Cafezal

Cercada de amor e café

A história da Fazenda Santa Alina, que tirou as cercas das casas, ampliou as relações entre os colaboradores e, na gestão de uma mulher contemporânea, encontra seu caminho para a qualidade no café aliada ao melhor convívio

“Quase não falamos de café!” Com essa frase, Tuca Dias despediu-se da nossa equipe depois da visita de dois dias à Fazenda Santa Alina, na interiorana São Sebastião da Grama (SP). A brincadeira da proprietária nos levou à reflexão. O que é falar de café? Chegar a Santa Alina é descobrir-se em uma área centenária, rodeada de pés do fruto, repleta de terreiros, maquinários para a seca, o processamento, e rememorar aqueles livros de história que mostravam a casa-sede, o chão de pedra, a igrejinha, a colônia com casas semelhantes para a moradia dos funcionários. Mas é também mergulhar num ambiente inovador, em que tudo é decorado para fazer você pensar no contemporâneo, com cores vivas, peças de arte, livros, influências das viagens que Tuca realiza pelo Brasil e muita conversa num tempo que é bem diferente do urbano. É um salto para o futuro. Um aprendizado de como a sucessão pode, sim, dar certo.

Arquitetura com diálogo

Em 2010, Lucia Maria da Silva Dias, a Tuca, conta que seu pai, Joaquim, passou a fazenda para ela. Ele, a terceira geração, herdou dos pais a missão de cuidar do café, que vinha dos avós, nos distantes anos de 1900. Ali, a região do Vale da Grama, sempre teve “vocação pra café”, mas era preciso muita mão de obra para cuidar de toda a estrutura. No entorno, outras famosas fazendas unem a fama do local: Recreio, Cachoeira e Irarema são algumas delas. Pela distância da cidade, os locais desenvolveram suas colônias, escolas, postos de saúde, igrejas, comunidades inteiras com diversas famílias e até time de futebol.

Estar ali é um encontro com a história do café no Estado de São Paulo e na divisa com Minas Gerais. Para chegar às fazendas, seguem-se as placas para a turística Poços de Caldas. Entre altos e baixos das montanhas avistam-se os cafezais e também as oliveiras.

Uma das salas da casa-sede, que acolhe os visitantes com móveis de época

As variedades bourbon amarelo e vermelho eram as mais plantadas nos cafezais. A altura dos pés, que podem chegar a mais de 2 metros, requer escadas para a colheita. Toda essa estrutura podia ser vista nas propriedades da região. A colheita manual, por conta da área montanhosa, levou principalmente italianos para trabalhar nos locais, entre 1900 e 1930.

Quando Tuca assumiu a Santa Alina, eram oitenta casas e mais de 130 funcionários. O desafio maior era engajar os colaboradores na nova forma de administrar. Formada em Arquitetura, ela viu a oportunidade de mudar o espaço através das moradias. Na colônia, onde moram os funcionários, cada um tinha seu espaço delimitado com cercas, criação de porcos, hortas e portões fechados.

Quem conta é Ana Paula Fonseca Lago, que está ali há quinze anos: “No início a gente estranhou. A Tuca fez muitas transformações, tirou as cercas, plantou grama, fez os estacionamentos para os carros”. A auxiliar administrativa refere-se às mudanças na fazenda: “Joguei no ‘lixo’ a minha timidez e aprendi muito”, confessa Ana Paula depois que participou de cursos na fazenda.

A cafeicultora Tuca Dias com os inseparáveis Buda e Flor

Tudo ali tem um ar de novo, apesar de serem casas históricas e uma propriedade de mais de cem anos. As casas com grama chamam a atenção de quem chega. Sem cercas, elas permitem que a comunidade se relacione e não se limite ao espaço das casas. Com a retirada das cercas o que não era cuidado ficou exposto. A ação desencadeou outras tantas para a melhoria do espaço: “Eles começaram a se apropriar do belo. Acredito que a arquitetura cura relações humanas”, explica Tuca.

Junto com as mudanças estruturais, vieram cursos de autoconhecimento, momentos coletivos e alguns funcionários foram se desligando da fazenda. Tuca conta que, das oitenta casas, ficaram trinta. Todas elas com garagem para o funcionário colocar o carro – segundo ela um ponto muito importante para eles – e uma mudança interna: a cozinha mais aberta para a sala: “Isso foi importante. As mulheres cozinhavam sozinhas e essa alteração fez com os esposos e as crianças pudessem interagir nos espaços e até ajudar nos afazeres da casa”.

Dentro da colônia, a capela guarda histórias e poesias

Uma das casas foi a de Laura Castilho Aguiar. Ela e o marido, Fernando, vieram de São Paulo. Nascidos na cidade grande decidiram mudar de vida e ir “morar na roça”. Laurinha, como é chamada, é mãe de duas meninas e admite que “quando se é da cidade não sabemos como nascem as frutas, verduras…”. O valor ao que é do campo fez com que a família se mudasse há seis anos para a colônia da Santa Alina. Ela conta que foi pegando gosto pela plantação e fez uma horta caseira. O marido trabalha na fazenda e ela faz comida para fora e auxilia no serviço de limpeza da fazenda. Enquanto conversávamos, a filha mais velha chegava da escola procurando pelos animais da casa. “Ela quer ser veterinária”, revela a mãe. No fundo da casa, balanços para brincar e até uma área para guardar os brinquedos das crianças lembra uma casinha de bonecas com a frase: “Sonho que se sonha só é só um sonho. Sonho que se sonha junto é realidade”. Um antigo aspirador dá vida a um vaso, cataventos feitos com CDs antigos colorem a frente da casa e Laurinha afirma: “Não vamos levar nada dessa vida”, fazendo referência não só à simplicidade com que vivem, mas também à qualidade de vida ali na tranquilidade da colônia.

Laurinha veio da capital de São Paulo para a roça com a família

Tem risco, mas tem prêmio

O administrador da fazenda, Edivaldo dos Santos, foi chamado para nos levar a conhecer a fazenda. Desde 2006 morando ali, ele está há três na função de gerência da propriedade. Tímido, ele conta que começou no “eito”, nome que é dado à área de limpeza ou roçado de uma plantação, utilizando enxadas. Passou por todas as etapas de processamento do café e hoje administra até noventa pessoas durante a colheita. Em 20 de maio, dá-se início à “panha do café” na propriedade: “Hoje estamos num estágio que não tem mais chuva que nos pare, temos prazo”. Ele se refere ao desafio atual de mão de obra na época da colheita, em que contratam temporários para pegar o café. Os talhões, divididos em áreas extensas, têm ganhado novos nomes e novos rumos.

Com o planejamento bem determinado, a Santa Alina vem realizando a renovação dos cafezais e o plantio em novas áreas que permitam a mecanização da colheita. Com o intuito de fechar as contas no final da safra, Edivaldo explica a dificuldade em conseguir pessoas para trabalhar na colheita seletiva e manual. A ação da fazenda vem servindo de exemplo na região para outras propriedades.

Edivaldo explica sobre as variedades da fazenda

Em 2013 a propriedade começou a mudança e investiu em 40 hectares de café. “Perdemos 80% por causa da seca”, conta Edivaldo. “Depois replantamos e perdemos 60% em 2014”. Ele tem a missão de conseguir ampliar as áreas mecanizadas nos próximos cinco anos. Um talhão que tem orgulho é da variedade bourbonzinho – arábica que tem o porte mais baixo e foi plantado em 2016 já com o intuito de ser colhido por máquina, numa área mais plana, de 1.080 metros. O plantio de 2,6 hectares foi com mudas do produtor Afrânio Paiva, da Fazenda Recanto, em Machado (MG). Esse intercâmbio das variedades tem permitido a mudança na fazenda. Além do bourbon, tradicional na região, a propriedade tem mundo novo e catuaí. Segundo Tuca, hoje Edivaldo e a equipe são “caçadores de área para mecanização”. O irmão, Clodoaldo dos Santos, abria uma nova área com trator em um ponto mais alto da fazenda. Os eucaliptos, plantados anteriormente, darão lugar ao café. A proprietária se arrepende de ter plantado as árvores na época. Diziam que daria retorno. Daqui a sete anos eles não querem mais ter eucaliptos na fazenda. Hoje já são 32 hectares na Santa Alina que terão colheita por máquinas. A propriedade tem 260 hectares de café, do total de 886. Quem ensinou muito sobre café e agora diz que está aprendendo com a mecanização é Benedito Trevisan, o Dito. Ele nasceu na Fazenda Cachoeira, próximo da Santa Alina, e conta que administrou por muitos anos a fazenda para o proprietário Gabriel Carvalho Dias. Na Rainha, na época de Luiz Fernando de Carvalho Dias, ganharam, em 1999, o 9º Prêmio Brasil de Qualidade do Café para “Espresso” da illy.

O foco principal da região é o café de qualidade. A Santa Alina é fornecedora do Suplicy Cafés Especiais há quase dez anos e Tuca fala com orgulho da parceria com a cafeteria. O relacionamento lhe abriu muitas portas para esse mercado, onde cultiva as amizades. Em dezembro de 2018 conquistou o primeiro lugar no 17º Concurso Estadual de Qualidade do Café de São Paulo e recebeu no Palácio dos Bandeirantes a premiação da Câmara Setorial do Café. A alegria de Tuca era reforçar que o prêmio estava sendo dado a várias mulheres cafeicultoras naquele dia. O desafio, segundo ela, é poder fechar as contas na fazenda com os gastos altos que tem a produção de café: “A agricultura é o bicho de mais risco que tem”, reforça.

Os segredos de pertencer

Com tanta história, a Santa Alina resgata suas lembranças e as mantém vivas ao abrir as portas para novos visitantes. A anfitriã da casa é a cozinheira Lucia Migotto, que faz com primazia as receitas de fazenda e outras criações que retira de livros e às quais agrega ingredientes locais e, é claro, sua experiência de mais de vinte anos na função.

Fomos recebidos com um bolinho de chuva logo na chegada. O café da fazenda, preparado por Larissa, harmonizou perfeitamente com o doce que, segundo Lucia, “é muito fácil de fazer”. Essa simplicidade é dela, porque, como todas as receitas bem executadas, tem seus segredos.

Lucia ensina a fazer os bolinhos de chuva na cozinha da fazenda

No almoço, comida típica mineira, mas com o toque dessa contemporaneidade do lugar: torta de espinafre, lasanha de shiitake, testes com ingredientes sem lactose e cardápios veganos. Tudo isso para atender a alguma demanda especial dos hóspedes. Ali já receberam casamentos, celebrações de bodas e aniversários de muitos anos de vida. O foco hoje é receber pequenos grupos, vocação da equipe que ensina que não é preciso ter pressa, que a conversa é a melhor aliada, que o celular só se for para tirar fotos das lindas paisagens e pratos que chegam à mesa.

A cada refeição uma explicação detalhada de Lucia vem acompanhada daquela mineirice do servir, o cuidado, o modo de fazer.

Na casa, a paz. Cada quarto tem uma montagem diferente, com camas de casal e solteiro e uma decoração especial. Tudo tem seu lugar. No fim de tarde, no espelho-d’água, Buda e Flor, os cachorros de Tuca, saltam para se refrescar nas águas. O pôr do sol atrás dos cafezais lembra que ali é uma fazenda centenária do fruto. Não falamos de café, mas, sim, falamos de pessoas, das mãos que tocam os frutos maduros, das rodas de aprendizado, das relações humanas. E nas conversas Lucia fala tão bonito das suas vivências. Entre elas a de que “a gente encontra sempre um novo caminho”. Ela aprendeu faz um ano a dirigir e na caminhonete da fazenda levou a gente para reunir os funcionários que ficaram na fazenda. Hoje são dez fixos e alguns outros colaboradores: “Todos eles hoje têm um sentimento de pertencimento muito forte”, finaliza Tuca.

Na Santa Alina falamos de pessoas e de toda a equipe que faz a atual história do café acontecer por ali

(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso referente aos meses março, abril e maio de 2019 – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).

TEXTO Mariana Proença • FOTO Vitor Barão

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