Cafezal •
Um novo robusta
Fazendas do Espírito Santo mostram que é possível produzir conilon com qualidades sensoriais
Conhecido como a ovelha negra dos apreciadores de cafés especiais, o café robusta é um tipo de grão com material genético menos complexo, que resulta em bebidas com notas sensoriais menos atraentes, com presença de amargor, menos doçura, menos acidez e salinidade. Como não resulta em xícaras tão adocicadas, geralmente é utilizado como “tempero”, para dar acabamento a blends e bebidas cafeinadas. Também conhecido como conilon (ambos são variedades da espécie Coffea canephora), ganhou essa má fama no mundo dos cafés gourmets não apenas por sua tipicidade, mas pela maneira como é cultivado e tratado após a colheita. Sem cuidados, acaba chegando ao consumidor com características ainda piores, comprovando o preconceito estabelecido.
Há cerca de cinco anos, um pequeno grupo de pessoas está tentando mudar o rumo dessa prosa. E está conseguindo. Trata-se do projeto Conilon Especial, capitaneado pela Conilon Brasil, uma empresa focada no treinamento e na difusão de conhecimento sobre o tema, que também presta consultoria para cafeicultores. O grupo conta com o apoio do Incaper (Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural), das secretarias municipais e estadual de agricultura do Espírito Santo e de alguns cafeicultores que estão acreditando nessa nova fase do robusta. A meta? Mostrar aos produtores de café do Espírito Santo, do restante do Brasil e, quiçá, do mundo, todo o potencial desse tipo de grão quando selecionado geneticamente e cultivado adequadamente.
Herança de gosto amargo
O desafio dessa turma não é pequeno. O Espírito Santo é atualmente o maior produtor de café robusta do País e o maior produtor em área plantada do mundo. No entanto, o conilon, variedade descoberta pelos agricultores da região há cerca de quarenta anos, é desenvolvido desde então com o foco apenas na produtividade e esse modus operandi parece estar cercado por uma muralha difícil de ser derrubada.
Entenda-se aqui por um cultivo focado na produtividade aquele em que a planta, que já é naturalmente mais resistente, é criada como uma criança na rua, que acaba se virando sozinha. Em geral, o cafezal não é podado nem adubado, não passa por manejo do mato, por controle de pragas e de doenças e é pouco irrigado. Essa maneira de tocar a lavoura, herdada dos primeiros cafeicultores de robusta dali, é também um estímulo para o uso maior de aditivos químicos, fertilizantes e agrotóxicos. A colheita é feita antes de o fruto estar maduro; ele é deixado no terreiro sem cuidados, recebendo umidade excessiva, que costuma causar fermentação. Depois todos os grãos vão para um secador de lenha direta, ambiente que chega a atingir 300ºC. E aí, mesmo aquele vermelhinho que estava doce no pé, depois de passar por tantas intempéries, ficará com o mesmo gosto de fumaça e cinzas, adstringência da fermentação e sensação medicinal e de sujeira na boca que os outros. Esse é um retrato da produção tradicional no Estado. Um café de baixa qualidade, utilizado pela grande indústria para compor blends, café instantâneo, café em sachês, refrigerantes e energéticos.
Nadando contra a corrente
Como, então, convencer o produtor de café de que isso tudo está errado se esse lote malcuidado, que perdeu grande parte de suas características, é comercializado com a facilidade de quem vende água no deserto? Como mostrar que isso é ruim para ele, para a natureza e para o consumidor? “Esse café tem muita liquidez. O mercado compra mesmo com um monte de defeitos, torra tudo bem escuro e vende para o consumidor”, explica Marcelo Cortelletti, proprietário do Sítio Boa Sorte (em Santa Tereza), que possui 70 mil plantas de conilon.
Marcelo é um dos que estão nadando contra a corrente. Começou a ouvir aquela história de café de qualidade em um grupo de que participa, a Associação dos Produtores Rurais do Rio Perdido. A entidade, que reúne 66 pequenos produtores da região norte do Estado, começou uma parceria há cerca de quatro anos com a Conilon Brasil para orientar produtores como Marcelo.
Como parte do trabalho, que ainda está na fase de conscientização dos cafeicultores, a empresa, com sedes em Jaguaré e em Vitória, promove a cada quinze dias cursos e palestras sobre qualidade do café, além de provas de qualificação em R-Grader (que capacita classificadores e degustadores a provar e avaliar os robustas de qualidade). “A ideia é focar no produtor, para que ele entenda que a forma de produzir o café influencia diretamente na bebida. Se não há cuidados, a xícara perde sabor, doçura, acidez e potencializa a salinidade”, explica Arthur Fiorotti, um dos sócios da empresa.
Em um laboratório bem equipado, Arthur e sua equipe fazem análises de cafés, realizam degustações e oferecem orientação aos cafeicultores. “O cafeicultor tem apenas que manter a qualidade que o grão já tem no pé”, explica Romário Gava Ferrão, pesquisador do Incaper. Doutor em genética e melhoramento de plantas, estuda há 28 anos o tema e é o coordenador estadual do programa de cafeicultura. Para ele, a solução é simples. Por isso, desenvolveu uma cartilha, com os 10 mandamentos para produzir o conilon de qualidade, distribuída gratuitamente aos produtores.
Alguns meses depois da primeira conversa com a Conilon, Marcelo já passou a colher os frutos apenas bem maduros, a fazer uma separação mais criteriosa e aperfeiçoar a secagem. Antes Marcelo levava apenas 22 horas para secar o café e já vendia o lote. Hoje leva em torno de 46 horas. “Tem de ter uma atenção muito maior, é um trabalho mais dedicado”, conta. Dois anos depois, Marcelo não se arrepende: já teve 68% do investimento feito pago apenas com a primeira safra.
Seu compadre Luís Carlos Gomes, de 57 anos, também faz parte da associação e está no mesmo movimento. “Estamos começando a ter uma ligação com o consumidor, o nosso café está deixando de ser apenas uma commodity”, diz. Luís acompanha de perto a produção e apresenta com orgulho cada cafeeiro de sua plantação. “A ideia é melhorar a condição da planta, fazer poda, adubar de forma diferente. Além do cuidado na secagem do café, que faço em terreiro suspenso para ventilar por cima e por baixo”, explica. Chamam atenção também a estufa sobre o terreiro. “Para proteger da chuva e do sereno, pois trabalhar a céu aberto tem umidade alta, muito orvalho”, diz. Ele planta café desde 1999. Hoje se orgulha do café que produz e enche o peito ao oferecê-lo às visitas.
“Na associação, conversamos muito com os outros produtores, mas é uma luta inglória, pois não se conhece ainda o conilon especial. O custo também é um entrave. É preciso investir em equipamentos, secador com fornalha de forno indireto, mas há opções mais baratas, que não requerem estrutura muito sofisticada”, conta Luís. Ele tem consciência das dificuldades de encarar essa novidade. Mas sabe que não há por onde escapar. “A qualidade é um caminho sem volta. No momento, remunera melhor os cafeicultores. Mas, num futuro não muito distante, vai significar a permanência deles no mercado”, acredita Ênio Bergoli, secretário de Estado da Agricultura, Abastecimento, Aquicultura e Pesca do Espírito Santo.
Resultado no bolso e na xícara
Esse empenho, ao final, é recompensado. O valor agregado no preço da saca pode ser de 12,5% a 15%. Uma saca de R$ 280 pode passar a R$ 340. Sem contar as várias portas no mercado externo que já estão abertas, à espera dessa produção. “Existe uma limitação de suprimento de arábica, por isso, há muitas empresas fazendo testes com robustas de qualidade”, explica Arthur Fiorotti. Há ainda um estímulo (moral e financeiro) para quem aposta no novo formato. “Já temos concursos estadual, regionais e municipais de qualidade de conilon, com remuneração adicional para os cafés que se destacam. E, no ano passado, foram realizados os primeiros embarques em escala de conilon de qualidade para o exterior”, explica o secretário Ênio Bergoli.
Essa mudança, que se propõe profunda para o mercado de café, também poderá ser notada pelos consumidores. A produção de conilon especial cria uma série de possibilidades para o apreciador de café, que terá, em breve, a chance de consumir mais blends feitos apenas de grãos qualificados (arábicas e robustas). A Espresso provou o café produzido por Luís Gomes, considerado um café de cerca de 80 pontos, índice bem alto para um café 100% robusta. E notamos aroma doce, com toque de amêndoas, boa doçura, bom corpo, baixa acidez, e salinidade de média para baixa, bastante equilibrado. Uma boa surpresa.
“Há um preconceito muito grande com o blend, mas quem ganha é o consumidor”, defende Evair de Melo, do Incaper. “E só estamos começando. Assim foi com o vinho californiano no início, o da Austrália, o do Vale do São Francisco. E agora são uma realidade. Não existe verdade absoluta. Há muitas coisas para ser encontradas.”
Luís Carlos Gomes, do Sítio São Bento, acredita, porém, que o mais importante é a satisfação pessoal do produtor de café. Todo o esforço, o investimento, a dedicação de mais horas de atenção e cuidados à lavoura e à pós-colheita valem mais quando o cliente gosta da bebida. “Não existe prazer maior que este: alguém tomar a segunda xícara do nosso café”, diz.
Ficha técnica
Sítio São Bento
Localização Santa Tereza (ES)
Região Vales e Serras de Santa Tereza, norte do Espírito Santo
Altitude média 540 m a 820 m
Extensão do cafezal 127 hectares
Número de cafeeiros 350 mil plantas
Colheita seletiva
Processamento natural e cereja descascado
Secagem pátio e terreiros suspensos
Porcentual dos tipos 25% conilon e 75% arábica
Variedades clones de Vitória, e outros selecionados no próprio sítio, como conilon amarelo (espontâneo)
MAIS INFORMAÇÕES www.incaper.es.gov.br
(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).
Deixe seu comentário