Pão para alimentar a alma
Alimento dos mais básicos e mais antigos do mundo, o pão volta às origens da fermentação natural e fica ainda mais gostoso para acompanhar o café
Cheiro de café chama um pedaço de pão. Ainda mais se for pão quente, que derrete a manteiga. Os dois são ótimos companheiros, e de longa data. E são a companhia perfeita para quem acorda, para quem quer uma pausa no dia, para quem quer um prazer simples e garantido. Sozinho ou acompanhado. E não ache que tem repetição demais neste texto. É que o pão foi feito para ser compartilhado mesmo. Entre várias pessoas ou com um bom café. Tanto que todas essas palavras repetidas aqui têm origem no pão: “companhia” vem do latim com = junto e panis = pão, aquele com quem se divide o pão, com quem se anda junto.
De uns anos para cá, cada vez mais pessoas têm voltado os olhos para o pão e seus processos. Esse movimento gerou a recuperação do modo mais primitivo de panificar, usando a chamada fermentação natural (leia mais sobre o processo e como fazer seu fermento nesta reportagem). É fácil encontrar em São Paulo, no Brasil, no mundo todo, gente que resolveu literalmente botar a mão na massa.
“Creio que esse interesse ocorreu por um conjunto de coisas: o interesse maior pela gastronomia; a busca por alimentos de mais qualidade, sobre os quais conheçamos a origem; uma preocupação em comer melhor, em consumir mais produtos artesanais, que conciliem sabor e bons aspectos nutricionais; certa cultura do ‘faça você mesmo’ retornando à voga; e acho que a pesquisa da fermentação natural, a curiosidade, acaba entrando nessa esteira”, diz Luiz Américo Camargo, jornalista, pesquisador de panificação, autor do livro Pão Nosso (Editora Panelinha) e que já inspirou muita gente a ir para a cozinha e acender o forno. Inclusive esta jornalista e padeira amadora que vos escreve.
O grande encontro
No meio da terceira onda do café, algumas cafeterias notaram que, para acompanhar bebidas complexas, feitas em diversos modos de preparo e com grãos mais do que especiais, as comidas deveriam ser compatíveis com elas. Decidiram, então, investir nos pães artesanais e de fermentação natural. Sejam eles produzidos nas próprias cozinhas ou encomendados dos muitos padeiros que pipocam pelo mundo da gastronomia, a combinação só faz ganhar em sabor e qualidade.
Um bom pão, de acordo com Luiz Américo Camargo, precisa “ter sabor, ter mordida agradável, massa bem desenvolvida, não farelenta. Ter um bom contraste entre a casca e o miolo. Precisa ter uma boa durabilidade (e sem conservantes!), para que, mesmo não sendo crocante como no momento em que saiu do forno, revele notas de sabor e aroma que vão se mostrando gradualmente. Não pode revelar gosto de cloro ou de fermento biológico”. E, entre brusquetas, sanduíches e tostadas das mais perfeitas para acompanhar qualquer café, são fatias e filões assim que são entregues hoje.
Pegue para criar
O fermento natural, ou massa lêveda para os portugueses (ou sourdough em inglês; sauerteig em alemão; levain em francês; lievito madre em italiano; massa madre em espanhol), nada mais é do que uma mistura de farinha, água e micro-organismos benéficos. Essas culturas de leveduras selvagens (já que não são controladas e agem naturalmente) formam uma mistura capaz de fazer o pão crescer, substituindo o fermento biológico usado na maioria das receitas de pão.
Algumas pessoas devem se lembrar das mães ou avós fazendo em casa um tal de “pão de Cristo”, em que recebiam, em um pote, um pedaço de uma massa meio gosmenta e pegajosa e as instruções para fazer o pão: guardar uma parte da massa e repassar uma parte para outra pessoa. Isso nada mais era que um fermento natural sendo compartilhado! Afinal, de acordo com o livro Pão — Arte e Ciência, de Sandra Canella-Rawls (Ed. Senac São Paulo), existem indícios de que se assava pão, cerca de 8 mil anos atrás, no que hoje é a Suíça. Os pães fermentados parecem ter surgido depois, no Egito, cerca de 300 a.C.. E, definitivamente, não havia fermento por lá que não fosse o selvagem.
Muitas pessoas querem saber a diferença entre o fermento natural e o biológico. Cada um tem suas características, e ambos podem resultar em bons pães. “O pão de fermento natural tem mais complexidade de casca, de sabor como alimento. O pão de fermento biológico é mais simples. Mas cada qual em seu estilo podem ser ótimos, desde que bem trabalhados”, explica Luiz Américo.
Para fazer o seu levain, bem como para fazer pães com ele depois, é preciso paciência, respeito ao tempo, uma boa dose de controle de ansiedade e persistência. O fermento pode dar errado na primeira vez, pode demorar mais do que o esperado. A temperatura dos dias, a umidade do ar e até o seu jeito de mexer na massa, tanto em termos de força, como de jeito e prática, mudam o pão. Conhecer o seu forno também. E isso vem só com testes, erros e acertos.
Como fazer o seu
(Receita da jornalista Cíntia Marcucci (a autora da matéria), que faz tudo meio no olhômetro, já matou fermentos, perdeu outros, mas que faz pães errados e certos dias sim, dia também. E que aprendeu o método no antigo blog do Luiz Américo Camargo)
- Em uma tigela pequena de cerâmica, misture duas colheres de sopa de farinha de trigo e quatro de água. Cubra com um pano de tecido leve (como os panos de pia ou fraldas de boca de bebê) e deixe repousar em um local que você não vá mexer muito.
- Após 24 horas, veja se já apareceram algumas bolhas de ar. Caso não haja nenhuma, espere mais 8 horas e cheque novamente. Quando notar as primeiras bolhas na mistura, alimente o fermento com mais uma colher de farinha e duas de água e siga o processo abaixo.
- Cheque novamente após 12 horas da primeira alimentação. Deve haver mais algumas bolhinhas de ar. Alimente de novo: 1 colher de farinha, 2 de água.
- Após 8 horas, alimente de novo. A massa deve começar a ficar mais parecida com a esponja que se faz nas receitas de pães, com mais bolhas de ar: menos farinha molhada separada da água e mais uma pasta viscosa.
- A partir de agora, procure alimentar o levain a cada 6 ou 8 horas, até conseguir uma quantidade que possibilite a você usar 100 gramas de fermento para fazer um pão e outras 100 gramas para guardar.
Glúten, esse lindo!
A proteína da farinha de trigo (e de outros cereais) conhecida como glúten é o “músculo do pão”, o que dá elasticidade e fofura à massa. Como explica Harold McGee no livro Comida e Cozinha (Ed. Martins Fontes), “as proteínas do glúten formam longas cadeias que aderem umas às outras. Quando secas, são imóveis e inertes. Quando umedecidas (com água, leite ou gorduras), podem mudar de forma e permitem a modelagem dos pães, aprisionando o ar da fermentação”.
(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso referente aos meses março, abril e maio de 2018 – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).
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