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Carmem Lucia Chaves de Brito, a “Ucha”, é reeleita presidente da BSCA
Carmem Lucia Chaves de Brito, conhecida como Ucha, foi reeleita nesta quarta (18) presidente da Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA). Seu novo mandato – o quarto (Ucha dirigiu a entidade em 2017, 2019 e 2024) – estende-se até dezembro de 2025.
A gestão da presidente da BSCA, eleita este ano uma das 100 personalidades mais influentes do agronegócio pelo Grupo Mídia, segue focada em promover os cafés especiais brasileiros como os melhores e mais sustentáveis do mundo, destacando a governança socioambiental e os critérios ESG como pilares estratégicos. Ucha também pretende ampliar a presença do Brasil em mercados emergentes, como China e Índia, fortalecendo as relações internacionais do setor.
No mercado interno, a presidente reforça a importância de aproximar baristas, provadores e consumidores, além de atrair mais jovens e mulheres para o segmento, promovendo inovação e diversidade. “Manteremos a trajetória de inovação, atraindo mais jovens e mulheres ao segmento de especiais e junto à nossa diretoria, reforçando o dever com a pluralidade e o respeito às pessoas, pensando, dessa forma, na preparação de novos líderes e, por que não, no processo de sucessão da BSCA”, diz ela.
Além da reeleição de Ucha, os associados da BSCA também aprovaram a composição dos Conselhos Diretor e Fiscal da entidade para o biênio 2025/26.
Em junho deste ano, Ucha deu uma entrevista exclusiva à Espresso, para a edição impressa #84. Na conversa, ela comentou sobre os desafios de sua gestão na BSCA, a trajetória ascendente dos cafés especiais, o cenário do Brasil cafeicultor e seus planos para o futuro do mercado. Leia na íntegra:
Espresso: Você comentou que tem ampla formação acadêmica. Como isso contribuiu para sua trajetória até aqui?
Ucha: Como muitos do Sul de Minas, nasci debaixo de um pé de café. Essa frutinha, de certa forma, ajuda a estruturar a própria vida da gente. Fui para o Rio de Janeiro muito cedo para estudar e passei metade da vida na cidade, onde me estruturei profissionalmente. Costumo dizer que naveguei nos mares do Rio, mas era aqui o meu porto, o lugar para construir raízes, ganhar fôlego.
Minha primeira formação foi em educação física, trabalhei com treinamento de atletas. Sempre gostei muito de estudar e fiz pós-graduações, mestrados, doutorados… Comecei, até, a buscar outras áreas para me tornar uma profissional melhor. Acabei me formando em psicologia, fiz física quântica, áreas que me ajudaram a ter um olhar cada vez mais amplo. Trabalhei no meio acadêmico por muitos anos até voltar para a fazenda. Essa experiência me ajudou a trabalhar pelo viés da qualidade, porque o mundo da ciência, da pesquisa, nos coloca na posição de observador, o que me ajudou a mergulhar na essência das coisas.
Há 17 anos voltei e assumi a administração da fazenda com meus irmãos depois que meu pai faleceu. E aí, mergulho numa história completamente diferente. Nossa escolha aqui é trabalhar com agregação de valor, com diferenciação. Tentamos escrever uma nova história, construir uma nova cultura para as pessoas da fazenda. Café não é só um produto, é investir nas pessoas, tentando deixar marcas emocionais positivas na vida delas. E, também, deixar marcas nesse pedacinho de terra que está nas nossas mãos. Conseguimos resultados bacanas para a empresa assentados nesses três pilares. A gente volta de um centro grande com um olhar completamente diferente em relação à importância disso tudo.
Atualmente, como se estrutura a BSCA e como ela se relaciona com os profissionais da área?
São quase 400 membros. A associação começou com produtores de café, e durante anos, ela movimentou-se em prol dos cafeicultores. Hoje em dia, temos toda a cadeia conosco. Somos hoje uma associação que dialoga com todos os segmentos, e uma das ações que buscamos é nos relacionarmos mais com outras instituições. Cada vez mais estabelecemos e buscamos caminhos e meios para estarmos próximos dos profissionais do café. Prova disso são os concursos que apoiamos, porque entendemos a importância de ter conosco esses profissionais. Eles são os grandes embaixadores do grão, que têm diálogo direto com a outra ponta, a do consumo. É o mundo do barismo, são os provadores que realmente entregam o que produzimos aos consumidores. Queremos trabalhar os especiais brasileiros como uma grande engrenagem, conjunta e solidária.
Você já teve dois mandatos seguidos e, em 2024, volta ao comando da BSCA. Quais são seus objetivos como presidente e quais os desafios para o setor?
A BSCA é uma associação em constante transformação. O Brasil, como o maior produtor de cafés do mundo, também vem se transformando no contexto dos especiais. Há 17 anos, falávamos de 200 mil sacas de café especial no Brasil. Hoje, são oito milhões de sacas produzidas. Conseguimos muita coisa num curto período, e não paramos. Crescemos cada vez mais, e cada vez mais o setor produtivo entende a importância da agregação de valor no café.
Há 17 anos, estávamos no início de um forte movimento das mulheres, que queriam assumir posições na cafeicultura brasileira. Hoje, elas estão nela. Estamos criando uma espécie de agregado exclusivamente voltado às mulheres no projeto setorial da BSCA, ao lado de entidades como a Apex, para aumentar sua visibilidade na cafeicultura brasileira, para que cheguem mais perto dos compradores desses cafés. Também vejo a importância de buscarmos tecnologia de inovação, de entregar cada vez mais ao mundo não só quantidade, mas consistência na qualidade do café.
Estamos mais empenhados na valorização das múltiplas microrregiões produtoras do Brasil. Na minha última gestão, isso ainda estava germinando. Queremos também trazer os canéforas para a associação. Já temos associados trabalhando robustas e conilons especiais, e regiões já estabelecidas. Esse processo de transformação, de ampliação de diálogo com o mundo, faz toda a diferença no dia a dia das pessoas na fazenda, para que eles acompanhem os movimentos globais. E a BSCA existe para entregar ao mundo o que ele deseja.
O Brasil como um país produtor de qualidade, sustentabilidade e terroirs diversos já é uma realidade. Você concorda?
Se você olhar para trás, essa página já virou. O Brasil já se reposicionou, já está em outro lugar e isso é claro para nós, embora a gente ainda tenha que evoluir muito. Nos mercados já consolidados, temos que continuar o trabalho que já está sendo feito e entender para onde estão indo as tendências.
A Europa é nosso grande mercado, principalmente de café de padrão de qualidade elevado. Os Estados Unidos também são um país com quem sempre teremos que caminhar, na minha opinião, pois são muito inovadores. Esse mundo dos especiais é muito dinâmico. As pessoas sempre querem saber de inovações e se surpreender. O café que a gente produz tem que ser feito a partir do entendimento do setor de consumo, porque é para esse setor que trabalhamos.
E como você enxerga esses novos mercados consumidores?
Temos um novo mercado imenso chegando, como China, Índia e mundo árabe. Já temos que olhar para a China de um modo diferenciado, porque é um mercado completamente diferente do restante do mundo. A China está interessada em cafés especiais mais ou menos como outros países fizeram no início do movimento dos grãos de qualidade. Eles pensam: “Peraí, café do Brasil com esse preço, não. É o preço do café da Etiópia, da Colômbia…” Estamos assistindo acontecer tudo de novo. Não é simples, temos que ser estratégicos para entender esse jeito deles de caminhar. Discutimos na BSCA como devemos nos comportar com relação à China, e como realmente mostrar o valor dos cafés brasileiros. Fizemos ações em 2023, e vamos continuar a fazê-las, sistematicamente. A China é um mercado em potencial para o mundo todo, imagine para o Brasil. Ou seja, temos que consultar a página virada que comentei antes para saber as estratégias para esses novos mercados.
Recentemente, uma pesquisa mostrou que o consumo atual nos Estados Unidos é o maior dos últimos 20 anos. Aumentamos nossas exportações de cafés especiais para o país?
O que a gente está discutindo é uma produção de especiais que gira em torno de oito milhões de sacas. Isso é muito expressivo, porque há pouco tempo falávamos em produzir 200, depois 600 mil sacas, depois pulamos para 1 milhão, 1,2 milhão de sacas.. De 2023 para cá, são oito milhões. É praticamente toda a produção da Colômbia. E não vejo esse movimento parar. Mas a questão não é essa, mas as pessoas que estão chegando no setor de produção, com outra cabeça, outro olhar. Há, então, uma mudança de mindset. Hoje a pegada é a sustentabilidade, é entregar valor e não apenas produto. Ainda temos que trabalhar muito. Hoje em dia, produzir um café especial com uma boa pontuação ou por ter um certo atributo sensorial para nós já é uma obrigação. Tem muito mais coisa que é preciso colocar na xícara.
Em 2023, a SCA [Specialty Coffee Association] lançou uma versão beta de um novo protocolo de avaliação de cafés de qualidade, em que só a pontuação não é mais suficiente. Você acha que o Brasil já olha para toda a cadeia?
Concordo com esse processo de transformação, e acho incrível que a SCA tenha se mobilizado para isso. Embora algumas pessoas resistam, essa mudança de metodologia é necessária. O mercado amadureceu, é o momento de inovar, não dá mais para pensar o café especial exclusivamente pela qualidade sensorial, pela pontuação. Existem outros valores agregados relevantes e precisam ser, também, avaliados e colocados na xícara. Vamos, em parceria com a BCD, fazer um evento no Brasil com os provadores de café para entendermos a nova metodologia na prática.
Como a BSCA auxilia e apoia as novas práticas agrícolas relacionadas à sustentabilidade, principalmente para a Europa?
É nossa pauta constante. A turma que realmente abraçou os cafés especiais é a que está transformando, há muito tempo, suas unidades de produção. Para termos chegado a esse alto nível de especialidade não tinha como não partir para práticas mais sustentáveis. Você nunca vai ter consistência, volume e alto padrão de qualidade no produto se não tiver pessoas qualificadas, competentes e que sejam valorizadas. Isso é inerente aos cuidados de quem agrega valor ao café. Para estar na BSCA, inclusive, é preciso ter fazendas certificadas. O mundo dos especiais contribui muito para o setor de produção de café no Brasil. Se há um novo mindset, é porque estamos convocando pessoas para produzir café de forma revisitada.
E não é só isso. Nosso país tem leis trabalhistas rigorosas e leis ambientais fortes e bem estabelecidas. Isso levou a produção brasileira de especiais a ser a mais sustentável do mundo. Nós visitamos produtores mundo afora, e é nítido que os outros países não têm essa estrutura de sustentabilidade, nem salários dignos, nem distribuição de renda. No Brasil, onde tem café, não se vê miséria.
A maior fatia de distribuição de ganhos em uma venda de café vai para o setor produtivo, e isso não existe em nenhum outro país produtor. Uma cafeicultura realmente lucrativa, tecnificada, cientificamente inovadora como a nossa é lindo de ser ver. O produtor percebe quantas opções tem, e isso é muito inovador. Temos instituições fortes que fazem trabalhos incríveis pela nossa cafeicultura.
Mas ainda falta construir nossa colcha de retalhos, sentar à mesa com elas e conversar. A BSCA é sobre cafés especiais, e, também, sobre a cafeicultura brasileira. Temos que estar com o Cecafé, com a Abics, com o CNC, o CNA, com as regiões. Temos que nos alinhar em prol da cafeicultura brasileira, um setor que recebe abertamente a tecnologia, a inovação.
Como a associação vê a transformação da tecnologia em termos de rastreabilidade?
Esse é um grande desafio para nós. São tantas demandas, e elas acontecem tão rapidamente, que às vezes pensamos estar atrasados. Creio que temos que ser mais eficientes com relação aos selos [fornecidos pela BSCA e que atestam parâmetros que validam que o café é especial]. Antes, discutíamos um selo com os grandes produtores brasileiros de cafés especiais torrados e moídos. Hoje em dia, temos microtorrefações espalhadas pelo Brasil, nanolotes especiais. Como manter esse selo?
Precisamos rever, encontrar maneiras mais atuais para darmos continuidade a esse importante processo. Vou dar meu próprio exemplo. Na minha fazenda, tenho um café-boutique chamado Paioca. E uma torrefação pequena. Como é que vou enviar esses grãos para certificar pela BSCA, se daqui a pouco os poucos quilos de café que temos vão acabar? Então, levo o meu problema para tentar resolver com a diretoria da associação. Vamos ter que buscar formatos mais ágeis para os selos.
Ano passado, vocês anunciaram uma parceria com a Abic para uma certificação para o mercado interno de cafés. Mas grande parte dele acredita que a produção brasileira segue para o exterior. Como vocês o enxergam?
A BSCA praticamente existia para o mundo lá fora. Quando estive na presidência, costumava dizer para a Vanusia [Nogueira, atualmente presidente da OIC]: “Não sei como é só olhar para o Brasil…
A gente fala da China, mas eu digo para os produtores: “Vocês estão tão preocupados com o mundo, mas olhem o país de vocês, que é o segundo maior consumidor de café do planeta.” Ou seja, o mercado interno tem grande potencial. Por isso, essa parceria com a Abic foi uma conquista. É um respeito ao consumidor brasileiro, para que ele comece a entender um pouco mais do assunto. Ele ainda está muito perdido.
Quantas pessoas chegam pra gente e perguntam a diferença entre o café gourmet e o café especial. “Não é a mesma coisa?”, questionam. Precisamos comunicar essas diferenças melhor. E estamos trabalhando muito nisso. E a Espresso está com a gente também, para comunicar melhor isso ao consumidor brasileiro. Esse é um papel crucial da BSCA: melhorar a nossa comunicação, principalmente interna, levar mais esclarecimento para a nossa grande comunidade consumidora de cafés especiais no Brasil. Quando a Abic topou a parceria, achamos fundamental introduzir o selo de café especial no seu rol de selos.
Queremos chegar cada vez mais perto das instituições para que, juntos, possamos trabalhar pela cafeicultura brasileira, pelo consumo de cafés brasileiros de qualidade, que é o que o consumidor brasileiro merece.
Mas são muitos os desafios. Estamos pensando em reunir as instituições para pensarmos juntos um processo que faça valer o que o Brasil já é. Não adianta sermos uma potência se não conseguirmos comunicar isso ao Brasil, que está, aliás, num bom momento em termos de especiais.
Por fim, qual é o seu sonho para o mercado de cafés?
Ah, não sou muito de ter um sonho só não, tenho um monte deles. Mas pensando globalmente, sonho com um Brasil que, de fato, conheça o Brasil. Um Brasil que valorize o setor de produção de café. Um Brasil que, assim como fazem os estrangeiros, queira vir para o campo nos conhecer. Não tenho medido esforços para abrir a minha fazenda, temos rota turística de café por aqui. Precisamos construir, realmente, narrativas bacanas para levar para a nossa gente, principalmente para os que amam café, as coisas maravilhosas que fazemos.
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