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Cafés infusionados: intervenção ou educação sensorial?

Entenda a técnica e o potencial de mercado dos cafés infusionados, que passa por experiências no Brasil

Quando se fala em inovação em cafés, logo vem à cabeça o preparo da bebida. Mas as novidades não estão apenas na ponta final da cadeia: ganhando cada vez mais espaço nas gôndolas, os cafés infusionados são a nova (e polêmica) onda nos mercados nacional e internacional, e hoje já estão presentes em cafeterias e em campeonatos de barismo.

Quando se diz que um café tem notas de frutas amarelas, geralmente o que se explora são as qualidades intrínsecas do grão, que remetem a essa família de sabores, e não a referência de que alguma fruta foi utilizada para aromatizá-lo. Diferentemente disso, para fazer os cafés infusionados acrescentam-se, na fazenda, outros ingredientes para dar sabor ao produto durante as etapas de fermentação, secagem ou descanso dos grãos. “Frutas, óleos essenciais, fragrâncias, essências, ervas aromáticas e especiarias, como cravo e canela, têm sido utilizados para infusionar sabores nos cafés”, explica Gabriel Agrelli, diretor de produto na Daterra Coffee e estudioso do assunto.

Esse tipo de processo não dá limites à criatividade e pode abrir um novo leque sensorial na xícara. E este é, justamente, o centro da questão. Segundo Agrelli, que chegou a tratar do tema em coluna na Espresso, há profissionais que acreditam que cafés infusionados podem ser uma excelente ferramenta educativa para mostrar ao cliente a presença de determinados sabores no café.

Na contramão, outros vêem o processo como uma intervenção nos sabores naturais do grão e uma ameaça às características únicas do terroir, da variedade e de seu processamento, que levaram décadas para ser compreendidas pelos consumidores. “Um grande grupo acha confuso termos que dizer, agora, que os sabores foram adicionados artificialmente ao café”, comenta Agrelli.

“A beleza, o mistério e a novidade do café é, realmente, ser fermentado pelos micro-organismos que estão nele”, defende Rosane Schwan, professora titular de microbiologia do departamento de biologia da Universidade Federal de Lavras (UFLA). Em suas pesquisas com fermentação em cafés, ela usa micro-organismos do próprio terroir e inocula-os para melhorar a qualidade dos grãos.

Made in Brazil

No Brasil, o tema ainda engatinha, mas há quem enxergue um mercado com potencial. Jean Faleiros, CEO da Eldorado Specialty Coffees, na região da Alta Mogiana, tem se dedicado a estudar a técnica, bastante avançada na Colômbia. “A onda começou em fazendas que buscavam perfis de cafés que fossem muito diferentes”, conta.

Para Faleiros, várias propriedades colombianas realizam bons trabalhos a partir de infusões com frutas, como morango, maracujá e papaia, por exemplo. “Eles fazem um mosto da fruta, recolhem toda a sua microbiota e a inoculam no café, para que o sabor dessa fruta entre no fruto do café através do processo de fermentação”, explica ele. A partir desses processamentos, bem sucedidos, os cafés começaram a chamar a atenção mundo afora com seus perfis sensoriais marcantes.

Processo de ativação de levedura para introduzi-la ao cilindro de fermentação anaeróbica, na Eldorado – Foto: Eldorado Specialty Coffee

Mas, como toda moeda tem dois lados, há os que “encurtam o caminho” com substâncias sintéticas, como as utilizadas na indústria para saborizar bolos e sorvetes, para garantir sabores cada vez mais específicos e intensos. Para Faleiros, elas deixam muito sabor residual. “Esses cafés são terríveis”, opina. “Se você pegar no fruto do café, o cheiro não sai mais da sua mão”, relata. “Pense no que pode trazer de mal para a saúde? A partir do momento em que você vai para o processo biológico, de infusões naturais, aí tudo bem”, questiona ele, que é contra o processo de infusão com químicos.

Nas propriedades da Eldorado Specialty Coffees, Faleiros e sua equipe fizeram testes com mamão papaia, maracujá, limão e manga. “Deixamos a manga em um líquido durante 15 ou 20 dias para criar aquele mosto bem grosso, bem inoculado com as leveduras e bactérias da fruta”, explica. O mosto e os frutos cereja do café, com ou sem casca, foram, então, colocados em um biorreator para sofrerem fermentação por 48 a 60 horas, sem oxigênio, para aumentar a pressão. “O tempo, você determina”, detalha. Os resultados desse processo ainda não saíram (pois os cafés estavam na secagem até o fechamento da revista), mas Faleiros está otimista. “Acredito que vamos conseguir trazer esses sensoriais para o café”, projeta.

Na Região de Garça (SP), o Q-Grader do Garça Armazéns, Johnny Ferreira, também já fez experimentos para conferir de perto o potencial da técnica. E pretende retomá-los. Os resultados da primeira empreitada foram satisfatórios: “Antes, os cafés beberam 80 pontos”, diz ele, referindo-se aos cafés de corpo licoroso, acidez e doçura baixas e sabores leves. No final da infusão, beberam de 82 a 83 pontos. “Tivemos uma pequena mudança na acidez e no sabor”, analisa.

Fermentação em sacos plásticos de mundo novo com maracujá – Foto: Johnny Ferreira

Ferreira escolheu frutos da variedade mundo novo e fez infusões com três frutas – laranja, maracujá e abacaxi (este último, acompanhado de hortelã). Em cada saco de 60 kg, ele colocou 40 kg de café cereja – lavado e seco em terreiro suspenso por um dia – e 5 kg de uma das frutas. Essas misturas fermentaram por 150 horas nos sacos, lacrados e conectados por mangueiras a garrafas plásticas, usadas para eliminar os gases gerados no processo fermentativo. Por fim, os cafés voltaram ao terreiro suspenso, onde permaneceram por 25 dias.

Para entender se o perfil sensorial se manteria ao longo do tempo, os cafés foram provados em vários momentos, seguindo o padrão SCA (Specialty Coffee Association). “Ele se manteve por seis meses, mas, logo depois, seus atributos foram se perdendo”, conta Ferreira.

Experimentos feitos por Ferreira: café no terreiro secando com pedaços de abacaxi – Foto: Johnny Ferreira

Situação parecida aconteceu na Fazenda Guariroba, em Santo Antônio do Amparo (MG), região de Campo das Vertentes. O proprietário, Gabriel Lamounier, conta que este ano recebeu o dono de uma torrefação da China que estava interessado em infusionar café com limão a fim de melhorar a acidez da bebida.

Para a tarefa, foi escolhido um catuaí amarelo, de colheita manual seletiva, que passou por separação hidráulica para que, no descascamento, o máximo da mucilagem fosse preservada. Depois, o café foi colocado em um biorreator com leveduras e 20 kg de pedaços de limão. A mistura ficou em infusão por 48 horas. Depois de retirado, o café secou em terreiro suspenso na sombra. Segundo Lamounier, o objetivo de equilibrar a acidez foi alcançado, mas o sensorial de limão não foi persistente. “O grão verde ficou com aroma bem cítrico, de limão, só que quando o torramos e o colocamos na mesa de provas, esse limão desapareceu”, relata.

Este não foi o único contato recente de Lamounier com cafés infusionados. Em viagem à Europa, o produtor brasileiro notou o crescente mercado do produto. “Na França, vi muitos infusionados com frutas, como uva, maracujá e até melancia. Provei esses cafés e o sensorial [proposto] estava bem presente”, destaca. Mas, para ele, é justamente a clareza dessas notas que levanta a bandeira vermelha. “Eles [alguns produtores] vendem o processo de que fazem uma infusão colocando frutas, mas acredito que não seja somente isso”, opina. “Nós já tivemos exemplos aqui de que, sensorialmente, elas não ficam tão presentes assim”, completa ele.

Sobre a utilização de pó de frutas desidratadas para ressaltar as notas desejadas na bebida, como acontece em algumas propriedades na Colômbia, Lamounier considera: “Provei esses cafés e não gostei, achei que tem um sensorial muito artificial”. Na Europa, porém, há quem pareça gostar. “Estão vendendo esses cafés colombianos a 30 euros o quilo”, relata ele, sobre o que viu em sua visita à Grécia em 2023, na feira internacional World of Coffee.

Valor agregado

Com potencial sensorial atrativo, Ferreira confia que os cafés infusionados artesanalmente têm mercado no Brasil. “Este processo trouxe mais qualidade ao grão”, afirma. “Apesar de muito trabalhoso, vale a pena tentar fazê-lo novamente, pois o valor agregado na venda acaba sendo significativo”, opina. Para Faleiros, os cafés infusionados vieram para ficar, mas ainda há muito a ser estudado e aprimorado. “Vou visitar algumas fazendas na Colômbia que estão fazendo trabalhos magníficos, para que, na safra de 2025, a gente possa vir com opções de cafés infusionados para oferecer aos nossos clientes”, planeja.

Referência para Faleiros, a Colômbia – terceiro maior produtor de arábicas – já dá sinais de excelência na produção de infusionados. “O país está bem avançado no desenvolvimento de processamentos de infusionados”, comenta Agrelli. “No Brasil, o assunto ainda é tabu entre os produtores.”

Um dos processos de fermentação anaeróbica em tambor, na Eldorado, com água, suco de limão, caldo de melaço, pedaços de limão, levedura e café arara – Foto: Eldorado Specialty Coffee

É do solo e de mãos colombianas que surgiu um dos melhores cafés infusionados já provados pela equipe da Zest Specialty Coffee Roasters, torrefação australiana que trabalha com este tipo de grão desde 2021. “Compramos nossos primeiros cafés infusionados da Colômbia, do produtor Jairo Arcila”, conta Simon Gautherin, gerente de qualidade da Zest. “Eram, de longe, os melhores cafés infusionados que havíamos experimentado na época e vimos potencial no nosso mercado.”

Os infusionados já caíram nas graças dos australianos. “Eles permitem que as pessoas diferenciem sabores específicos que, de outra forma, não seriam capazes de identificar”, pontua ele. “Acreditamos que eles também desempenham um papel importante nas misturas de cafés à base de leite, que é o que os australianos mais consomem”, defende.

Para Gautherin, a demanda continuará a crescer, pois a qualidade deles melhorou. “Todos os lançamentos que fizemos foram extremamente bem sucedidos”, destaca, dando como exemplo a edição Summertime, uma combinação de quatro grãos (Peru, Honduras e dois infusionados da Colômbia) e um dos blends sazonais de maior sucesso da empresa. “O feedback das cafeterias e dos consumidores foi muito bom e acho que isso nos ajudou a aumentar a conscientização [do consumidor] sobre o café especial e a atrair mais pessoas para o nosso mundo de sabores”, conta.

Edição Summertime da Zest Specialty Coffee Roasters – Foto: Divulgação

Outro ponto positivo da técnica, acredita ele, é permitir que o cafeicultor melhore a qualidade de seus cafés a um custo mais baixo. “Incentivamos a inovação, especialmente se ela beneficiar produtores, cafeterias e consumidores, desde que haja transparência na cadeia de valor”, posiciona-se.

Além da Austrália, há demanda por cafés infusionados nos Estados Unidos e na Europa. Mas o gigante mercado asiático também dá sinais de interesse. Quem confirma essa percepção é Daniel Vaz, atual campeão brasileiro de barista e sócio da Five Roasters (RJ). Ele, que cruzou o globo este ano para disputar o mundial da categoria, viu de perto a cena cafeeira em um dos maiores mercados consumidores do continente, a Coreia do Sul. “A maioria das cafeterias em que estive serve cafés infusionados”, pontua.

A busca crescente por este café de sabor marcante tem diferentes explicações, e entender o fenômeno passa pelo fator geracional. “A nova geração de coffee lovers, que está começando agora no café especial, quer tomar um café e sentir, realmente, o gosto que está descrito na embalagem”, analisa Faleiros. “Claro que essa tendência não é para café de volume, é para fazer experiências. Por isso, vamos continuar estudando a técnica para cada vez mais melhorarmos nossos processos”, planeja o CEO da Eldorado.

Apesar de popular em outros lugares do mundo, o consumo de infusionados no Brasil é um terreno desconhecido. Há quem acredite em um mercado – ainda pouco explorado – para este tipo de grão, como é o caso de Ferreira e Faleiros, e há quem ache que o perfil sensorial obtido com o processo não é a praia do brasileiro. “No cenário nacional, acho difícil a demanda por esses cafés, que ainda é pequena. Por tradição, o brasileiro aprecia o sensorial de chocolate”, reflete Lamounier.

O incansável debate

Apesar de pouco comentado e testado no Brasil, o assunto é ampla e intensamente debatido no exterior. Nas feiras de café, é possível encontrar estandes de diferentes marcas exibindo cafés infusionados. “Ao mesmo tempo, na última edição da World of Coffee, na Dinamarca, algumas pessoas caminhavam pela feira com um emblema ‘infused’ riscado com um X, em sinal de protesto”, relata Agrelli.

O clima polarizado também foi captado por Vaz na edição da mesma feira em Busan, na Coreia do Sul. “Muitas pessoas apresentaram opções de infusionados, enquanto outras fizeram bottons e camisetas escrito ‘no infused’”, conta o barista.

Foto: Agência Ophelia

Os campeonatos de café são um termômetro das tendências do grão no mundo, e com os infusionados não é diferente. “De dois anos pra cá, tem sido uma tendência nos mundiais, pela clareza na percepção das notas sensoriais”, opina Vaz.

Para alguns competidores, utilizar esse tipo de grão pode ser uma estratégia para ganhar pontos em suas apresentações, uma vez que as notas relatadas por eles provavelmente estarão bem claras nas xícaras entregues aos juízes. Na dúvida, nas competições mundiais de 2024, a World Coffee Events – que organiza e supervisiona esses campeonatos – decidiu restringir o uso de ingredientes aromatizantes no café. “Se forem adicionados durante o processamento ou antes de os grãos serem secos, não há problemas”, esclarece Agrelli.

Em meio à polarização de opiniões, não restam dúvidas de que este é um assunto que ainda vai gerar desafios para o setor, principalmente quanto à comunicação entre produtores e compradores, mercado e consumidores. “É um processo que precisa estar muito claro”, pontua Vaz. Ainda há muitos capítulos desta novela pela frente, mas o cenário indica que a indústria está longe de chegar a um consenso – se é que um dia chegará.

Para saber mais: Transparência

Apesar de polêmica, a técnica de infusionar cafés é válida, mas pode tornar-se um problema caso não seja bem esclarecida. “Existem muitos casos sendo reportados de produtores que realizam infusões nos cafés, porém os comercializam como se estes sabores fossem naturais”, diz Agrelli, apontando que isso tem gerado revolta nos compradores, que se sentem enganados por seus fornecedores.

Foto: Agência Ophelia

Para ele, a transparência é um importante valor na indústria do café, sendo essencial que compradores tenham informações verdadeiras e claras para que possam tomar decisões alinhadas com o que acreditam. “E para que paguem aquilo que estão dispostos a pagar, pelos produtos que querem comprar”, complementa o diretor da Daterra.

Além de questões éticas, o assunto pode ser uma questão de saúde. É o que alerta Schwan. “Essas fermentações em que estão colocando algum produto têm que ser melhor verificadas”, aponta. “Se você está colocando uma fruta, essa fruta está isenta de fungos filamentosos? Fungos que são patogênicos ao homem?”, questiona. Ela, que estuda o tema há 28 anos, utiliza em suas pesquisas micro-organismos selecionados que combatem este tipo de fungo, garantindo, assim, que o café fermentado esteja livre de toxinas. “Nesses cafés infusionados com frutos durante a fermentação, se não tiver certeza de que são frutos saudáveis, você pode estar inoculando mais açúcar, e, se o ambiente for aberto, podem crescer bactérias e fungos patogênicos”, esclarece.

Quando se trata de regulamentação, a química Camila Arcanjo, mestre em alimentos no Laboratório Co.F.Fe.C.C.I.Na, explica que não há uma legislação específica para processamentos de café in natura. De acordo com ela, a RDC 716/22 da Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária], que diz que cafés que receberam aditivos alimentares aromatizantes devem especificar sua saboraização na embalagem, se aplica apenas aos torrados. “A Anvisa não legisla sobre café cru. Não existe nada na nossa legislação sobre isso”, comenta ela.

Fermentado x infusionado x saborizado

Existem diversas formas de fermentar cafés sem infusionar. “São conceitos diferentes”, esclarece Agrelli, que destaca que nem sempre adicionar ingredientes ao produto pós-colheita caracteriza infusão. Muitas vezes, as fermentações têm adição de leveduras, fungos ou outros micro-organismos apenas para potencializar a ação enzimática, não para transferir sabores específicos. “Elas simplesmente aceleram ou auxiliam nos processos fermentativos, que podem, sim, criar compostos voláteis e sabores que agregam complexidade ao café. Mas isso não seria uma infusão de fato. É bem diferente de se estar adicionando aromatizantes, fragrâncias etc.”, afirma.

Mas é possível infusionar o café durante a fase da fermentação. Alguns produtores fazem uso de frutas, mosto ou caldo de cana como forma de agregar mais açúcares e potencializar a fermentação. “Neste caso, o café é chamado de cofermentado, o que não deixa de ser, também, uma das formas de infusão de sabores possíveis”, completa.

Já os cafés saborizados são aqueles que recebem aromatizantes artificiais durante ou após a etapa da torra. Geralmente este processo é aplicado a cafés de qualidade inferior.

Texto originalmente publicado na edição #85 (setembro, outubro e novembro de 2024) da Revista Espresso. Para saber como assinar, clique aqui.

TEXTO Gabriela Kaneto

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