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Café Nice e a “bolsa do samba”
“O fazedor de sambas precisa resolver o problema da média e do pão com manteiga. E a fome inspira-o. Ele, então, faz um samba. E conta no samba que a cabrocha fugiu… e aparece-lhe para seu tormento, como uma visão nas notas de lua… É mentira do fazedor de sambas.
Cabrocha quer dinheiro, e ele não o tem. Quem não tem dinheiro, não tem cabrocha, que é objeto de luxo. A visão que o persegue não é da cabrocha e, sim, a visão de um tal são Manuel, que é o dono do cortiço onde mora o fazedor de sambas e que quer receber uns atrasados”.
Este é o trecho inicial de uma matéria assinada pelo compositor e maestro brasileiro Custódio Mesquita, em 6 de janeiro de 1940, no Dom Casmurro. Na página 8 do periódico carioca, a história que queremos contar já está expressa no título: “Fazedores e compradores de sambas”. Mesquita segue:
“E dessa miséria é que nasce a inspiração, que ele vai vender ao comprador de sambas, condenada em alguns versos banais, chulos e quebrados. A propriedade do comprador logo se faz notar. A anemia do fazedor também. E assim vão vivendo, fazedores e compradores.”
Segundo Mesquita, um “inteligente” cronista de época apelidou o Café Nice de “bolsa do samba”. O Café Nice, apesar de atualmente quase esquecido, foi um dos locais mais importantes para a música brasileira, principalmente o samba e a bossa nova. Mas, antes de penetrarmos nos meandros dessa história, vejamos mais um pouco da narrativa de Mesquita:
“Em algumas mesas do elegante café da avenida [saberemos em breve qual é], fazedores, com os dedos, tamborilam no chapéu de palha e cantarolam baixinho. Estão ‘fazendo’. Em outras mesas, os compradores, geralmente bem vestidos, tudo observam, fingindo despreocupação. De repente, o fazedor dirige-se ao comprador, segreda-lhe no ouvido e senta-se junto ao ‘capitalista’. Confabulam misteriosamente por algum tempo. O comprador mete a mão no bolso com superioridade e, abrindo a carteira, retira vinte mil réis (notas grandes!), que dá, arrogantemente enfadado, ao fazedor.”
O fazedor do samba, conta nosso autor, volta ao seu lugar, enquanto o comprador pede ao garçom um café pequeno e saboreia-o calmamente. Tinham dito a ele, continua Mesquita, que o café é um ótimo estimulante, e um homem de negócios precisa sempre de “estímulo e estimulantes”. Já o fazedor pede uma média com pão e manteiga, pois lhe disseram que quem “trabalha com a cabeça” precisa alimentar-se bem.
Aberto em 1922, o Café Nice, com suas mesinhas de mármore e cadeiras de palhinha, tornou-se icônico entre as décadas de 1930 e 1940 por ser frequentado por grandes compositores. Entre eles figuravam nomes como Ary Barroso, Noel Rosa, Silvio Caldas, Aracy de Almeida, Francisco Alves, Benedito Lacerda, Orlando Silva, Carlos Galhardo, João Petra de Barros, Paulo Apaché, Luis Barbosa, Mario Reis, Carmen Miranda – esta, só ocasionalmente)… Enfim, a lista é longa. Como também é a matéria de Mesquita, mas que já está no fim. Vejamos:
“As estações de rádio lançam aos quatro pontos cardeais o samba [do fazedor de que falávamos], que faz um grande sucesso. O comprador tem um lucro esplêndido, e o fazedor continua no miserê… Toda a vez que o speaker anuncia o nome do autor do samba de sucesso (que não é o nome do fazedor e, sim, do comprador), uma punhalada forte e segura, vibrada pelas mãos do ódio e da fome, atravessa o estômago do infeliz fazedor de sambas. E, então, ele jura que nunca mais venderá a sua produção. Mas, no dia seguinte, lá está, humildemente, na mesa do comprador, o fazedor procurando negociar a sua última produção, que se intitula ‘Quebrei a jura’…”
Mas, embora fosse um clássico carioca, o Nice não nasceu para a fama. Pelo menos, não logo de cara. Quando o Nice já não era mais o quartel general do samba, uma matéria do Correio da Manhã de 1950 contava um pouco da sua história até os tempos áureos dos anos 1930 e 1940.
Em 1922 e com o nome de Casa Nice, o café era administrado pela firma Silva Pedreira & Cia e localizado em área nobre – em plena avenida Rio Branco, 174, no Largo da Carioca, onde hoje está o edifício da Caixa Econômica Federal. Segundo o gerente do café na época, entrevistado na reportagem, a Casa Nice, no início, era “empafiada”, uma “autêntica representante da casaca e cartola.”
Era lá que as mocinhas da alta sociedade, trajando vestidos de seda japonesa confeccionados em Paris, iam acompanhadas de suas “babás” (pessoas que iam vigiá-las por questões de decência). Sentadas no Nice, tomavam seus cafés e sorriam disfarçadamente por trás de leques para os bonitões grã-finos e faziam a social.
Mas o ambiente do café começou a mudar no fim da década de 1920, numa dinâmica bastante comum aos cafés e botequins chiques da cidade. Aos poucos, esses locais iam se tornando ponto de boêmios. No caso do Nice, uma boemia artística. A partir da década seguinte (e por uns bons quinze anos), ele foi o grande ponto de encontro daqueles que buscavam emplacar um novo sucesso no rádio ou, apenas, ganhar o dinheiro da semana, vendendo uma ideia de um samba novo para algum engravatado da rádio.
Da mesma maneira que o Café Papagaio, que também abrigava músicos da boemia carioca, o Nice passou a ser ponto de encontro de compositores e sambistas. Alguns diziam que isso se devia à busca por um ambiente menos intelectual, já que o Café Papagaio, seu concorrente, era também frequentado por escritores e cronistas.
O lugar rapidamente se tornou conhecido como “bolsa do samba”. Um novo sucesso podia estar sendo gestado em meio a um batuque numa caixinha de fósforos, num pires de xícara de café ou num copo d’água. Frequentador assíduo, compositor e também caricaturista e ilustrador, Antônio Nassara fez uma das representações imagéticas mais icônicas do Café Nice ao retratar figurinhas carimbadas do lugar como Lamartine Babo, Ary Barroso, Wilson Batista e Rubens Soares.
Por fim, o Nice sofreu do mesmo mal que todos os cafés brasileiros no período do pós-guerra. A maioria dos donos desses estabelecimentos começou a reclamar dos que faziam o sucesso do próprio estabelecimento. As longas palestras e o processo criativo de horas a fio nas mesinhas ao preço de um café acompanhado de um copo d’água atravancava a rotatividade do negócio que, segundo diziam, já vinha dando prejuízo por conta do tabelamento do preço do café pelo governo Vargas.
Nos anos 1940, o Nice tirou as mesas e instalou um balcão, transformando-se no que passou a se chamar, à época, de “café em pé”. Os antigos frequentadores começaram a rarear, dizendo que era impossível compor um samba tomando café apressadamente no balcão e aos encontrões com pessoas que queriam, também, pegar sua xícara. Mesmo com espaço rotativo, o local acumulou dívidas e sofreu despejo judicial em 1954. O edifício foi a leilão, depois, demolido, e um arranha-céu foi construído no local.
O apego dos frequentadores às mesinhas do Nice era tanto que ao menos dois de seus assíduos frequentadores resolveram adquiri-las para seu acervo particular. Aracy de Almeida e Henrique Foréis Domingues, também conhecido como Almirante, garantiram que um pedacinho da memória do antológico café não se perderia após o despejo. Essa última, por sorte, ainda pode ser apreciada, pois hoje faz parte do Museu da Imagem do Som do Rio de Janeiro.
Bruno Bortoloto do Carmo é doutor em História Social pela PUC-SP, com passagem pela École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris. Pesquisador do Museu do Café de Santos por 13 anos, atualmente trabalha no Museu da Imigração em São Paulo.





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