Rodrigo Oliveira, o chef de um restaurante improvável
No comando do Mocotó e do Balaio IMS, Rodrigo fez da sua quebrada um dos lugares mais disputados de São Paulo em uma mistura perfeita de ingredientes como excelência, simpatia e consciência social
No topo de uma ladeira na Vila Medeiros, em um bairro que não tem metrô “do lado”, na Zona Norte de São Paulo, está o Mocotó. O restaurante, para quem tem algum conhecimento sobre gastronomia, dispensa apresentações: no local, em 1973, um imigrante nordestino abriu uma casa para servir comida simples sertaneja. Quando seu filho se tornou chef de cozinha, nos anos 2000, o lugar ganhou notoriedade e se transformou um dos mais reconhecidos estabelecimentos não só em São Paulo, como no restante do Brasil e do mundo.
Detalhe: tudo isso servindo a mesma comida sertaneja, no mesmo endereço da periferia da maior cidade do Hemisfério Sul. Responsável por esse sucesso, Rodrigo Oliveira inclusive é conhecido nas redes sociais como Rodrigo Mocotó. Na conversa, realizada antes das medidas de isolamento social, deixou transparecer seu jeito de falar tranquilo, de quem nem parecia ter a agenda lotada, com outras três pessoas que o aguardavam no salão para eventos diversos. Olha nos olhos, com atenção e simpatia, mesmo que seja para contar a história que já repetiu inúmeras vezes, a um sem-fim de jornalistas, sobre a receita de seus ilustres dadinhos de tapioca ou sobre como o restaurante se transformou no que é.
Assim como a cidade de São Paulo, que não foi pensada e estava às margens do país em seus primórdios, para depois se tornar a maior cidade do Hemisfério Sul, o Mocotó é espontâneo. “O Mocotó é mais acontecido do que planejado. Era impossível imaginar tudo o que viria de um boteco com estrutura precária, de comida sertaneja – que foi sempre muito estigmatizada –, na periferia da cidade, dentro de um cenário gastronômico super elitista, exclusivista. Ainda que a gente tivesse muita confiança no nosso produto e no nosso trabalho, o que a gente poderia sonhar? Em suma, o Mocotó é um restaurante improvável. Estar lado a lado com alguns dos maiores restaurantes do mundo é notável e, sem demagogia, não é o feito de uma pessoa só, é de muitas: meu pai, a equipe que se formou aqui e os talentos que juntamos”, conta.
O encontro com o café especial
Por não ter intimidade com a alta gastronomia na época em que começou a tocar o restaurante, Rodrigo – que estudava gestão ambiental – conta que demorou para mexer em seus conceitos sobre café. Era tudo novo, ele precisava entender o que eram tantos ingredientes e processos que orbitavam o mundo da cozinha profissional. O café foi ficando para depois, mas, como diz o meme, café não costuma falhar.
“Meu primeiro contato com cafés especiais, a primeira vez que me orgulhei do café do Mocotó, foi há uns doze anos, quando a dona Rita (Rita Maria Gonçalves Dias), da Fazenda Pessegueiro, esteve aqui e sugeriu que a gente fizesse café de outro jeito. Ele era servido naquelas grandes térmicas de inox, que permaneciam requentando a bebida o tempo todo. Falei que era um restaurante modesto, e ela disse que café bom cabia em qualquer lugar”, lembra o chef. Dali para a frente, houve uma diversificação desse item no cardápio: eles compraram máquina para extrair café espresso e passaram também a servir um café coado melhor. Hoje os grãos com que os restaurantes de Rodrigo trabalham são Fazenda Pessegueiro, Yaguara Ecológico, Orfeu e uma linha especial da Nespresso.
Atento e forte
O sucesso do Mocotó nunca fez com que Rodrigo se tornasse alheio a questões que envolvem a comunidade em que está inserido. Aos primeiros sinais de como a pandemia da covid-19 (coronavírus) e o isolamento social poderiam afetar as pessoas do seu entorno, Rodrigo, sua esposa, a historiadora Adriana Salay Leme, e toda a equipe do Mocotó se mobilizaram para cozinhar e entregar gratuitamente quentinhas à população mais vulnerável da Vila Medeiros. Batizada de Quebrada Alimentada (Quebrada é o jeito carinhoso como Rodrigo chama o seu bairro), a iniciativa se expandiu, envolveu outros restaurantes, cozinheiros e organizações da sociedade civil, e continua firme e solidário no intuito de minimizar a fome de quem sofre com a insegurança alimentar.
A atitude só corrobora uma característica que é parte do DNA do que Rodrigo faz. Mesmo com o sucesso do restaurante, ele jamais pensou em tirar as operações da Zona Norte e levá-las para algum endereço mais badalado, como os Jardins, por exemplo. “Somos locais, apegados ao bairro, ao nosso entorno, às nossas origens, e já está comprovado que temos uma linguagem que é universal, que é entendida pelo mundo todo. Descentralizar é fundamental, a gente historicamente cultiva a desigualdade. O sistema promove isso”, conta.
Presente no bairro
Ele se lembra de uma conversa com Adriana em que falavam sobre para que serve um restaurante. “Dei uma resposta toda pomposa e ela me disse que o restaurante serve para as pessoas saírem de lá melhores do que entraram. O restaurante, na sua essência, serve para restaurar, e, se você for mais bem-sucedido, consegue fazer isso não só fisiologicamente, mas emocionalmente. Se um restaurante pode restaurar as pessoas, ele certamente também pode restaurar uma comunidade, ao permanecer em uma região cuja renda média é inferior à média da cidade, e com pouco ou nenhum aparelho cultural e de lazer. Sair daqui seria aceitar como condição imutável que, se eu quero lazer, arte e cultura, eu tenho que ir para outro lugar. E eu acredito que isso é transformável, sim.”
Uma das saídas para que o Mocotó não deixasse de ser acessível a quem é do bairro, mesmo depois que se tornou um dos restaurantes mais importantes e respeitados da cidade, foi avaliar o que era mesmo fundamental. Um exercício que pode ser muito válido para quem pensa em saídas para o futuro, depois que as atividades ligadas a bares, restaurantes e cafés puderem ser retomadas.
“O que fez nosso equilíbrio e nossa conta fechar é: se a gente não pode oferecer tudo, foca o essencial. Boa comida, com bons ingredientes, preparada em uma cozinha que tem tecnologia de ponta, acolhimento verdadeiro, genuíno, boa remuneração pra funcionários e fornecedores. Não temos mobiliário luxuoso, reservas, taças de cristal, não há acessórios que fazem parte do mundo da alta gastronomia, mas que entendemos que não são fundamentais. A pergunta até pouco tempo era o que a gente pode pôr em um restaurante, o que cabe em um restaurante. Acho que no momento atual a pergunta é o que a gente pode tirar e, mesmo assim, ser íntegro e bom.”
(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso referente aos meses junho, julho e agosto de 2020 – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).
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