Café e vinho: qualquer semelhança não é mera coincidência
Há entre ambas as bebidas uma relação muito interessante e os produtos podem ser comparados quando o assunto passa por aromas e sabores, por maneiras de produzir e até pelo preparo no campo
Quando o homem descobriu o vinho, há milhares de anos, a bebida era tão-somente uma fermentação alcoólica do suco (mosto) de uvas frescas. As leveduras se alimentam do açúcar e liberam gás carbônico, energia e álcool. O tempo passou, a modernização chegou e o vinho começou a ser moldado de acordo com a preferência do mercado, adicionando-se leveduras que direcionam sabores e aromas, corretores de acidez, de cor, entre outras substâncias.
Paula Dulgheroff, especialista em cafés e apaixonada por vinhos, explica que o vinho é o produto da fermentação do suco da uva. A preocupação principal quando se vai fazer um bom vinho é ter uma uva muito madura. “Geralmente se colhe à noite para evitar oxidação. Esse é o cuidado com o fruto; o cacho da uva passa por um processo de remoção dos engaços dos grãos, esmagamento, depois fermentação, vinificação. A produção tradicional pode utilizar leveduras de indução de fermentação e alguns compostos químicos, principalmente o sulfito, para diminuir a oxidação. Cada vinho tem um estilo de vinificação diferente, é um produto pronto, engarrafado, que vem da fermentação do suco da uva.”
Quando falamos em vinho Malbec, Cabernet, Syrah, por exemplo, estamos tratando as variedades do vinho. As regiões em que as uvas são cultivadas, traz detalhes de como a bebida é preparada, o tipo de cepa utilizada em cada receita, o que permite que cada garrafa de vinho apresente características completamente diferentes uma das outras.
Para Paula o mundo do café e o do vinho são muito parecidos. Há, porém, um grande abismo entre eles, já que o vinho é bem mais antigo, “uma tradição milenar, ele é consumido no mundo todo”. No quesito qualidade, o café é supernovo.
Quanto ao cultivo, a uva também fica sujeita ao clima, à chuva, à temperatura, assim como o café, para um bom resultado. A diferença é o processamento: uma vez colhido, para secar, o café continua a depender do clima, do sol A uva, pode ser manipulada imediatamente após a colheita.
“O vinho conta com uma interferência humana, tecnológica e científica para um bom resultado, com manuseio e manipulação dos frutos. Já o café a gente faz a colheita e segue com os grãos até a secagem, quando dependemos do clima para um bom resultado”, afirma Paula.
Vinho e café, os bons companheiros
Demorou algum tempo para que o café, assim como o vinho, fosse entendido como uma bebida de aromas e sabores complexos. Ambos guardam muito mais semelhanças, inclusive agronômicas, do que normalmente se supõe.
- Uva e café são frutas que precisam estar ligadas às plantas para que atinjam o ponto completo de maturação, ao contrário de outras, como a banana, que amadurece depois de colhida. Por isso, bons vinhos e cafés dependem de frutos perfeitamente maduros.
- O terroir, as variedades, a produtividade da planta, a maturação, a colheita e as técnicas de processamento são fundamentais para a preparação das duas bebidas.
- O café especial é produzido a partir de grãos da espécie arábica e canéfora, e de variedades, como catuaí, bourbon, mundo novo, conilon, robusta, etc. Vinhos de qualidade só são produzidos a partir da espécie de uvas viníferas e suas variedades, como cabernet sauvignon, malbec, shiraz, etc.
- As duas bebidas são ricas em aromas. Não por acaso, consumidores de bons vinhos também o são de bons cafés e vice-versa.
- Café e vinho alcançam altos preços de comercialização, dependendo das particularidades das bebidas.
Segundo o livro Coffee and Wine – Two Worlds Compared, de Morten Scholer, existem três maneiras de converter uva em vinho:
Vinho tinto: é produzido a partir das frutas vermelhas, em um processo no qual o mosto das uvas é exposto por um longo tempo para a extração de componentes de cor e sabor.
Vinho branco: é produzido a partir de uvas brancas. Nesse processo, a casca da uva é separada do mosto.
Vinho rosé: pode ser produzido de duas formas, por meio de uma cuidadosa mistura de vinho tinto com vinho branco, ou através de uma leve maceração das uvas pretas no mosto.
Complexidade entre café e vinho
Ambos dependem da colheita de frutos maduros, com qualidade. O que acontece no pós-colheita e no processamento do café, porém, pode ser totalmente inesperado, já que não existe uma tecnologia que possa ser totalmente controlada. “Não dá para dizer: vou colocar o café no terreiro suspenso e ele dará uma nota sensorial específica”, afirma Paula. Já no vinho, se ele for colocado em uma barrica de carvalho, podem-se esperar notas amadeiradas. “O processo de pós-colheita do café é muito mais difícil de ser controlado do que o do vinho.
A principal diferença entre as bebidas está na hora de servir. O vinho está engarrafado e prontinho. No rótulo se encontra tudo de que é composta a bebida, basta servi-la na taça correta e na temperatura indicada, ou seja, o produto vem pronto para o consumo. Quanto ao café, ainda é preciso contar com a interferência do momento da torra e o do preparo da bebida, que podem interferir no resultado final. “As variáveis no café são praticamente infinitas até a sua degustação. O café é uma bebida consumida, na maioria das vezes, quente, e isso o torna ainda mais complexo porque sua temperatura vai mudando, junto com sabores e características. Então, passado o processo de finalização do produto para consumo, sua degustação é totalmente diferente. Apesar de serem mundos aproximados, existe ao mesmo tempo uma lacuna entre os dois”, completa Paula.
Além disso, o comportamento do nosso corpo com o vinho é totalmente diferente do que com o café. Um relaxa, o outro libera energia. A sensação de uma bebida fria na língua é desigual em relação à de uma bebida quente, no caso do café, principalmente pelo processo da torra. O vinho tem características de ácido de minerais, então a parte mineral é nítida e refrescante.
E os naturais?
A vida é um vai e vem. Se, por um lado, a bebida tradicional é maioria nos supermercados, por outro há um movimento que busca técnicas antigas, como as da produção dos vinhos naturais, com fermentação espontânea, leveduras selvagens e sem conservantes. Nada se adiciona, nada se retira.
É difícil estimar o tamanho desse mercado. A Feira Naturebas, que acontece há sete anos, em São Paulo, é um termômetro desse movimento dentro do País, e essa tendência de consumo aumenta no exterior. À frente do evento está a chef de cozinha e sommelière Lis Cereja, que iniciou esses encontros na sua pequena Enoteca Saint VinSaint – restaurante que serve ingredientes sazonais e vinhos naturais –, com cem pessoas e vinte expositores. Na última edição, na Casa das Caldeiras, patrimônio histórico paulista, foram 110 expositores (do Brasil e de fora) e mais de 1.500 visitantes. Referência na América Latina, a feira é a única especializada em vinhos naturais, orgânicos e biodinâmicos. (leia a diferença entre eles em Vinho não é tudo igual).
Na avaliação de Lis, o público dos vinhos naturais tem um perfil parecido com o do café especial: está em busca de uma bebida complexa em sabores, de informações sobre o produtor e sobre a produção – os vinhos naturais são provenientes da agricultura orgânica ou biodinâmica, sem o uso de agroquímicos, e que podem levar em conta o calendário lunar. “Na origem, café e vinho são produtos agrários”, comenta a chef e sommelière sobre o interesse do consumidor na rastreabilidade da produção. Guardadas as devidas proporções, para ela o vinho natural é a “terceira onda” desse setor, como aconteceu com o café.
O vinhateiro Acir Boroto acreditava que produzia uma bebida orgânica, até Lis Cereja visitar sua propriedade na Linha Presidente Soares, interior de Garibaldi, no Rio Grande do Sul. “Na verdade, eu fabricava vinho natural, e foi ela quem me informou”, diz. Boroto conta que na bebida não entram leveduras externas, a fermentação dura em média quarenta dias e o maior desafio da região é a umidade. Sua produção é de 3 mil garrafas anuais (além das 4 mil de espumantes orgânicos) e ele trabalha no parreiral formado pelo pai, há 94 anos. “O vinho natural costuma ter uma gama de aromas mais ampla do que os convencionais, já que na garrafa há muito mais microrganismos em ação”, explica Boroto. Por outro lado, aparecem aromas considerados pela indústria como defeituosos. “Mas que podem trazer a personalidade do vinho”, pontua Lis – talvez a razão da “estranheza” inicial de quem experimenta a bebida.
Para a crítica gastronômica Alexandra Forbes, o resgate de métodos ancestrais requer vinhateiros muito habilidosos, cuidadosos e um terroir de qualidade (complexa combinação entre elementos de uma região que definem o perfil sensorial da bebida) para que a “volta ao passado” possa resultar em bebidas de boa qualidade. “É bom a gente nunca esquecer que a maior virtude que um vinho pode ter é ser gostoso de beber”, afirma.
Vinho não é tudo igual
A produção vinícola é repleta de particularidades, que vão do cultivo da uva à bebida final. O importante é que ela seja bem feita, não importa o método adotado.
Convencionais: dominam as prateleiras de supermercados, lojas e restaurantes. Essas bebidas são originárias de vinhedos tratados pela agricultura tradicional, com o uso de agroquímicos. A legislação permite a utilização de substâncias na produção do vinho, como o conservante anidrido sulfuroso (sulfitos – para a preservação da bebida), corretores de acidez e de cor, taninos artificiais, leveduras selecionadas (usadas para dar início à fermentação, direcionar sabores e aromas) e interferências que utilizam técnicas e insumos enológicos, para corrigir e moldar o vinho da maneira como cada produtor ou mercado preferir.
Orgânicos: essas bebidas são feitas a partir de uvas cultivadas sem o uso de agrotóxicos, com controle biológico e aplicação de produtos permitidos para esse tipo de cultivo, que não agridem a planta, o solo, tampouco o meio ambiente. Embora os vinhedos tenham esse tratamento, o vinho orgânico pode receber a adição de sulfito durante a produção e manipulações enológicas, como leveduras selecionadas, taninos e correções que vão depender do objetivo do vitivinicultor, que pode ser ter um vinho mais original ou comercial.
Biodinâmicos: seu cultivo preza pela saúde da planta, do solo e do meio ambiente, como o dos orgânicos, mas a agricultura biodinâmica (inspirada na filosofia do austríaco Rudolf Steiner) leva em consideração as influências da lua no plantio e trabalha com produtos específicos – conhecidos como preparados – nas lavouras. Todas as etapas, do plantio à colheita, devem seguir o calendário biodinâmico. Na produção do vinho não podem ser adicionadas leveduras selecionadas (apenas as selvagens) e o uso do sulfito é permitido num nível mínimo o suficiente para preservar a bebida, isso se for necessário.
Naturais: os vinhedos são tratados sob a forma da agricultura orgânica ou da biodinâmica, mas a produção da bebida é 100% natural, sem nenhuma intervenção. A fermentação é espontânea, com leveduras selvagens e sem conservantes, além de a bebida não passar por nenhum tipo de filtragem. Existe a possibilidade de serem adicionadas quantidades mínimas de sulfito na hora do engarrafamento Os mais puristas, porém, não admitem a inclusão dessa substância. O objetivo é que os vinhos naturais reflitam sua tipicidade, sem interferências. Por enquanto, não existe certificação para esse tipo de vinho, como ocorre com os orgânicos e os biodinâmicos.
E as rodas…
O livro Coffee and Wine – Two Worlds Compared relata que, em 1970, o Departamento de Viticultura e Enologia da Universidade da Califórnia, em Davis, nos Estados Unidos, padronizou a descrição de avaliação sensorial dos vinhos, e, na década de 1980, Ann C. Noble, química da organização, depois de estudar as técnicas e aplicações de degustação dos vinhos, percebeu que não havia uma terminologia amplamente aceita na hora de degustar o vinho. Assim, ela criou a Roda do Aroma dos Vinhos.
Sabores primários: as uvas contam com aromas de frutas, flores e ervas
Sabores secundários: os fermentados contam com aroma de creme, pão, cogumelo ou manteiga
Sabores terciários: após o envelhecimento e a oxidação, possuem aroma de baunilha, noz, café e tabasco
Outras rodas foram desenvolvidas posteriormente. Na década de 1990, por exemplo, a Specialty Coffee Association (SCA) desenvolveu uma roda de aromas para o café. Como utilizá-la você pode conferir aqui.
(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso referente aos meses dezembro, janeiro e fevereiro de 2020 – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).
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