Coluna Barística por Mariana Proença

Experiências com café e sobre a profissão barista

Detalhes tão imensos

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A cidade de Santos é imensa para mim. Imensa de boas lembranças desde a infância. Foi lá que passei muitos dos meus finais de semana, desde que me entendo por gente, foi lá que foram construídas as raízes de minha família dos dois lados, de mãe e pai. Porém é do lado espanhol que ficaram as histórias mais pitorescas e os causos mais vivos em nossas memórias.

Do lado dos Quintas e também dos Passos já começa pela coragem de chegar ao Brasil, vindo da região da Galícia, com apenas pouco menos de 16 anos de idade. Meu bisavô, Daniel, largou o pouco que tinha em Verin, e, em Santos, escolheu morar. Como ajudante de confeiteiro, limpando forminha de doce, ele depois de muitos anos empreendeu sua primeira padaria na cidade. Minha bisavó, Benita, o conheceu na comunidade espanhola e, juntos, formaram uma família de quatro filhas: Rosa, Serafina, Lourdes e Quininha. Todas tinham que trabalhar na padaria, ajudar no caixa, a cortar frios e a pegar os pães. Só não podiam ficar no balcão do café, onde não era lugar de moças, pensava meu bisavô.

Durante décadas minha família ficou envolvida com a padaria, que teve seus momentos de glória e reconhecimento, no bairro do Boqueirão. A Padaria Independência era referência e é lembrada até hoje na cidade. Então nada mais natural do que nas conversas depois do almoço, na hora do café, a minha avó Fina lembrar das histórias. Sempre começava com a frase “na época da padaria…”. E assim aprendíamos muitos detalhes daquele tempo a partir dos anos de 1940, da rotina de trabalho, dos milhares de clientes que ali passaram, das manias de cada um, do jeito dos meus bisavós, do caixotinho que ela subia para atender a clientela, das cantadas que recebia no caixa e das médias servidas (em Santos pão é média, viu?). Também teve a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), que não tinha farinha, o que obrigou meu bisavô a fazer pão com macarrão, que só se podia abrir uma porta da padaria, que havia racionamento de pão e que à noite não podia acender a luz, para que os inimigos não avistassem a cidade do mar.

Muitas passagens lindas, engraçadas e muito vivas na memória da minha avó Fina. Mas nem só de trabalho na padaria são as recordações. Tinha baile de Carnaval, as pequenas peripécias dentro do Bonde na ida para a escola, algumas viagens ao interior de São Paulo, onde nasceu meu avô Agostinho, com que ela casou em 1949, enfim, muita coisa boa.

Infelizmente as narrativas da minha querida avó terminaram agora em janeiro, mais precisamente no dia 21. A saudade é enorme. Mas a maior delas é daqueles encontros de domingo, em volta da mesa da sala, regados a café. Ficou mais especial, pois, nos últimos anos, fui promovida a fazer os preparos.

Ela dizia: “vai ter café?”. Sempre tinha, claro. Mas ela dava o “sinal”. E lá ia eu pegar o tradicional coador, filtro de papel e a garrafa térmica na cozinha. Tudo sempre muito organizado, óbvio. O pote para armazenar o café e o filtro, o medidor e sempre o mesmo pó. A bandeja tinha tudo para o deleite dos parentes-formigas: adoçante, açúcar e, um detalhe, que não podia faltar, as rosquinhas da Geni. Geni é uma casa de massas super tradicional em Santos.

Eles fazem um biscoito de araruta incrível, além de outras delícias. Acho que minha avó era a maior compradora das rosquinhas. Não podia faltar. Daí o café, as rosquinhas e as boas companhias sempre foram um prato cheio para as histórias bem contadas. “Sabe o que eu lembrei?” E aí vinham as anedotas da minha tia Lourdes, que está firme e forte, as risadas altas e mais café. Ora ele estava forte para alguns, fracos para outros, mas sempre bom. Às vezes iam duas garrafas. E chegava quase na hora de comer novamente e comprar as médias na padaria. A orientação era para pegar as bem fresquinhas. Ela gostava das escurinhas e analisava a fornada que trazíamos. Os pequenos prazeres da vida que não adianta nem a gente tentar esquecer. Eram só detalhes, mas que hoje se tornaram imensos. Obrigada, vó.

*Mariana Proença é jornalista. Em 2006 assumiu a direção de conteúdo da Revista Espresso e, meses depois, o café já virou uma paixão que dura até hoje. Nesta coluna ela aborda diversos temas e experiências sobre a profissão barista. Fale com a colunista: mariana.proenca@cafeeditora.com.br

ILUSTRAÇÃO Eduardo Nunes

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