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O café e o carioca
Por Cristiana Couto
Em 1808, a chegada da família real e da corte portuguesa ao Brasil transforma profundamente a vida de seus habitantes, especialmente a dos que vivem na cidade do Rio de Janeiro. O impacto do comércio global foi visível com a abertura dos portos, no mesmo ano, que estreitou o contato entre o Brasil e a Europa, facilitando o intercâmbio de mercadorias, como o café.
O café começa a ganhar importância como item de exportação e a consolidar-se como um produto essencial para a economia do país, especialmente a partir de 1820.
Muitos viajantes europeus que chegaram ao Brasil nesta época documentam suas impressões sobre a bebida. Alguns deles mencionam o papel crescente do café na economia brasileira, especialmente à medida que a cultura cafeeira se expande nos anos subsequentes. Mas os visitantes estrangeiros destacam, também, o papel que o grão tem no desenvolvimento cultural e social do país.
Já bastante consumido em toda a Europa e nos Estados Unidos, o café começa a ser produzido em larga escala no Brasil, e os estrangeiros passam a descrever as imensas plantações e os primeiros impactos desse ciclo na urbanização e modernização das regiões produtoras.
Entre esses visitantes havia comerciantes, artistas, diplomatas, escritores e naturalistas. Estes últimos vinham de vários países com o objetivo de desvendar cientificamente não só a natureza brasileira, mas também os homens que habitavam o país.
Por volta de 1812, informa a historiadora brasileira Ana Maria Martins em seu livro História do Café, o inglês John Mawe registra a presença da planta na região da Mantiqueira. Outro depoimento sobre o cafezal e seu impacto na paisagem brasileira é dado pelo naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, em seu trajeto entre o Rio de Janeiro e São Paulo, em 1819. “Quanto mais me aproximo da capitania do Rio de Janeiro, mais consideráveis se tornam as plantações”, nota. “Há apenas uns vinte anos que se começou por aqui a cultivar o café que hoje faz a riqueza da zona.”
De fato, no final do século XVIII, os cafezais eram poucos, plantados em chácaras e quintais. Por isso, seus grãos eram oferecidos como produto raro, um verdadeiro luxo para as mesas mais refinadas – e com todo o imaginário que se criava em torno de um item vindo de um lugar tão distante e exótico como o Oriente.
Afinal, após a chegada da família real portuguesa, o Rio de Janeiro absorveu, ainda mais, os reflexos da “civilização e cultura da velha e educada Europa”, como vários estrangeiros se referem ao “velho continente” em contraste com os “trópicos”. Para se ter uma ideia, segundo o historiador Luiz Felipe de Alencastro (no primeiro capítulo do segundo volume da coleção História da Vida Privada no Brasil), a chegada da corte trouxe consigo, nos anos seguintes, mais de 15 mil pessoas – em 1821, o Rio de Janeiro conta com 79 mil habitantes, contra 43 mil em 1799.
Maria Graham, escritora britânica que esteve no Brasil entre 1821 e 1823, faz diversas observações sobre a cultura, a sociedade e o comércio do país – e a influência europeia, assim como seu valor superior em relação aos países do “novo mundo”, é bastante clara. Em seu livro Journal of a Voyage to Brazil (Diário de uma Viagem ao Brasil) ela traz um retrato amplo de suas experiências e percepções da vida urbana no Rio de Janeiro e de suas interações com figuras importantes da época. E o café não ficaria de fora.
Uma visita à ópera, na parte “alta” da cidade e cuja vista era a “mais magnífica imaginável”, Maria Graham relata como “as senhoras e os cavalheiros portugueses, decididos a esquecer o palco por completo” – segundo ela, os atores eram “ruins” e a orquestra, “tolerável” –, ficavam “rindo, comendo doces e bebendo café, como se estivessem em casa”.
No começo do século XIX, são comuns as descrições do consumo de café pela elite carioca após o jantar, depois do serviço de um vinho do Porto ou da Madeira. “Terminado o seu jantar, tem por hábito as nossas classes abastadas tomarem café”, escreve o artista francês Jean-Baptiste Debret em sua obra Voyage Pittoresque et Historique au Brésil (Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil).
Debret é um dos que mais detalha a vida cotidiana da cidade do Rio de Janeiro – talvez por ter permanecido por muito tempo na capital, entre 1816 e 1830, quando veio ao país como integrante da missão artística francesa para estabelecer a Academia de Belas Artes no Rio de Janeiro.
Diz ele sobre a presença dos estrangeiros e as mudanças de hábitos na cidade: “O grande número de estrangeiros, duplicando a população do Rio de Janeiro, aumenta consideravelmente o consumo atual do leite, o qual, em combinação principalmente com o café e o chá, é de uso generalizado […]”.
Em História do Café no Brasil e no Mundo, o estudioso José Teixeira de Oliveira informa que, em 1792, a cidade já contabiliza 32 casas de café, embora reclame não haver nenhum registro de como seriam esses estabelecimentos. “É desoladora a falta de informações sobre a vida urbana no Brasil colônia […]. Ninguém fixou para a posteridade a imagem daqueles cafés”, avalia.
Debret relata a existência dos cafés no que era, então, o largo do palácio. Lugares de encontro “de todos os estrangeiros”, dois deles eram cafés franceses.
A influência dos europeus nas primeiras décadas do século XIX estimula, ainda mais, a elite carioca a seguir os modos de vida do velho continente. Por outro lado, a escalada do aumento na produção do café faz com que a bebida se torne cada vez mais popular na cidade.
Com efeito, relata Debret, “todos os dias, inúmeras vendedoras de café torrado circulam nas ruas da capital”. Essas vendedoras de ganho, como as mulheres escravizadas ou libertas eram chamadas, não deixavam, porém, de diferenciar o produto para a venda. “As que pertencem a senhores opulentos ou cuidadosos vendem o café em pó dentro de pequenas latas com tampa”, relata o francês. Já as “mais modestas contentam-se em transportar o café em vasilhas de porcelana ou barro e medi-lo com uma colher de pau ou de estanho” (o moinho, ainda pouco utilizado na capital, era substituído por um grande pilão de madeira).
A relação da bebida com a sensação de alerta que ela gerava parece não ter passado despercebida pelos proprietários rurais brasileiros. No interior, relata Debret, os cafeicultores acrescentam, nos almoços “de seus trabalhadores negros, uma infusão de café sem açúcar”.
De maneiras e propósitos diferentes, a bebida atravessou toda a população carioca a partir das primeiras décadas do século, avançando cada vez mais pelo país conforme as plantações se espraiam pelo território e as condições de transporte melhoram. Os relatos de viajantes europeus sobre o café são uma documentação rica para essa época e revelam, portanto, a conexão cultural que se desenvolveu em torno dele no Brasil.
Coluna originalmente publicada na edição #86 (dezembro, janeiro e fevereiro de 2025) da revista Espresso. Para saber como assinar, clique aqui.
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