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Cafés-botequins: um retrato perdido da cultura brasileira
O consumo de café faz parte do dia a dia dos brasileiros. Há muitas e muitas décadas, o país ocupa a segunda posição como maior consumidor, atrás apenas dos Estados Unidos. Seja torrado e moído, em grãos, em cápsulas ou na versão solúvel, praticamente todas as casas brasileiras contam com o produto para receber visitas – uma marca inegável da hospitalidade brasileira.
O Brasil também tem o hábito de beber café nas ruas. Tanto antes do trabalho, nos balcões das padarias e botequins, quanto como um convite para uma conversa em cafeterias (cada vez mais) especializadas. Mas será que sempre foi assim?
O café não é uma planta nativa do Brasil. Foi trazida pelos colonizadores portugueses ainda na primeira metade do século XVIII. Foi nesse período que o consumo em Portugal se intensificou.
Na capital portuguesa, bebia-se café em botequins. Esses locais – que se assemelhavam às tavernas francesas e às bodegas italianas – proliferaram-se em Lisboa, paulatinamente, na virada do século XVIII para o XIX.
No Brasil Colonial o fenômeno não foi diferente. Os primeiros lugares de consumo público do café foram os botequins portugueses no Rio de Janeiro, capital do Império português. Além do Rio, Recife e Salvador, principais cidades portuárias do Brasil colonial e cujo comércio com Lisboa era exclusivo, contavam com seus botequins onde se bebia café, assim como vinho e cachaça.
Essas cidades eram o centro da vida urbana cotidiana no país, e os botequins, o centro da sua cotidianidade. Ali se buscavam objetos perdidos ou para compra e venda, vendiam-se serviços e pessoas se encontravam. Obviamente, essa vida pública era bem diferente do que entendemos hoje: enquanto as ruas eram dominadas pelos escravizados, os senhores preferiam o recolhimento da vida privada. Por isso, o trânsito humano nesses locais era marcado por pessoas escravizadas, libertas, marinheiros e viajantes estrangeiros.
Após a Independência, a ascensão da cafeicultura fez com que o grão se tornasse, em poucas décadas, o principal produto de exportação do recém-criado Império brasileiro. Em menos de trinta anos, o Brasil passou de um exportador inexpressivo para o maior produtor mundial da rubiácea. Para se ter uma ideia, em 1830 o café brasileiro não figurava nas principais bolsas de valores dos mercados consumidores europeus nem dos Estados Unidos, recém-independente; mas na década de 1860, a produção nacional respondia pela metade da produção mundial de café.
Isso alavancou o consumo interno nacional. Ao longo do século XIX, o Rio de Janeiro, capital do Império brasileiro, tornou-se conhecido por seus locais públicos de consumo de café: seus botequins, agora chamados cafés ou confeitarias, pouco a pouco se afrancesaram – era, então, a França o modelo de civilidade almejado pelos brasileiros. Bancos e mesas longos de madeira foram substituídos por cadeiras de palha, bem ao estilo austríaco thonet, que se acomodavam em mesas com tampos de mármore e pés de ferro, e grandes espelhos passaram a fazer parte marcante da decoração desses estabelecimentos.
O público também se diversificou. Lugares antes ocupados, em grande parte, por marinheiros e escravizados, passaram a ser frequentados pelas classes médias urbanas – jornalistas, advogados, médicos e servidores públicos –, além de pessoas da elite ligadas ao governo imperial. Rodas de conversa, formadas pelos intelectuais da época, ocuparam frequentemente esses espaços, que ganharam a alcunha de cafés literários.
Durante a explosão desses novos estabelecimentos públicos, o Rio de Janeiro recebia uma importante leva de imigrantes portugueses e franceses, que fixaram residência na capital imperial. Entre as décadas de 1840 e 1880, era comum frequentar cafés com nomes pomposos, como Café de Paris, Café Francês, Café France et Brésil, Café Français, Café de Bordéos, Café Bordelaise, Café de Lyon, Café Gaulois, Café Lusitano, Café Cruz de Malta, e por aí vai.
Nomes de estabelecimentos como esses eram até mais comuns do que aqueles que privilegiavam elementos nacionais, como Café do Império ou Café Fluminense, que, por sua vez, perdiam-se em meio a referências portuguesas e francesas. Ocasionalmente, também se encontravam nomes que faziam menções à Moka ou Java – já que o Iêmen e as ilhas holandesas na Indonésia eram produtores bem mais famosos pela qualidade que entregavam do que os produzidos no Brasil para os transeuntes recém-chegados.
O uso desses espaços também replicavam o que acontecia nos cafés das principais capitais europeias. As pequenas mesinhas de mármore eram ocupadas para a leitura de periódicos nas mais diversas línguas, além de servirem de apoio para jogos como gamão, damas, xadrez e bilhar. Pequenas operetas de companhias teatrais portuguesas e francesas completavam a atmosfera cultural desses estabelecimentos comerciais.
Isso porque tornaram-se comuns os cafés-cantantes ou cafés-concerto (uma tradução literal dos estabelecimentos franceses conhecidos como café concert), onde se apresentavam operetas cômicas em meio ao apertado espaço entre as mesas. Os can-cans tornaram-se parte importante dessa atmosfera que mimetizava os cafés cabarets parisienses na capital brasileira. Can-can é uma referência direta à música
do clímax da ópera Orphée aux Enfers, do compositor alemão e residente na França Jacques Offenbach (1819-1880), paladino da opereta e um precursor do teatro musical moderno entre 1850 e 1870.
Esses ambientes de consumo público de café consolidaram-se nos principais centros urbanos brasileiros, que tomavam como modelo os cafés fluminenses. No Rio de Janeiro, os cafés-botequins foram a norma até meados do século XX. Passada a febre dos cabarets franceses, tais locais foram ocupados por artistas plásticos e músicos, transformando-se em alguns dos cafés-botequins mais importantes, redutos do samba carioca. O mais famoso deles, o Café Nice, foi frequentado por compositores como Ary Barroso, Noel Rosa, Lamartine Babo e Aracy de Almeida, entre tantos outros.
Entre os anos 1940 e 1950, sumiram quase completamente da paisagem urbana, quando a agitação e a aceleração da vida urbana se tornaram incompatíveis com este modelo de estabelecimento. Os cafés-sentado, como se tornaram conhecidos, foram substituídos pelos cafés-em-pé, longos balcões onde se tomava café apressadamente, às goladas.
Os poucos espaços que sobreviveram transformaram-se em restaurantes, lanchonetes e confeitarias requintadas, principalmente no Rio de Janeiro, onde ainda é possível vislumbrar resquícios dessa época, especialmente nos bares mais antigos. Hoje, quem visitar a cidade e sentar-se numa cadeira de madeira ou for servido em uma bela mesa de mármore, pode colocar na conta da sua memória os antigos botequins-café.
Bruno Bortoloto do Carmo é doutor em História Social pela PUC-SP, com passagem pela École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris. Pesquisador do Museu do Café de Santos por 13 anos, atualmente trabalha no Museu da Imigração em São Paulo.
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