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Quantos pontos tem esse café?
A história do café especial é muito recente, muito mesmo. Neste momento, em que estamos usando cada vez mais essa definição para cafés, acredito que seja importante o resgaste dos conceitos e a discussão sobre o caminho pelo qual estamos indo.
Em 1921, nascia a norueguesa Erna Knutsen, na cidade de Bø, região no condado de Nordland. Aos 5 anos, a família mudou-se para Nova York (EUA). Erna seguiu boa parte da vida sem nem pensar em trabalhar com café. Somente por volta dos 40 anos assumiu o cargo de secretária de Bert Fullmer, na B. C. Ireland, uma empresa de importação de café em São Francisco. Na década de 1970 Erna, já muito interessada no setor, recebeu do chefe a missão de cuidar de um pequeno nicho da empresa, pequenos lotes que não enchiam um contêiner e chegavam a, no máximo, 250 sacas. Apesar de serem quebras de outras importações, esses grãos de “sobra” eram de altíssima qualidade. Por causa disso, Erna passou a comercializá-los em microtorrefações da Costa da Califórnia que começavam a pipocar na região. A ideia deu muito certo.
O passo seguinte foi aprender a provar café. Uma função ainda muito masculina à época. Nas mesas de classificação, depois de muito treino, ela passou a chamar a atenção de torrefadores e compradores americanos. Sua reputação, construída com bastante persistência, atravessou continentes. Em 1974, em entrevista para o tradicional Tea & Coffee Trade Journal, Erna usou o termo “specialty coffee” para definir os cafés que trabalhava, para ela “diamantes”.
A definição batizou um movimento, que já começava nos Estados Unidos e na Europa, de cafés de qualidade, lotes menores, com origem definida e que, depois de quase uma década, ganhou força e levou à criação da Associação Americana de Cafés Especiais (SCAA), em 1982. Ela, participante de todo esse movimento, fundou em 1985 a própria empresa, a Knutsen Coffees.
O mercado evoluiu muito nesses 42 anos, desde que Erna falou em cafés especiais, mas continua muito jovem. O diretor executivo da SCAA, Ric Rhinehart, em artigo de 2009, escreveu: “Microclimas geográficos especiais produzem grãos com perfis de sabor único, a que se referiu Erna Knutsen como ‘cafés especiais’. Essa noção básica é a premissa fundamental para que, sempre, um café especial seja bem-cuidado, recém-torrado, e devidamente preparado no método a escolher. Essa é a missão em que a indústria do café especial está envolvida há vinte anos e que lentamente vamos ampliando.”
Esse conceito ficou tão forte que, para torná-lo mais ‘palatável’ para o mundo, a SCAA, juntamente com diversos parceiros, desenvolveu a Roda de Aromas e Sabores, em 1997, com o intuito de unificar a linguagem e os parâmetros de avaliação para profissionais. Os pontos de 0 a 100, que o mercado usa hoje, foram a maneira encontrada pelos compradores para balizar a prova de cafés.
Pontuações que, a meu ver, devem ainda ficar no âmbito dos profissionais e que pouco agregam para o consumidor. Este ainda está aprendendo o que é o ‘tal’ café especial. Pular etapas é perigoso. A história recente mostra que é preciso trabalhar mais a origem, as microrregiões, o produtor, a procedência do produto. Só isso poderá nos aproximar mais de quem cultiva o café. A matemática dos pontos, nesse caso, só nos distancia do humano que há por trás daquele grão de café. Menos informação de pontos e mais informações sobre quem produziu, quem torrou, quem preparou.
Erna, hoje com 95 anos, declarou ao jornalista Mark Pendergrast, no livro Uncommon Grounds: The History of Coffee and How It Transformed Our World, que o café “foi o maior amor que ela teve na vida”. Com certeza ao batizar o café como especial, ela estava muito mais ao lado da emoção do que da pontuação. Aquela sensação carinhosa de sabores e aromas, das verdadeiras joias, da sua “grand passion”.
*Mariana Proença é jornalista. Em 2006 assumiu a direção de conteúdo da Espresso e, meses depois, o café já tinha virado uma paixão, que dura até hoje. Nesta coluna ela aborda diversos assuntos e experiências sobre o tema.
Fale com a colunista: mariana.proenca@cafeeditora.com.br
(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).
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