Cafezal •
Caminhante faz o caminho
Fomos conhecer as histórias de pequenos produtores brasileiros que focam qualidade e governança e estão prestes a conquistar três selos de indicação geográfica para café: Conilon Capixaba, Montanhas do Espírito Santo e Caparaó
Uma energia diferente toma conta de nós no palco do Coffee of the Year. Abraços, lágrimas e sorrisos encerram cada edição da Semana Internacional do Café. Momentos de tensão para saber quem levará o prêmio. Uma explosão de alegria contagia os finalistas. De cima do palco, como curadora do projeto, é possível sentir o clima de meses de trabalho sendo resumidos ali, naqueles instantes.
Tempos depois lá vamos nós vivenciar a emoção de conhecer de perto o dia a dia dos produtores nas suas casas, e com a missão de mostrar aos leitores os detalhes que os levaram ao topo, entre os melhores do País.
Uma peculiaridade da edição de 2018 foi a conquista dos produtores do Estado do Espírito Santo, tanto na categoria arábica quanto na canéfora. Malas prontas e iniciamos nossa jornada pela capital, Vitória. Nome um tanto sugestivo, não é mesmo?
O café é a principal atividade do estado e gera 400 mil empregos. A produção familiar é a cara da cafeicultura de lá e o primeiro item da exportação tem muito valor por onde se anda nas regiões.
Uma das peculiaridades do Espírito Santo é que, apesar de ser um estado de território pequeno (é o quarto menor do Brasil), ele produz as duas espécies de café: arábica e canéfora. Recentemente, em julho, as quatro principais cooperativas do estado fundaram a Federação dos Cafés do Estado do Espírito Santo (Fecafés), composta de Cooabriel, Coopeavi, Cafesul e Coopbac. As cooperativas atuam como apoiadoras e gestoras da Federação com a missão inicial de gerir a IG (Indicação Geográfica) do Conilon Capixaba.
Mas a história nem sempre foi assim. As adversidades levaram a região a buscar a espécie Coffea canephora, que é a mãe de variedades como conilon e robusta. Vindas do continente africano, essas plantas se adaptaram ao território brasileiro e são responsáveis – junto ao arábica – por estarmos no topo do mundo na produção de café.
Se o prêmio tem só um vencedor em cada categoria, é na viagem para a região que descobrimos que quem ganha representa um projeto muito maior e de muitos anos de trabalho.
Na década de 1970, na cidade de São Gabriel da Palha, nascia a Cooperativa Agrária dos Cafeicultores de São Gabriel (Cooabriel), que hoje, com 6 mil cooperados, percebeu a importância de investir na qualidade do conilon. Mas o conilon chegou ao estado somente nesses anos da fundação da cooperativa.
O grande responsável foi o produtor Dario Martinelli, que formou o primeiro viveiro de mudas do conilon e incentivou o plantio doando mudas aos cafeicultores. Seu objetivo era diminuir o êxodo rural na região.
Fazenda Venturim
Entre os produtores influenciados pelo pioneirismo de Dario estava Bento Venturim, de São Domingos do Norte, próximo a São Gabriel da Palha. Ele assumiu o legado do avô, que começara a primeira propriedade em 1923, e do tataravô Amadeu, que veio da Itália. Até 1960 a região tinha bourbon, uma variedade do café arábica.
Para garantir que o conilon teria mercado para essa nova fase de plantio, o então empresário Jônice Tristão – atual Grupo Tristão – afirmou à época que compraria o café. Em 1960 começa a exportação da empresa.
Sempre acompanhando tudo de perto, Bento vê oportunidades. Segundo o filho Lucas Venturim: “na época, com a queda do café na região, a migração para Rondônia [que iniciava a produção] foi muito alta: Tinha até um ônibus que saía direto para Cacoal.”
A família Venturim resolveu ficar no Espírito Santo. Bento comprou a atual propriedade em 1980 e dali nem poderia imaginar o que aconteceria nesses quarenta anos. Os filhos Isaac e Lucas hoje tocam a fazenda. Em 2000, o mesmo Dario que doava mudas instala um equipamento de descascar café junto com outro produtor, João Carlinhos: “Dario foi visionário duas vezes”, lembra Isaac. Com isso Dario ganhava todos os concursos de conilon. Mas Bento, sempre seguindo os passos dele, também compra um lavador e um descascador. Em 2012 Bento vence o concurso da Cooabriel.
Chegar à Fazenda Venturim é encontrar dois irmãos e uma família repleta de orgulho, e histórias para contar. Não é para menos. O ano de 2018 foi de grande virada para eles. Depois de todo o investimento da família, chegou a hora de eles terem reconhecimento no mercado internacional e, é claro, no nacional, tão imaturo ainda para o conilon de qualidade.
Tudo começou em 2016 quando, na Semana Internacional do Café, foi criada a categoria para cafés canéfora. Entre os dez melhores naquele ano, os irmãos Venturim – devidamente uniformizados – vieram pedir mais atenção ao conilon dentro do evento. O primeiro passo da inclusão da espécie no concurso havia sido dado, mas eles queriam mais.
A insistência deles fez com que mais produtores quisessem participar e a concorrência saudável com Rondônia fez a disputa ficar acirrada. Em 2017 mais uma vez entre os dez. Em 2018 veio o segundo, o terceiro e o quinto lugares, amostras em nome de Isaac, Lucas e do pai, Bento – que, contam testemunhas, estava prestes a ir embora minutos antes do anúncio do prêmio, de tão nervoso que ficou.
A ansiedade trouxe uma explosão de alegria, e neste ano a nova colheita veio repleta de esperança, com microlotes em terreiros suspensos, pesquisas em parceria com as universidades, e rastreabilidade que identifica a procedência das 4 mil sacas nos 97 hectares de café. Hoje são mais de 35 materiais genéticos, que possibilitam trabalhar dentro da propriedade com momentos distintos de maturação, sabores e a busca incessante por novas técnicas. Eles não têm medo de testar. “Para vender conilon você tem que aprender todo o processo”, ensina Lucas. E ele tem posto isso em prática. Até uma pequena cafeteria e sala de provas eles já montaram para receber os visitantes, com máquina de espresso e métodos filtrados. O café já foi para Rússia, Itália, Japão e São Paulo, onde está em duas das mais renomadas cafeterias do Brasil, Santo Grão e Coffee Lab. Eles podem dizer que o primeiro canéfora desses estabelecimentos, foi deles. “A primeira cafeteria a comprar nosso café foi a Soul, de Blumenau. Estamos ‘brigando’ para conquistar o espaço do conilon”, explica Lucas.
Montanhas do Espírito Santo – Brejetuba
Muito já ouvimos falar da cidade de Brejetuba e de toda a região na produção de qualidade. No roteiro passamos por Venda Nova do Imigrante, um dos municípios mais conhecidos pelas festas italianas da polenta e pelo café, é claro. Imigrantes chegaram à região nos anos de 1890.
Encravadas em meio às montanhas, as pequenas propriedades se destacam na paisagem ao longo das estradas de terra. Quando parece não ser mais possível ir em frente, avistamos cafezais, bananeiras e palmeiras no topo de um morro. Mesmo com o dia já esquentando, por ali a temperatura ainda se mantinha amena nos 1.100 metros de altitude.
Na casa térrea – com uma espaçosa varanda – fomos apresentados à família Menegueti. Eu já os conhecia pelas histórias da barista e empresária Isabela Raposeiras, do Coffee Lab, que tem uma parceria com a família que vem de 2010.
O Sítio Rancho Dantas é impecável. Os terreiros suspensos para colocar o café estavam aguardando a maturação dos frutos. Tudo muito limpo e catalogado. Ali vive o casal Joselino e Evanilde, o filho Leidiomar e sua esposa, Eluze. Apenas quatro pessoas fazem todo o trabalho em 14 hectares, sendo 3,4 deles de café. A família, que começou como meeira, está há vinte anos na região.
Referência na região quando o tema é qualidade, Fabiano Tristão, engenheiro agrônomo do Incaper, que atende a origem afirma que “seu Joselino e família são uma grande inspiração e deram visibilidade aos cafés finos. Não tem ninguém que vá mexer com café especial e não venha aqui”. Os números confirmam. Por ano são mais de mil pessoas que visitam o sítio: “O café traz uma proximidade de pessoas de vários estados e países”, conta o reservado Joselino.
Tudo começou em 2007 quando Joselino resolveu trocar parte da lavoura pela cultura da variedade catuaí. Em 2010, na primeira colheita desse lote de catuaí, foi campeão do Prêmio Café Sustentável de Brejetuba (ES) com cinco sacas. A realidade dos preços, porém, não o incentivou a continuar. Já decidido a desistir do café, o produtor recebeu a visita de Isabela, que, assim que conheceu a enorme qualidade, se ofereceu para comprar toda a produção da safra seguinte por mais que o dobro do preço que ele comercializava. Se o café tivesse uma avaliação ainda mais elevada, ela pagaria até R$ 1.200 a saca. Foi o que aconteceu. Hoje a família produz 40 sacas, todas de café acima de 85 pontos pela escala de avaliação da Specialty Coffee Association (SCA). Árvores nativas e frutíferas sombreiam os pés de café, que passa por processamento lavado após ser despolpado na propriedade. Três terreiros suspensos cobertos por estufa recebem os grãos, e os microlotes são identificados de forma minuciosa. Segundo Evanilde, “seguimos tudo o que é orientado. Estamos sempre aprendendo. O café especial vem com o que a natureza oferece”.
A região, que tem dezesseis municípios, responde por 78 mil hectares e, em 2018, colheu 2 milhões de sacas, sendo 633 mil de cafés especiais. Em busca da Denominação de Origem, foi criada, em 2017, a Associação de Produtores de Cafés Especiais das Montanhas do Espírito Santo (Acemes). Para o atual presidente, Rodrigo da Silva Dias, um dos objetivos da criação da Acemes é organizar os produtores para que somente aqueles que seguirem o Currículo de Sustentabilidade e o Programa Cafeicultura Sustentável possam usar o selo da região: “Isso será exigido para que o café especial produzido possa ser comercializado com o signo distintivo da IG Café Montanhas do Espírito Santo”. Os programas promovem acesso à tecnologia, cursos, palestras e o trabalho de análise sensorial do café. “É um trabalho longo, mas a escolha mudou a minha vida e a da minha família”, finaliza Joselino. Hoje o filho Leidiomar está construindo sua casa na propriedade, bem em frente ao terreiro, e traça muitos planos no sítio com a esposa. É a sucessão se realizando.
Cordilheiras do Caparaó
Subimos mais um pouco para encontrar uma das famílias mais presentes nos últimos anos quando o tema é café especial. Os Miranda Vieira conquistaram o segundo lugar no Coffee of the Year 2018 na categoria arábica. Na Fazenda Alegria, que hoje tem a marca Café Cordilheiras do Caparaó, vive a família do casal Deneval e Rosa. A propriedade fica aos pés do Parque Nacional do Caparaó, na cidade de Iúna, e eles são a quarta geração a produzir o grão. “Quando eu comecei a conhecer outros produtores, vi que tinha algo muito comum entre a gente”, conta o sorridente Deneval. Influenciado pela história de Joselino, de Brejetuba, ele pensou que deveria fazer algo novo, “ou ia embora”. A produção baixa da região, por causa do clima e da maturação desuniforme, estava desanimando a família. “Meu filho me disse um dia: Pai, não vou ficar aqui”. Aquilo mexeu com Deneval e o fez voltar a estudar o que era possível fazer.
Em 2015, Deneval foi pela primeira vez para a Semana Internacional do Café (SIC) e pôde conhecer um mundo novo. “Percebi que o produtor para produzir café especial, tudo em torno é especial”, explica Deneval na sua simplicidade. A esposa, Rosa, topou o desafio e, junto com os filhos, Deneval Jr., Rosival, Douglas e Valzilene, eles começaram a ampliar ainda mais o conhecimento. Cursos de torra, degustação e métodos de preparo levaram a família a investir na própria marca e começar a vender o produto a cafeterias no Brasil e no mundo: “França, Escócia e Austrália”.
Rosa fala muito em gratidão durante nossa conversa: “Consegui passar e vencer. Sou muito respeitada por ser produtora de cafés especiais. A mulher nunca foi muito respeitada e hoje tenho orgulho de dizer quem sou e colher esses frutos”. Casados há 29 anos, Deneval e Rosa veem a família crescer com a chegada da neta Ester, filha de Douglas e Roberta.
No sítio eles construíram uma área para receber as pessoas, a “Casa do Café”, onde preparam a bebida com muito carinho a quem visita: “A gente trabalha por amor”, completa Rosa.
Ninho da Águia
A história de Clayton Barrossa Monteiro há muito já se distanciou daquela do surfista que morava em São Paulo. Há exatos 23 anos, o filho de Aides e Shirlei se mudava para o Alto Caparaó, município de Minas Gerais, divisa com o Espírito Santo, e aos pés do Pico da Bandeira.
Desde então a família desenvolve trabalho reconhecido nacional e mundialmente como um dos destaques quando se fala em café especial no Brasil. Com variedades como bourbon amarelo, topázio, catuaí amarelo e vermelho, a Fazenda Ninho da Águia recebeu, só em julho deste ano, mais de 1.300 visitas. Atraídos pelo turismo rural da região, visitantes vêm conhecer o café e saem da propriedade encantados com a aula de cafeicultura.
Bicampeão do concurso Coffee of the Year (2014 e 2015), Clayton tem noção desse pertencimento e destaca esse trabalho como ímpar na educação de um público que não é “do café”, como ele define. São turistas que acabam inseridos nesse mundo do especial e percebem, ao longo do passeio, a riqueza de informações do lugar.
“A beleza natural daqui é indiscutível. É um privilégio estar na Serra do Caparaó e nossa vocação é o turismo ecológico e rural”, explica Clayton. Ao longo das minhas visitas à propriedade em outras ocasiões, vejo a consistência desse trabalho da Ninho da Águia. Com a agroecologia, hoje eles plantam junto aos pés de café, banana, abacate, cedro, mogno e ipê, entre outras árvores. O processamento do café é natural e em terreiros suspensos é feita a separação dos lotes, que são torrados por Markim Gomes na própria fazenda, ou exportados ainda crus para torrefações nacionais e internacionais, para países como França, Alemanha e Estados Unidos. Os 25 hectares de café estão em uma altitude média de 1.300 metros e temos de concordar com ele: “É um estilo de vida ser produtor ali”.
Recanto dos Tucanos
E, por falar em estilo de vida, depois de três dias viajando pelas fazendas, chegamos ao Sítio Recanto dos Tucanos. Lá realmente esses pássaros se recolhem, pois a propriedade fica no topo da Serra do Caparaó, a uma altitude de 1.500 metros. O acesso já vai indicando que o lugar terá uma vista de tirar o fôlego. No município de Alto Caparaó, a família Valério começou, há quatro anos, a trabalhar com a agricultura sintrópica (veja o boxe).
Com 3 hectares de café, que convivem com mais de cem variedades de outras plantas, no ano passado a família conquistou o sexto lugar no Coffee of the Year. A colocação entre os dez melhores do Brasil fez com que todos recebessem uma energia e um incentivo para continuar o trabalho. Willians Valério Júnior começou a estudar o tema e convenceu os pais, Willians e Aparecida, a cultivar seguindo os preceitos da sintropia. Eles já estão há 32 anos no sítio e vieram do Rio de Janeiro com o objetivo de mudar de vida.
Ao lado do cafezal, a família está construindo uma área para receber as pessoas e servir o café do sítio. Empolgado, Willians Júnior explica os planos do local, que tem estrutura para ser uma cafeteria. Com vista panorâmica para a Serra do Caparaó, a paisagem é um convite e tanto para tomar a bebida.
“Desde o início buscamos trabalhar na produção do café, sem pensar na quantidade nem no valor econômico e, sim, de uma forma mais sustentável e sem depender de um tipo só de agricultura. Nesse sistema a gente produz um solo melhor e mantém o ecossistema cheio de vida”, explica Willians.
Como o sistema é novidade na região, há estudantes e profissionais de Agronomia morando na propriedade para aprender sobre o cultivo do café e auxiliar nas tarefas. Ali são realizados cursos e o intuito da família é fazer crescer o interesse pela agricultura sintrópica. Entre esses moradores estão Tarciso Mazzer Junior, de Tietê (SP), e Paola Tojeiro Chiaratto, de Ourinhos (SP). Enquanto caminhamos para conhecer o projeto, Paola, engenheira agrônoma, explica: “Quanto mais matéria orgânica no solo, melhor. Não existe solo ruim, nós é que o degradamos”.
Sítio Santa Rita
A região da Serra do Caparaó tem nomes de cidades muito sugestivos. De um lado Espera Feliz, do outro Dores do Rio Preto. É nessa divisa entre Minas Gerais e Espírito Santo que mora a família Lacerda. São muitos Lacerdas naquele território. Mas esse lugar, especificamente, é do seu Tarcísio, do Jhone, da Miriam e do Fred. Ao chegar ao Sítio Santa Rita, onde fica A Cafeteria, é possível ver de longe o capricho nos detalhes que tem essa família. Cada coisa, como a placa que ajuda a identificar o local, é criada pensando no bem-estar do visitante.
Nada mais natural que eles tenham optado por investir na hospitalidade como serviço: cafeteria, hospedaria e torra do café, tudo ali, no mesmo lugar, desde 2014. Recentemente eles reformaram o sítio e ampliaram os quartos. Também investiram em novos equipamentos para o processamento do café, cultivado no sítio desde 1972. Todas as funções são bem divididas entre eles, da lavoura à xícara, diariamente, além do humor incrível com que recebem a todos os que chegam a qualquer hora e (até) quando já estão fechando – nosso caso, uma turma de viajantes pelas estradas da região.
A família sediou, em 2017, o Campeonato Brasileiro de Aeropress – o primeiro do mundo (podemos dizer com tranquilidade) dentro de um terreiro de café. Eles levaram mil visitantes ao lugar, com atrações musicais, além de toda a imersão na origem. Neste ano o Campeonato de Aeropress de Portugal, em Lisboa, escolheu o café do Sítio Santa Rita como o oficial da competição.
Atualmente o produtor Jhone Lacerda também vem aplicando o sistema de agrofloresta na propriedade, que está na quarta geração, desde 1896, e que respira toda a natureza e esplendor do Parque Nacional do Caparaó. Para ele, “existe toda uma ciência por trás do café. É um alimento trabalhado com respeito aqui no sítio”.
Fred e Miriam, ciclistas que recebem centenas de pessoas nos fins de semana n’A Cafeteria (dentro do Sítio), investiram em utensílios para esse público que gosta de tomar café nas montanhas ou mesmo na subida ao Pico da Bandeira (veja o boxe). A marca Outdoor Coffee está fazendo sucesso entre os apaixonados por esportes ao ar livre.
Conhecidos pelos cafés emblemáticos e batizados com nomes como Salada de Frutas, Bala de Coco e Castanhas do Brasil, os Lacerda do Sítio Santa Rita podem ser encontrados pelo Brasil e pelo mundo. “Não temos dúvida de que nessa caminhada do café especial estamos dando os primeiros passos”, diz o pai, Tarcísio Lacerda.
Forquilha do Rio
Chegar ao vilarejo de Forquilha do Rio é adentrar uma área de muito orgulho para os pequenos produtores locais. A placa na estrada avisa: “melhor café do Brasil”. As famílias todas se conhecem e se ajudam naquele pedaço de Brasil que fica exatamente na divisa entre Espírito Santo e Minas Gerais.
Ali é possível ver de forma clara o DNA da Serra do Caparaó. A região está muito avançada no processo para receber oficialmente a Denominação de Origem (DO), que foi solicitada pelas entidades e por produtores de lá por causa das características geográficas e culturais.
O Sebrae – por meio dos técnicos locais – tem importante parcela nessa organização do pedido de reconhecimento como Indicação Geográfica (IG) através do Programa de Cafés Especiais do Espírito Santo – iniciado em 2014. São dezesseis municípios que formam a Denominação de Origem (uma das categorias da IG): dez no Espírito Santo e seis em Minas Gerais. Todos estão localizados no entorno do Parque Nacional do Caparaó (veja o boxe). Do lado capixaba temos Dores do Rio Preto, Divino de São Lourenço, Guaçuí, Alegre, Muniz Freire, Ibitirama, Iúna, Irupi, Ibatiba e São José do Calçado. Atravessando a fronteira mineira, temos Espera Feliz, Caparaó, Alto Caparaó, Manhumirim, Alto Jequitibá e Martins Soares.
Estão envolvidos na atual fase representantes do Sebrae/ES o Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes), o Instituto Campus Alegre, o Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural (Incaper), a Associação dos Produtores de Cafés Especiais do Caparaó (Apec) e prefeituras dos municípios.
Ao adentrar a Cafeteria Onofre, da família Lacerda, o assunto era exatamente este, a Denominação de Origem. Afonso Lacerda, o atual presidente da Apec, criada em 2016, é bicampeão do Coffee of the Year (2016 e 2018), e conta que foram entregues “três livros falando sobre a região. Agora queremos o reconhecimento”, explica ele. Os produtores foram precursores na região e, também, muito premiados. São mais de cinquenta prêmios na família, entre os oito irmãos, filhos de Onofre Lacerda e Conceição, com o Café Forquilha do Rio.
Hoje os filhos deles estão também trabalhando no projeto da família: “A gente está junto para o que der vier”, explica Altilina Lacerda, esposa de Afonso. Hoje ela é responsável pela torra do café na cafeteria, e a filha é barista. Eles torram mensalmente uma saca de café de 60 quilos. Como a região é turística, recebe visitantes interessados em tomar o café e também levar como recordação da região. Dessa forma, com mercado garantido, os produtores são incentivados a produzir melhor café.
Em 2010 a região ganhou um aliado importante: o descascador de café, que contribuiu para a melhoria da qualidade da bebida. Os terreiros suspensos e a colheita seletiva – uma obrigação pra quem quer ter bons cafés por lá – passaram a ser o básico para trabalhar com especiais. As pesquisas que auxiliaram nesses estudos foram realizadas em parceria com o Ifes. Segundo João Batista Pavesi, pesquisador no Instituto: “Os cafés naturais têm um potencial de pontuação muito alto, mas principalmente o de maturação tardia.” Muitas vezes os produtores não aguardavam a maturação ideal e já o retiravam do pé.
Outro ponto de estudo na região é uma variedade que surgiu ali: o caparaó amarelo – batizado popularmente também de “amarelinho do Onofre”. Exclusiva naquela região, foi o pai de Afonso, seu Onofre, que começou a plantar a variedade. Acredita-se que ela seja exclusiva de lá, pois não havia registro nos bancos de germoplasma de café. Hoje o Instituto Agronômico de Campinas (IAC) já realiza um estudo para saber se é possível identificar detalhes sobre a planta.
O irmão de Afonso, José Alexandre Lacerda, é presidente da Associação de Produtores Rurais de Pedra Menina (Aprupem), que realiza diversas ações para promover a região e organizar os produtores: “Estamos nos preparando para atender os clientes”, explica. Para isso começarão a construir um galpão para armazenar o café da região, por exemplo. Dentro do processo da IG, José Alexandre identifica que o tempo para a conquista do reconhecimento levou a um “amadurecimento que foi mudando as pessoas e juntando mais grupos”.
A união dos irmãos fez com que – naquele vilarejo de Forquilha do Rio – não sentíssemos o tempo passar. A “prosa” é tão boa que é possível passar a tarde toda tomando o café e comendo os bolos deliciosos da cafeteria.
Grãos de Ouro
A última etapa do roteiro foi a montanhosa cidade de Muqui. Ali fica a sede da Cooperativa dos Cafeicultores do Sul do Estado do Espírito Santo (Cafesul), fundada em 1998, e que, em 2008, conquistou a certificação Fairtrade. Ela atende a sete municípios, inclusive com torra de café. Entre os projetos, o Póde Mulheres é destaque com cafés de produtoras da região.
Ali vive o campeão do Coffee of the Year 2018 na categoria Canéfora: Luiz Claudio de Souza. O nome Grãos de Ouro chama atenção. Chegamos debaixo de chuva – muitos dizem que é bom presságio. O terreiro de chão com estufa estava repleto de café e a família toda (toda mesmo) nos aguardava para um almoço. Descendentes de italianos, a proposta é reunir e unir. Antes de comer, um bate-papo e reconhecimento do Sítio Graças a Deus. Os seis irmãos dividiram as áreas dos 50 hectares, que eram do pai, seu Pedro, falecido há onze anos.
Luiz Claudio, o mais velho, é quem puxa a prosa: “Somos apaixonados por café. Está no nosso DNA”. Ao olhar pela janela do casario da fazenda, é possível avistar pés de café entre bananeiras e mata nativa: “O café é uma fruta, um alimento”, complementa Luiz, com o troféu do concurso em cima da mesa repleta de quitutes.
Nos atuais 4 hectares de café ele mostrou que, no processo de cereja descascado e natural do conilon – variedade mais presente na região do Espírito Santo -,era possível produzir um café de qualidade a 600 metros de altitude: “Tem muito preconceito com o conilon. São desafios, mas a SIC é uma vitrine”.
Ao caminhar pela lavoura avistamos os pés carregados. Ali, por ser uma região mais úmida e com microclima diferente daquele dos cafés do norte do estado, ainda estava sendo feita colheita dos frutos maduros. Somente três pessoas trabalham no sítio, incluindo o irmão Estevam. Trabalho árduo, pois a colheita é manual e com muito cuidado por causa da umidade.
O sobrinho Marcelo Gomes Ribeiro conta que, depois que o tio ganhou o concurso, ele e o irmão, Felipe, proprietários de uma agência de comunicação em Vitória, começaram a produzir materiais sobre o café do tio e a incentivar a futura cafeteria que receberá visitantes curiosos para provar o conilon capixaba.
Com orgulho eles mostram ao primo Pedro, nome em homenagem ao avô, que ali estão as raízes da família. Para Luiz Claudio, “a diferença de um café para outro é que tem que colocar o coração e a alma. Tem de cuidar da planta e dar condição de conforto”. A mãe dele, Dijanira Oggioni de Souza, de 85 anos, sorria o tempo todo, orgulhosa. Para ir ao encontro do almoço, os oito quilômetros do sítio até a cidade fizemos de carro, diferente de Luiz Claudio, que, quando criança, ia a pé: “Hoje em dia é tudo mais fácil”, lembra.
Hora de voltar para Vitória e finalizar a missão de andar mais de 1.100 quilômetros entre histórias e aprendizados. “Estamos no caminho certo”, reforçou Luiz Claudio. O café especial está fazendo uma verdadeira revolução nessas regiões. Sucessão familiar, liderança, protagonismo, exemplo e muito trabalho.
(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso referente aos meses setembro, outubro e novembro de 2019 – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).
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