Chico César: arte em movimento
Seja em forma de livro, seja de canção, o cantor e compositor faz da poesia um elo para se conectar com o mundo
Farinha, rapadura, arroz e um folheto de cordel. Esses eram os produtos que não podiam faltar na lista de compras que o pai do cantor Chico César levava no bolso, toda semana, quando ia à feira na cidade grande. Natural de Catolé da Rocha, no Sertão da Paraíba, a família de Chico valorizava a cultura em todas as suas manifestações, mas principalmente a popular. “Aos 7 anos, eu já era o encarregado de fazer a leitura do cordel à noite, quando toda a família se reunia à luz da lamparina. Meus pais, minhas irmãs e meu irmão adoravam a minha performance declamando os textos”, relembra.
Aos 6 anos, Chico começou os estudos em um colégio de freiras alemãs que fugiram da II Guerra Mundial. Além das disciplinas tradicionais, como Matemática e Língua Portuguesa, sua grade incluía aulas de Música, nas quais aprenderia a tocar flauta doce. Na sequência, veio o violão. “Eu percorria a cidade sempre pedindo para uma ou outra pessoa me ensinar algum acorde. O violão se tornaria meu instrumento inseparável por toda a vida”, revela.
Dos 8 aos 15 anos, o menino Chico passou a trabalhar numa loja de fotos que também vendia discos e livros. Lá, seria introduzido, pela primeira vez, na arte e na cultura formal. “Conheci de Kraftwerk (renomado grupo alemão de música eletrônica) a Luiz Gonzaga. Lia também João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, José de Alencar. Foi uma oportunidade ímpar ter tantas referências nacionais e internacionais ao meu dispor.”
Já sabendo que era músico de corpo e alma, Chico César entrou em um dilema: como fazer para levar o seu sonho adiante na idade adulta? Para conseguir se sustentar, escolheu uma profissão que também lidava com palavras: jornalismo. “Aos 20 anos, já estava formado e comecei a trabalhar no jornal O Norte, dos Diários Associados – veículo criado por Assis Chateaubriand”, conta. “Na sequência, vim para São Paulo trabalhar como revisor. Mas nunca deixei a música de lado. Estava sempre compondo e fazendo shows.”
A Alemanha cruzaria novamente o seu caminho para dar o pontapé inicial na sua carreira. No final dos anos 1980, Chico foi convidado a compor uma delegação de músicos que representariam a cultura brasileira numa viagem pelo país europeu. Apresentou-se em Berlim. “Voltei com esperança e em 1992 já havia deixado o jornalismo”, destaca.
Música viva
Mônica Salmaso, Zizi Possi, Elba Ramalho, Daniela Mercury e Maria Bethânia são apenas algumas das cantoras que gravaram composições de Chico César ao longo dos anos. O interesse de tantos artistas por suas letras e músicas, aliás, ainda o surpreende.
“Eu fico impressionado que minhas poesias sirvam para outras pessoas. Que outras pessoas se interessem pelo meu universo particular. Nunca imaginei que o Sting, por exemplo, um dia gravaria algo meu”, confessa. A música, em questão, foi Soberana Rosa – uma parceria com Ivan Lins e Vitor Martins que se transformou em She Walks This Earth na voz do cantor inglês.
O ofício de compositor seria ainda o elo entre Chico e Maria Bethânia – artista por quem o cantor nutre afeto e admiração. “Quando vai iniciar algum disco, ela sempre me liga e conta um pouco dela, do que está pensando para aquele momento. Às vezes eu busco coisas que já compus e que estão alinhadas a esse universo. Em outras, fico tão impregnado pelas emoções que ela traz que acabo criando algo inédito. Penso que meu último disco, Estado de Poesia (2015), foi baseado nessa relação”, relata.
Engana-se quem pensa, por exemplo, que Chico César só consegue compor e criar em estado de solidão ou isolamento. Como ele próprio diz, sua criação depende de vida em todas as suas manifestações. “Eu preciso de coisas acontecendo ao meu redor. Crio andando nas ruas, vendo televisão, entrando no avião, etc. Quando a composição acontece no avião, por exemplo, eu ligo o microfone do meu celular e canto baixinho, para registrá-la, mas sem atrapalhar a pessoa que está na poltrona ao lado”, confessa.
Algumas das músicas mais conhecidas do cantor nasceriam de situações inusitadas. À Primeira Vista – que ficaria imortalizada na voz de Daniela Mercury, em 1996 – surgiu depois que Chico César tomou “um bolo” do amigo André Abujamra.
“O André morava com a mãe, em Higienópolis (bairro de São Paulo). Eu fui visitá-lo e ele não estava. Esqueceu que marcou comigo e saiu com sua namorada, na época Anna Muylaert (cineasta). Eu andei até o Terminal Bandeira para pegar o ônibus até a minha casa, em Santana. Sentei no último banco e comecei a escrever algumas besteiras. Algo do tipo ‘quando Jânio morreu, eu gostei’. Todas as frases começavam com ‘quando’ e terminavam com ‘quando vi você, me apaixonei”, revela. “Ao chegar em casa, percebi que esse começo e esse fim me davam uma canção de amor. Dispensei as besteiras que havia escrito e comecei a compor”, completa.
Já a parte musical de À Primeira Vista surgiria três dias depois, quando Chico começou a improvisar sons em cima da letra. “Saiu o ‘amarazaia’, que não significa nada, é apenas um som”, conta. “Já vi a Daniela cantando o ‘amarazaia’ e ser acompanhada por 70 mil pessoas. Foi uma experiência linda.”
Erotismo em versos
Quando está compondo, Chico nunca sabe se o que está por vir será um poema ou uma letra de música. “O fato é que tenho poesias que nunca verão uma melodia. E que crio letras que nunca terão música”, diz.
Pois um desses materiais, inesperadamente, transformaria-se em um livro. Trata-se de Versos Pornográficos (Confraria do Vento, 2016), obra com poesias eróticas. “Eu estava morando numa casa de pescadores, localizada numa praia isolada. Ficava muito tempo sozinho e escrevia. Um dia, um rapaz da minha editora ligou e me perguntou se eu tinha algum material. Disse que não, porque nunca vi aqueles versos como algo publicável. Ele insistiu e eu resolvi mandá-los. Ele retornou dizendo que tínhamos um livro”, conta.
O livro seria ainda indicado ao Jabuti na categoria Poesia – honraria que deixou o autor emocionado. “Estava ao lado de autores que admiro, como Ferreira Gullar e Arnaldo Antunes”, ressalta.
Além do Chico César poeta, uma faceta que muita gente desconhece é o Chico César militante cultural. O artista foi presidente da Fundação Cultural de João Pessoa (Funjope), em 2009. De 2011 a 2014 atuou como secretário de Cultura do Estado da Paraíba. “Foi importante fazer o incentivo chegar aonde não chegava, como a artistas da cultura popular e a outros do interior. Inspirei-me muito no Gilberto Gil, quando ministro da Cultura, e saí dessa experiência feliz por ter contribuído com a cultura do meu estado e do meu país”, decreta.
Morando em São Paulo, o cantor tem o café como um fiel companheiro. Um dos seus programas preferidos, inclusive, é tomar um espresso no balcão da padaria. “Esse café no balcão é a cara de São Paulo e você não encontra isso em outro lugar do mundo, seja em Berlim, seja no Rio de Janeiro ou ainda em Catolé da Rocha”, garante.
(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso referente aos meses dezembro, janeiro e fevereiro de 2018 – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).
Deixe seu comentário