As artes de Carmo Dalla Vecchia
Com mais de 25 anos de televisão, o renomado ator também cede o seu corpo e a sua voz para discutir questões importantes no teatro e na fotografia
Pai da interpretação no Ocidente, o russo Constantin Stanislavski já dizia: “Um ator precisa de algo mais do que apenas seu talento artístico. Deve ser, também, um ser humano ideal”. A frase se aplica bem à trajetória de Carmo Dalla Vecchia, ator que já deu vida a tantos personagens “tortos” – como ele mesmo gosta de chamá-los –, mas que transborda uma personalidade doce e gentil.
“Tenho sorte de ter uma profissão bonita, que tem o mérito de transmitir ideias e ajudar as pessoas a questionar conceitos. Mas não a acho melhor do que qualquer outra. Assim como um padeiro, um motorista, tenho uma função a cumprir”, analisa.
Nascido em Carazinho, cidade de aproximadamente 60 mil habitantes no Rio Grande do Sul (RS), Carmo é filho de um bancário com uma dona de casa. Quando pequeno, a profissão do pai fez com que a família se mudasse para diversas cidades do interior do estado gaúcho.
“Acho que tem uma coisa que já nasce com a gente. Eu fui um garoto que não tinha histórico de pessoas na família que gostassem de ler. Mas eu tinha afeto pelos filmes e livros. Uma coisa inexplicável”, relembra.
Neto de alemães e italianos, Carmo ganhou pinta de galã já na adolescência, e, aos 19 anos, foi mandado a São Paulo para participar do renomado concurso de modelos The Look of the Year – que mais tarde revelaria beldades femininas como Gisele Bündchen e Isabeli Fontana. Era 1990 e ele venceu a etapa internacional.
“O concurso contou com a presença de Cindy Crawford e da cantora Grace Jones. Para um garoto do interior era algo muito impactante”, emociona-se. O sonho de ser modelo não se realizou. Batalhando novos trabalhos na capital paulista, Carmo se viu trabalhando como vendedor de loja. “Brinco que virei ator por ser um modelo frustrado, já que esse era meu real objetivo. Toda a dificuldade que tive na carreira de modelo não tive na de ator.”
O som do sim
Depois de voltar para o Rio Grande do Sul, Carmo foi estudar Teatro no Rio de Janeiro. Com um ano na cidade maravilhosa, já era chamado para trabalhos. Mas foi um convite para ajudar a revelar a protagonista da minissérie Engraçadinha, Seus Amores e Seus Pecados“, em 1995, que mudou a sua vida.
“Fui para o teste como apoio, ele não era para mim. A diretora acabou me escolhendo para o filho da Engraçadinha. Foi um início de carreira feliz, carinhoso. Era uma obra de Nelson Rodrigues, adaptada com todo o cuidado”, relembra.
Durval, o filho de Engraçadinha, vivia um complexo de Édipo, e inauguraria uma lista de personagens “tortos” na televisão. “Daí por diante tive a sorte de interpretar personagens estranhos, cheios de traumas e com histórias complicadas”, diverte-se.
A primeira cena gravada nos estúdios da Rede Globo foi com um time de peso: Cláudia Raia, Pedro Paulo Rangel e Mylla Christie. “Eu vinha na época de uma escola de teatro e não entendia a agilidade da televisão. A Cláudia sempre foi brincalhona, mas, na hora de gravar, estava pronta. Eu tinha um processo teatral lento, artesanal. Pensava que nunca ia conseguir alcançar o foco, a energia e o timming que eles tinham”, revela.
Com mais de 25 anos de televisão, Carmo não consegue apontar um personagem como o principal na teledramaturgia. “Acho que nosso presente é o mais importante. Sou um cara conectado pelo agora e penso que isso tem muito a ver com a minha filosofia de vida e prática budista. Todos constituíram uma história”, afirma.
“Às vezes eu vejo uma cena dos meus primeiros trabalhos e sinto vergonha. Penso: ‘Como é que me deixaram continuar?’. Mas aí penso que o que me fez persistir foi o fato de ter saído do interior e querer muito ter uma carreira. Os ‘nãos’ que me deram eu não escutei, ou fingi que não escutei, para não desistir.”
Entre as surpresas da vida, Carmo – que possui cidadania italiana – foi chamado pela emissora RAI para gravar uma série no país europeu. Coincidentemente, numa cidade ao lado de onde nasceram os seus avós.
“Meus antepassados vieram para o Brasil porque passaram dificuldades e fome. Foi um presente estar no país deles, voltando agora para trabalhar”, conta ele, que, nas horas vagas, visitou um cemitério da região. “Havia um monte de Dalla Vecchias e com rostos familiares. Foi como um reencontro”, lembra.
Compromisso artístico
Engana-se quem pensa que a atuação é a única manifestação artística de Carmo. A paixão pelas fotos já lhe rendeu duas exposições no Rio de Janeiro (RJ). E ele ainda estuda piano.
“No período em que voltei para o Rio Grande do Sul, de São Paulo, trabalhei como assistente de fotógrafo para um amigo, e, quando fiz o Zé Bob, na novela A Favorita, (2008), aprendi a fotografar”, conta.
Mas foi durante as gravações da novela Cordel Encantado (2011) que a paixão pela câmera veio à tona. “Eu demorava muito para gravar e haviam lançado o Instagram. Como havia um cenário lindo, pessoas disponíveis e ambientação, passei a fotografar nos intervalos. Quando vi estava mais ansioso para chegar em casa e ver as fotos que tinha tirado do que para assistir à novela’, brinca.
“Hoje eu fotografo menos porque toda forma de arte exige tempo e respeito. Acho bonito você se inspirar no trabalho de fotógrafos que admira – afinal, é preciso honrar os artistas que vieram antes de você. No fundo nós somos aquilo que vimos e não vimos. Mas precisamos também entregar algo novo na profissão, que nunca foi feito. Quando você não faz isso, seu trabalho fica medíocre. E tudo o que um artista não pode ser é medíocre”, reflete.
Já o piano, para Carmo, possui paralelos fortes com a atuação. “Por exemplo, no piano, se você forçar, a nota não acontece. Tem que ter suavidade, fluxo e tônus para fazer aquilo”, relaciona.
Billy Elliot
A música acabou abrindo portas para trabalhos impactantes no teatro musical. A primeira experiência foi com Gianfrancesco Guarnieri em A Luta Secreta de Maria da Encarnação. Na sequência, ele estreou Forever Young e agora vive Jack, um pai conservador no musical Billy Elliot.
O musical é baseado no filme de Lee Hall, de 2000, e tem músicas de Elton John. O enredo gira em torno de Billy, um menino que quer ser bailarino contra a vontade do pai.
“Jack lembra muito minha história no Rio Grande do Sul. De alguma maneira meu pai foi um pouco Jack, porque era aquele que nunca deixaria o filho usar rosa, por exemplo”, relata. “Mas a história dele tem uma curva bonita, porque é uma pessoa que acaba tocado pela arte e é surpreendido pelo talento do seu filho para a dança”, diz.
Para Carmo, o espetáculo vem em boa hora para o país, que vive uma onda conservadora. “Vejo as pessoas no Brasil discutindo o que o outro pode ou não fazer. A história de Billy sensibiliza e busca uma reflexão sobre a diferença entre as pessoas que precisa ser respeitada. Ser diferente é bonito. Cada país tem uma cultura diversificada. O que podemos aprender com eles, deixando de lado a crítica?”, questiona.
“O bonito do espetáculo é que ele não passa pelo racional. É como quando você escuta uma música em um idioma que não sabe e ela te toca. A arte sensibiliza. Se no final você não estiver torcendo pelo Billy, você é maluco”, garante.
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