial” existe desde a década de 1950, quando o “jogo da imitação” de Alan Turing (transformado em filme em 2014) testou a capacidade dos computadores de imitar respostas humanas. Nos anos 1960, o pioneiro da computação, John McCarthy, utilizou a linguagem de programação LISP para desenvolver os primeiros programas de computador autossuficientes. Com a chegada dos microchips nos anos 1970, os atuais supercomputadores em exaescala podem processar bilhões de cálculos por segundo para fornecer um poder de “pensamento” sem precedentes para programas de IA.
Em resumo, a IA pode ser definida como a simulação da inteligência humana por computadores e dispositivos digitais conectados que podem aprender, criar e analisar com um alto grau de autonomia. Algoritmos de aprendizado de máquina (em inglês, machine learning) de IA podem gerar entendimento a partir de amplos conjuntos de dados, como programas de fidelidade e transações em tempo real, que seriam muito demorados para uma análise manual. Existem também ferramentas de aprendizado profundo (em inglês, deep learning) que utilizam redes neurais para reconhecimento de imagens e análise de séries temporais, podendo otimizar fluxos de trabalho e monitorar o fluxo de clientes para prever níveis de pessoal.
Outra aplicação são os algoritmos de processamento de linguagem natural (em inglês, natural language processing), que podem responder a prompts de texto e de voz para exibir sugestões personalizadas de produtos ou guiar os clientes durante o processo do pedido.
A maior rede de cafeterias do mundo, Starbucks, já desenvolveu sua própria plataforma de IA, a Deep Brew, que utiliza a ferramenta e seu aprendizado para coletar insights de equipamentos habilitados para a Internet das Coisas (IoT ou Internet of Things) e transações de aplicativos para oferecer experiências personalizadas aos clientes, otimizar fluxos de trabalho nas lojas e gerenciar inventários. A plataforma também pode agregar dados de receita e desempenho de fluxo de clientes para determinar os melhores
locais para a abertura de novos estabelecimentos.
Enquanto isso, a Coca-Cola, proprietária da Costa Coffee, anunciou recentemente uma parceria estratégica de cinco anos com a Microsoft, no valor de US$ 1,1 bilhão, para acelerar iniciativas de nuvem e IA generativa em seus negócios globais. Ao utilizar o Azure OpenAI Service, modelo de codificação e linguagem de IA da Microsoft, o gigante das bebidas espera “ajudar os funcionários a melhorar as experiências dos clientes, simplificar operações, fomentar a inovação, ganhar uma vantagem competitiva, aumentar a eficiência e descobrir novas oportunidades de crescimento.”
Uma mão amiga para a hospitalidade?
A IA ainda não atingiu o nível de sofisticação necessário para tomar decisões significativas em termos de hospitalidade sem a intervenção humana. No entanto, a automação aprimorada por IA pode fornecer aos operadores um conjunto adicional de mãos para reduzir o tempo gasto em tarefas repetitivas, melhorar a precisão e aumentar a produtividade.
“O café está pronto para ser digitalizado. Se você comparar com outras indústrias de alimentos, o café está ficando para trás”, diz Andreas Idl, CEO e cofundador da Cropster. Criada em 2007, a Cropster desenvolve soluções de software IoT para comerciantes de café verde, torrefadores e operadores visando melhorar a eficiência, a conectividade e a consistência deles.
Para Idl, a IA é o próximo passo na automação para empresas de café que desejam extrair insights profundos de pedidos de clientes e telemetria de equipamentos. “A tecnologia básica existe desde os anos 1970, mas, agora, temos conjuntos de dados grandes o suficiente e computadores potentes o suficiente para executar IA e treiná-la. Você pode treinar a IA todos os dias com novos dados, então, mesmo que seu equipamento mude, ela vai aprender, se adaptar e melhorar com o tempo”, explica.
A torrefação de café é a área em que a Cropster aplica IA para gerar a compreensão detalhada de dados – e até prever o futuro. O Roasting Intelligence faz uso da IA para prever quando vai acontecer o crucial primeiro crack do processo de torra, o que “nos permite saber como a temperatura provavelmente se desenvolverá nos próximos 120 segundos, mostrando isso ao usuário em tempo real”, diz Idl.
Olhar dois minutos no futuro parece, a princípio, uma janela de oportunidades pequena, mas a ferramenta de IA pode gerar benefícios significativos para torrefações de café em larga escala, que precisam atender a especificações rigorosas de produtos. Isso é especialmente importante para grandes clientes de varejo, como supermercados, para os quais até mesmo uma pequena inconsistência pode levar à rejeição de um lote inteiro.
“Os torrefadores vão saber se estão diante de um potencial defeito ou se estão no caminho certo para algo que desejam. A precisão é tão alta que não podemos melhorá-la sem construir um sistema melhor de sensores”, afirma Idl.
A Probat é outra empresa de equipamentos de café que está adotando a IA. “A IA permite decisões melhores e mais rápidas baseadas em dados”, diz Scott Stouffer, diretor de vendas da empresa com sede em Hamburgo.
Lançado na SCA Expo em Chicago, em abril de 2024, o Roastpic da Probat é um aplicativo para smartphone que usa IA para analisar a qualidade do café verde com base em imagens inseridas no sistema. “Os resultados são armazenados na nuvem e podem ser correlacionados a diferentes torrefações. Este produto tem um potencial tremendo para mudar a maneira como observamos e medimos o café ao longo da cadeia de valor, do campo à xícara”, diz Stouffer.
O toque humano
Apesar do inegável potencial de negócios da IA, há sérias preocupações sobre como a tecnologia pode impactar empregos, meios de subsistência e a privacidade das pessoas. Um relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD) estimou que 14% dos empregos em 21 países correm alto risco de automação, incluindo robótica treinada por IA e ferramentas administrativas, com trabalhadores que preparam alimentos e operadores de máquinas dessa indústria sendo os mais afetados.
Outro estudo do McKinsey Global Institute projetou que, até 2030, 800 milhões de empregos poderiam ser substituídos pela automação e recomendou que os governos comecem a requalificar os trabalhadores em ocupações de risco.
Enquanto isso, grandes corporações como Walmart, Nestlé e Starbucks têm se destacado pelo uso de ferramentas de IA como a Aware, uma empresa de IA especializada em análise de comunicação interna de funcionários. A Aware relata ter coletado, até agora, 20 bilhões de interações individuais entre os mais de três milhões de funcionários.
Porém, para a maioria das empresas de café e hospitalidade, a IA é vista como um instrumento para reduzir tarefas repetitivas e demoradas, para que os funcionários possam concentrar-se na prestação de serviços ao cliente e na qualidade da bebida.
“Usamos ferramentas de IA em toda a empresa para aumentar nossa produtividade”, diz Liam Farrow, vice-presidente de digital da Bluestone Lane, grupo de cafés boutique dos EUA, que dá o crédito às ferramentas de IA, como o Chat GPT na produção de textos de marketing e o Gemini Advanced AI para acelerar a modelagem financeira, como adições valiosas à equipe.
“Recentemente, usamos o Chat GPT para validar a modelagem do nosso programa de fidelidade. Isso resultou em melhorias no valor que poderíamos criar no programa, alinhado com nossos objetivos. Essa tarefa poderia ter levado dias, talvez até semanas, mas foi concluída em horas ao lançar todas as variáveis diferentes no modelo”, diz Farrow.
“Vejo a vantagem imediata em ajudar a tornar os recursos de apoio eficazes. A hospitalidade geralmente não permite grandes equipes de apoio, então você precisa ser eficiente. Remover tarefas tediosas e mundanas ou a necessidade de recorrer a recursos externos para coisas como redigir textos significa que você pode se mover mais rápido e ter mais impacto”, acrescenta.
Idl, da Cropster, concorda que a IA funciona melhor na função de apoio para empresas de café e hospitalidade. Ele destaca que, enquanto a IA pode fornecer dados para um torrefador de cafés e até automatizar o controle de tempo e temperatura, o trabalho manual na torrefação, como carregar grãos no equipamento e definir parâmetros, ainda precisa ser feito por gente. Por isso, Idl vê a IA como uma ferramenta para aumentar a qualidade e a consistência enquanto reduz o desperdício, em vez de substituir pessoas da equipe. “A IA não vai carregar seu café. Ela não vai blendar o café – nem tomará a decisão sobre como fazê-lo –, e você ainda vai precisar retirar amostras de controle de qualidade”, considera.
Dito isso, a IA já está influenciando a apreciação sensorial do café. Em abril de 2024, a Associação Brasileira da Indústria de Café (ABIC) revelou uma nova ferramenta de IA para uso na prova da bebida. Os avaliadores inserem as notas de degustação de café em um aplicativo, que usa então um algoritmo para gerar “estilos” de bebidas. O objetivo é fazer com que grupos de cafés com características semelhantes ou atraentes sejam mais fáceis de identificar pelos consumidores, aumentando, assim, o apelo comercial do grão.
“Nosso foco é o consumidor, para que possamos comunicar o que ele precisa saber no momento da compra, de modo que ele escolha seu café favorito entre os diferentes estilos disponíveis”, diz Camila Arcanjo, mestre em análise sensorial e consultora de qualidade da ABIC.
“No futuro, conseguiremos analisar o café verde na origem e sugerir como ele pode ser torrado em amostras para alcançar o perfil de sabor que o mestre de torra deseja. Vamos avaliar digitalmente o produto final e sugerir correções de torra e de blend para obter exatamente o que o mestre de torra deseja. Finalmente, iremos pré-programar as máquinas para torrar quatro toneladas por hora de um ‘African Ice Coffee Blend’ para ser perfeito em qualquer pedido feito. Talvez até conectemos IA às máquinas de espresso para extrair shots perfeitos”, diz Scott Stouffer, da Probat.
Esse futuro já está mais próximo da realidade para a Kaffa Roastery, sediada na Finlândia, que em abril de 2024 lançou seu blend de café ‘AI-conic’. Segundo o fundador da Kaffa, Svante Hampf, um modelo de IA recebeu descrições dos cafés da marca e foi instruído a criar um blend “novo e empolgante”. O modelo, “de maneira um tanto estranha”, escolheu misturar quatro origens – Brasil, Colômbia, Etiópia e Guatemala – em vez das duas ou três habituais. No entanto, Hampf diz que o projeto marca “o primeiro passo para ver como a IA poderia nos ajudar no futuro.”
O uso da IA em cafeterias
A IA pode ser uma ferramenta poderosa para ajudar a aumentar a produtividade da equipe – mas será que máquinas autônomas poderiam substituí-la algum dia? Keith Tan, fundador e CEO da Crown Digital, com sede em Singapura, aposta que o futuro das cafeterias reside em um serviço totalmente autônomo e aprimorado por IA.
Tan começou a desenvolver seu conceito de café totalmente automatizado, o Ella, depois de enfrentar uma grave escassez de funcionários em sua primeira empreitada em café. A barista robótica movida a IA pode preparar 200 xícaras de café por hora, utilizando mais de 300 receitas diferentes, e atualmente opera em locais como metrôs e aeroportos em Singapura.
“As cafeterias são muito manuais e requerem mão-de-obra humana, mas pode levar seis semanas para treinar uma equipe, que pode se desfazer depois de oito semanas. Em algum momento, você vai precisar automatizar os processos, seja por meio de robótica ou de máquinas superautomáticas, e a IA vai gerenciar os dados e trazer insights de consumo inigualáveis em massa”, diz Tan.
A Crown Digital optou, desde o início, por máquinas superautomáticas Eversys e construiu grandes conjuntos de dados para tempos de extração, granulometria e temperaturas de entrada e saída em todos os locais. Agora, a IA usa esses dados para gerar insights em tempo real para ajudar na gestão de estoque orientada pela demanda, prompts de pedidos sensíveis ao tempo, sugestões personalizadas, manutenção preditiva e reabastecimento.
Tan usa a analogia de ser capaz de aproveitar o conhecimento do barista local, que sabe as preferências de pedidos de seus clientes, e escalar esse conhecimento por cidades, regiões e, até, à nível global.
“O café é uma bebida muito pessoal – tudo se resume à consistência e à familiaridade. É muito difícil alcançar isso em múltiplos espaços, mas com IA e automação, a personalização em massa é possível”, afirma.
Quão longe a IA pode ir?
Máquinas aprimoradas com IA poderiam, um dia, oferecer experiências de hospitalidade totalmente autônomas. A questão, no entanto, é se isso é desejável em uma indústria como a hospitalidade, onde as conexões humanas são fundamentais.
Para Liam Farrow, da Bluestone Lane, a IA tem limites claros. “Ainda é muito cedo para que a hospitalidade busque a IA e a automação, mas os operadores devem analisar seus negócios e ver onde há oportunidades para gerar eficiência. Vendas adicionais inteligentes com base na análise dinâmica das cestas para fornecer uma experiência mais personalizada é o máximo que podemos fazer agora. O elemento humano do nosso negócio é o coração da Bluestone Lane, e isso tem que permanecer verdadeiro”, diz ele.
Muitos líderes empresariais dizem que conhecimento é poder. Em um mundo onde a internet tornou o acesso à informação onipresente, usar IA para gerar ideias significativas a partir de conjuntos de dados é o próximo passo da computação, e pode ser um grande salto para o negócio do café.
Por trás do hype e das manchetes, a Inteligência Artificial já permite que empresas do ramo alcancem mais eficiência operacional, precisão e personalização em larga escala. “Não sei para onde a IA, a torrefação de café e a Probat estão indo. Mas sei que aprenderemos coisas novas todos os meses e que novas oportunidades vão surgir. O resultado será dados melhores para decisões mais rápidas”, acredita Scott Stouffer, da Probat.
Essa lógica, certamente, deve soar verdadeira para as milhares de empresas de hospitalidade ao redor do mundo que enfrentam aumentos de despesas gerais, custos maiores de produtos e escassez de pessoas.
Mas, por enquanto, a Inteligência Artificial Geral (AGI) – máquinas capazes de aprender independentemente da intervenção humana – permanece firmemente como ficção científica e, provavelmente, não irá se tornar realidade por várias décadas.
A Inteligência Artificial, porém, está avançando rapidamente. No momento em que este artigo foi escrito, o Chat GPT estava amplamente disponível há cerca de 18 meses e já parece uma parte irrevogável da vida cotidiana.
Consumidores mais jovens e nativos digitais já exigem experiências de hospitalidade e varejo perfeitas que não seriam possíveis há uma década – e a IA pode fornecer as soluções para atender aos clientes do futuro.
Com gigantes da tecnologia como Microsoft, Apple e Google investindo bilhões em pesquisas de IA – e Elon Musk prevendo que ela será “mais inteligente do que qualquer humano até o final de 2025” – é, decerto, apenas uma questão de tempo até que a tecnologia se torne tão onipresente quanto uma conexão de internet.
Pode estar no início, mas a IA já traz benefícios tangíveis para empresas de café e hospitalidade, gerando entendimentos operacionais que permitem decisões mais rápidas, precisas e de maior valor. O potencial da inteligência artificial na hospitalidade é enorme, desde que a indústria mantenha em mente seu objetivo mais importante – forjar conexões humanas profundas.
Texto originalmente publicado na edição #85 (setembro, outubro e novembro de 2024) da Revista Espresso. Para saber como assinar, clique aqui.
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