Cafezal •
“O café é um exemplo concreto de porque devemos preservar a biodiversidade”, diz botânico inglês
Por Cristiana Couto
Santo Graal ou El Dorado? Não importa a metáfora sugerida para uma descoberta científica importante. No mundo do café, ambos os termos parecem descrever bem o trabalho incansável do botânico Aaron Davis, chefe de pesquisa em café no Royal Botanic Gardens, em Kew, Londres, e uma das maiores autoridades no mundo em espécies de café.
Com mais de duas décadas de estudos na área, que incluem a identificação e a classificação de espécies de café, além de estudos moleculares e outros que envolvem conservação de espécies e seu desenvolvimento sustentável, Davis vem colocando a importância das espécies selvagens na ordem do dia.
Ele já descreveu vinte espécies do grão e revisitou a taxonomia do gênero Coffea. Em 2018, tal qual um caçador da arca perdida (outra metáfora), Davis liderou um estudo coletivo que reidentificou a rara espécie C. stenophilla crescendo em florestas (ameaçadas) de Serra Leoa, na África Ocidental, onde foi historicamente cultivada há um século. “É uma espécie que quebra as regras, pois produz, em baixas altitudes, um café semelhante ao arábica e suporta períodos de seca mais longos do que os canéforas”, explica o botânico à Espresso.
Certo de que a biodiversidade do café é o caminho para a sobrevivência e evolução da indústria cafeeira diante das mudanças climáticas, Davis avança para além de publicações científicas e de depoimentos em grandes veículos midiáticos que buscam respostas para os desafios atuais do setor. “Em um momento em que o foco está voltado para a segurança alimentar e a superação de déficits de renda para os agricultores, é preocupante que as matérias-primas [cafés] para possíveis soluções estejam altamente ameaçadas de extinção”, escreveu ele, em artigo na Nature, publicado em 2022.
Por isso, entre seus projetos recentes está o trabalho conjunto com comunidades agrícolas de Serra Leoa para desenvolver o cultivo de C. stenopyilla, na esperança de que uma indústria nacional beneficie os produtores locais. Davis acredita que, em breve, esta e outras espécies, como liberica e excelsa, estejam no mercado como um produto de valor. A seguir, a entrevista com o botânico, feita por email.
Espresso: Você é amplamente reconhecido como um dos principais especialistas em taxonomia, conservação e resiliência climática das espécies de café. O que despertou seu interesse pelo café e como sua trajetória profissional nos Royal Botanic Gardens se desenrolou?
Aaron Davis: Meu interesse por café começou em 1996, quando eu era um pesquisador de pós-doutorado e estava investigando as espécies de café selvagens de Madagascar. Fiz parceria com o eminente botânico de Madagascar, Franck Rakotonasolo, e, ao longo de dez anos, viajamos extensivamente pelo país estudando as espécies de café em seus habitats naturais.
Foi um período de grande entusiasmo, principalmente porque havia muitas novas espécies interessantes a serem descritas. Descrevemos mais de 20 novas espécies, só de Madagascar. A partir daí, passei a estudar as espécies selvagens da África e da Ásia, trabalho que faço até hoje. Em 2010, comecei a me interessar e a me preocupar com o café e as mudanças climáticas. Desde 2018, meu trabalho tem se concentrado em usar espécies de café selvagens e pouco exploradas para desenvolver opções de cultivo resistentes ao clima para os produtores de café.
Como as mudanças climáticas estão afetando, de maneira específica, as espécies de café?
As mudanças climáticas estão afetando negativamente as espécies de café selvagens devido à perda de adequação climática para seu crescimento e sua reprodução, embora a principal ameaça à sua existência seja o desmatamento e a perda de habitats naturais. O cultivo de café está sendo impactado de várias maneiras, principalmente pelo aumento das temperaturas, além da duração, severidade e imprevisibilidade dos episódios de seca. Chuvas intensas e intempestivas também têm sido um grande problema.
Que medidas estão sendo propostas para mitigar esses efeitos?
Em termos de adaptação, os produtores estão modificando suas fazendas, onde isso é possível e acessível. Por exemplo, eles estão irrigando ou adicionando sombra aos cultivos, e alguns estão plantando outras variedades ou diferentes espécies de café (se disponíveis) ou, até mesmo, migrando do café para outras culturas. O café também está se deslocando geograficamente, com novas áreas de cultivo estabelecidas em regiões mais frescas e úmidas, principalmente em altitudes mais elevadas.
Seu trabalho destaca a importância das espécies de café selvagens para enfrentar os desafios das mudanças climáticas. Quais espécies têm potencial para serem cultivadas em climas mais quentes e secos?
Muitas espécies podem ser cultivadas com sucesso em temperaturas mais altas em comparação com arábica e canéfora, mas a maioria tem baixa produtividade – ou seja, não são aceitáveis para a maioria dos produtores – e produzem cafés que não seriam aceitos pela maioria dos consumidores. Atualmente, estamos focando principalmente em três espécies: excelsa, liberica e stenophylla, mas também estamos pesquisando várias outras. Sabemos que excelsa e liberica podem performar bem ao longo da cadeia de valor, especialmente a excelsa.
Você frequentemente menciona que o mercado de cafés precisa se adaptar a novas espécies e práticas agrícolas. Quais são os maiores desafios que os produtores enfrentam ao adotar espécies menos conhecidas com potencial de cultivo?
Um dos principais desafios é o acesso ao material – sementes ou mudas – para o plantio. Há também o custo de aquisição do novo material e a necessidade de atender aos participantes da cadeia de valor já estabelecida. Além disso, enfrentamos o desafio de que algumas dessas espécies alternativas não são reconhecidas pelo mercado relacionado a commodities, e não existem ainda protocolos específicos de classificação e degustação.
Você crê que as variedades selvagens de arábica e canéfora são cruciais no contexto desafiador do aquecimento global?
Eu diria o oposto. Elas são úteis para melhorar a resistência a doenças, aumentar a produtividade, melhorar o sabor e desenvolver a diversidade sensorial do café, mas não para desenvolver potencial de resiliência climática.
Porque a conservação de espécies selvagens de café é importante e quais tipos de conservação existem hoje?
É bem simples: a conservação é importante para a sustentabilidade na cafeicultura porque esses são os recursos para o desenvolvimento de novas variedades de café. Na Etiópia, existem reservas florestais dedicadas a conservar a diversidade genética do café arábica, como as Reservas da Biosfera de Yayu e Kafa. Populações de outras espécies selvagens estão em áreas protegidas, como parques nacionais. Há, também, coleções de germoplasma de café selvagem, que contêm uma gama limitada de espécies de café, mas a manutenção desses bancos de genes é difícil e cara. Com pelo menos 60% das espécies de café ameaçadas de extinção, as medidas para proteger as espécies de café são, atualmente, extremamente inadequadas.
Quais são as principais razões para a taxa de risco de extinção de cafés (60%) ser tão alta em comparação a outras culturas?
Uma das principais razões é que muitas espécies de café têm populações pequenas e áreas de distribuição restritas. Algumas espécies estão confinadas a uma única floresta ou trecho de floresta, por exemplo.
As espécies são geralmente difíceis, caras e arriscadas de conservar fora dos bancos de germoplasma ativos. Por quê?
Mesmo que populações de café selvagem existam em áreas protegidas, elas ainda estão em risco. Invasões para cultivo e habitação, extração de madeira e gestão inadequada são problemas comuns enfrentados pelas áreas protegidas no mundo. Cuidar dessas áreas protegidas tem um custo alto. Basta observar os problemas manifestados na COP16 [Davis refere-se à conferência de biodiversidade da ONU, em 2 de novembro em Cali, Colômbia, em que houve pouca evolução em acordos sobre biodiversidade, como a implementação do Marco Global de Biodiversidade Kunming-Montreal, com apenas 22% dos países envolvidos apresentando novos planos devido a limitações de tempo e financiamento].
Sobre o alto risco de extinção das espécies selvagens, quais delas devem ser priorizadas para conservação e desenvolvimento de cultivo?
Idealmente, seria bom conservar todas as espécies. Se a prioridade for para o desenvolvimento de cultivos, seriam os dois grupos, dos três que classificamos, chamados grupos de prioridade 1 e de prioridade 2 que, basicamente, englobam todas as espécies africanas [O grupo de prioridade 1 é composto pelas espécies arábica, canéfora, liberica e eugenioides, e inclui suas variantes cultivadas e selvagens. O segundo grupo prioritário tem 38 espécies, e inclui todas as outras espécies africanas].
No Brasil, há um crescente reconhecimento da importância de revisitar cafés “esquecidos” em bancos de germoplasma ativos. Como isso está acontecendo globalmente?
Coleções de germoplasma ao redor do mundo, hoje em dia, estão examinando quais espécies suas coleções contêm, além de arábica e robusta. No Royal Botanic Gardens, em Kew, estamos avançando em estratégias, ações, recursos e tecnologia para identificar qualquer uma das 132 espécies de café existentes e, em alguns casos, suas origens selvagens, o que seria um empreendimento essencial para as coleções de germoplasma.
Você mencionou um renovado interesse pela espécie liberica em toda a indústria do café. Por que essa espécie em particular?
Primeiramente, é preciso esclarecer, inclusive historicamente, que o termo liberica inclui dois cafés distintos: o excelsa (Coffea liberica var. dewervrei, ou apenas C. dewevrei) e o liberica (Coffea liberica var.
liberica). Esses dois cafés são mais tolerantes ao calor e à seca do que arábicas e canéforas. A espécie excelsa está ganhando mais espaço do que os cafés liberica, por oferecer melhores retornos aos produtores e ter um sabor mais “semelhante ao café”. Em geral, as notas de cupping são mais altas para excelsa do que para liberica: com processamento cuidadoso, os cafés excelsa podem alcançar mais de 85 pontos. No entanto, alguns cafés liberica são excepcionais, sendo ideais para métodos de preparo em casa e para espressos (meu favorito).
Por que o café liberica, que teve relativo sucesso no final do século XIX, deixou de ser cultivado?
Por três razões. A primeira delas é porque o Brasil estava produzindo tanto café no início do século XX que a competição se tornou intensa para nações produtoras menores. A segunda, porque o café robusta era altamente produtivo e popular entre produtores e comerciantes, preenchendo e expandindo a fatia de mercado no início do século XX. Por fim, o liberica (var. liberica) é mais difícil de processar do que arábicas e robustas e menos rentável, devido às baixas taxas de conversão de frutos cereja para café beneficiado. Some-se a isso o fato de que o excelsa só ficou amplamente disponível no início ou meados do século XX, quando arábicas e robustas já haviam conquistado suas fatias de mercado.
Como esse interesse atual nos cafés liberica está sendo traduzido em ações?
Para excelsa, estamos constatando uma expansão considerável em Uganda e no Sudão do Sul, além de percebermos um interesse crescente no Vietnã, na Tailândia e na Indonésia. Para liberica, a expansão é claramente visível na Malásia (incluindo o estado de Sarawak), enquanto a produção na África foi reiniciada ou está aumentando em alguns países.
Por que a espécie recém-identificada Coffea stenophylla é considerada uma alternativa para cultivo?
Coffea stenophylla é “a espécie que quebra as regras”, porque produz um café semelhante ao arábica em baixas altitudes (cerca de 400 m acima do nível do mar), onde as temperaturas são muito mais altas do que para o arábica (5 a 6,8 °C mais altas na média anual), e porque pode suportar períodos de seca mais longos do que os cafés canéfora. Essa espécie tem uma produtividade menor do que arábica ou canéfora, mas acreditamos que isso pode ser melhorado. Em duas ocasiões, provadores Q-graders me disseram que o C. stenophylla de Serra Leoa é indistinguível do arábica bourbon cultivado em alta altitude em Ruanda. Concordo totalmente. Na primeira degustação, achei que o café havia sido rotulado ou misturado incorretamente, mas em ambas as ocasiões não havia café de Ruanda na sala de prova.
Existem outras espécies que estão sendo cultivadas ativamente?
O café ibo (Coffea zanguebariae) e o racemosa (Coffea racemosa) são cultivados em Moçambique e na África do Sul. Essas espécies produzem um café de sabor similar, que pode ser excepcional, embora nem todos apreciem. Em muitos países, povos indígenas colhem e preparam espécies selvagens de café pouco conhecidas.
Essas espécies pouco exploradas poderiam criar novas oportunidades comerciais. Como você vê o futuro dessas espécies em termos de aceitação no mercado de cafés especiais?
Algumas pessoas irão gostar ou adorar, enquanto outras não. Com a excelsa, descobrimos que alguns consumidores habituais de café, e até mesmo aficionados por cafés especiais, acreditam que estão bebendo arábica, especialmente em cafés destinados a espressos. Acho que blendar espécies além de arábica com robusta se tornará popular. No Reino Unido, já existem blends de excelsa-arábica e excelsa-robusta no mercado.
Texto originalmente publicado na edição #86 (dezembro, janeiro e fevereiro de 2025) da Revista Espresso. Para saber como assinar, clique aqui.







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