Cafezal

A nova idade do arábica

Novo estudo propõe marco temporal mais preciso para o surgimento da espécie e demonstra a diversificação histórica das cultivares modernas

Por Cristiana Couto

Em abril, a revista científica Nature Genetics publicou um artigo que atualiza o surgimento da espécie arábica e a história das suas diversas cultivares modernas. Segundo os 73 autores do trabalho, que
reuniu 40 instituições de quase vinte países (entre eles o Brasil), as informações do genoma dos cafés arábica atualmente cultivados no mundo são importantes para voltar no tempo e traçar um caminho
mais preciso da longa história evolutiva da espécie – responsável por cerca de 70% da produção mundial de café.

Isso porque a compreensão detalhada das origens e da trajetória do arábica é crucial para desenvolver novas cultivares de espécie mais bem adaptadas às mudanças climáticas. Por isso, Salojärvi,J. et al. fazem um apanhado desse rico itinerário, que move pesquisadores há duas décadas (o novo genoma de referência do arábica permitiu, ainda, a identificação da região que abriga genes responsáveis pela
resistência à ferrugem e a área no genoma que os regula). O que a Espresso traz nestas páginas é esse caminho e o novo marco temporal do evento que inaugura a existência do arábica.

A origem do arábica

O arábica é uma espécie híbrida, ou seja, surgiu de um cruzamento (natural) bem sucedido entre duas espécies diferentes, Coffea canephora e Coffea eugenioides. Diferentemente da genética das outras 124 espécies que compõem o gênero Coffea, o arábica recebeu, de cada um dos pais, não apenas um, mas dois conjuntos de cromossomos (a representação científica para esse fenômeno é 2n=4x=44). Essa duplicação genômica não é um evento raro entre os vegetais: espécies como o trigo (Tripticum spp.), o algodão (Gossypium L.) e o repolho (Brassica oleracea) também a apresentam.

A mais recente comprovação dos pais dos cafés arábicas foi feita em 2023, mas essa sugestão de filiação não é nova. Desde o fim dos anos 1990, cientistas tentam atestar esse cruzamento – cujo nome técnico é hibridação –, quando e onde ele ocorreu, e muitos foram os estudos feitos em busca dessas respostas, já que ter garantias inequívocas de quem são os cafés-pais do arábica é fundamental para compreender sua
história evolutiva.

As datas mínimas e máximas atribuídas ao evento de nascimento do arábica, porém, variaram nessas duas décadas entre 10 e 50 mil anos até 543 e 1,08 milhão de anos. Neste novo artigo e na esteira das técnicas mais modernas de análise genômica, os estudiosos propuseram um período menos amplo: entre 350 e 600 mil anos.

A trajetória da espécie

Embora não se saiba onde a hibridação ocorreu, o progenitor selvagem mais próximo foi encontrado no planalto da Etiópia oriental, no vale Great Rift. Depois de milênios na Etiópia, as sementes de plantas da espécie arábica são cultivadas no Iêmen e torradas pelos árabes até começarem a espraiar-se, lentamente, pelo mundo.

No século XVII, chegam à Índia, levadas pelos monges sufi (árabes). Um século depois, os holandeses conseguem plantar a espécie na Indonésia (sudeste da Ásia) – criando, assim, as plantas fundadoras do grupo contemporâneo da linhagem típica. Esse e os movimentos seguintes envolveram, porém, um número pequeno de plantas e sementes. Em 1706, uma dessas plantas viajou até o jardim botânico de Amsterdã, num evento amplamente reproduzido por fontes históricas, e iniciou a propagação de arábicas no Caribe e, posteriormente, na América do Sul.

Enquanto isso e de forma independente, outra potência econômica da época cultivou arábicas na ilha de Bourbon (atual Reunião). Segundo fontes consultadas pelos autores do artigo, uma única planta sobreviveu e, na década de 1720, originou o grupo bourbon. Este grupo e o grupo típica é que criaram a base a partir da qual derivam todas as variedades de arábica que circulam atualmente no planeta – com exceção de algumas poucas variedades silvestres (ou seja, não domesticadas) das florestas subtropicais da Etiópia.

Essa origem “estreita” explica porque as variedades de arábica têm baixa diversidade genética. Mas não é só por esta razão. Pela sua particularidade genética, a espécie arábica tem a capacidade de se autofecundar.

Autocompatibilidade: uma ferramenta evolutiva

A ciência ensina que a duplicação do material genético de um organismo pode originar novas espécies, aumentando a diversidade genética no mundo e conferindo, muitas vezes, novas habilidades para a adaptação a novos ambientes, o que, potencialmente, traz vantagens evolutivas. No gênero Coffea, poucas variedades têm essa habilidade, ou seja, de fecundar a si mesmas, não dependendo, assim, de um parceiro.

Pesquisadores referidos no artigo da Nature Genetics e que estudaram 23 espécies do gênero Coffea acreditam que a quebra da autoincompatibilidade (ou seja, o aparecimento da capacidade de autofecundação a partir de pais auto-incompatíveis) é uma estratégia de sobrevivência que garante a reprodução da espécie quando o número de parceiros disponíveis é limitado – o que aconteceu durante as mudanças ambientais na África Oriental no último milhão de anos, período em que a espécie arábica surgiu. Também sugerem que um dos ancestrais do C. arabica possuía uma certa aptidão para essa mudança, o que já pode ter facilitado sua sobrevivência.

A disponibilidade recente de técnicas acessíveis de sequenciamento genômico em larga escala permitiram a reconstrução, com alta precisão, de eventos de hibridação com base em diferenças sutis na sequência do genoma entre espécies híbridas – como é o caso dos cafés arábica – e seus parentes. Soja e baunilha, por exemplo, tiveram sua origem identificada por técnicas assim, que, por acessarem um grande número de regiões do genoma, fornecem mais informações sobre a história evolutiva de uma espécie do que a análise de sequências de genes individuais. E várias outras técnicas avançadas de filogenia (ramo que estuda a relação evolutiva entre grupos de organismos por meio de sequenciamento de dados moleculares) podem ser combinadas a estas, o que, para os cientistas, projeta cenários promissores.

No caso do arábica, a combinação entre a autocompatibilidade e a replicação da espécie a partir de apenas duas linhagens ao longo de milhares de gerações acabou por resultar em plantas suscetíveis a várias doenças e pestes, como a ferrugem, por exemplo.

Assim, estudiosos sugerem que, como medida de mitigação dos efeitos climáticos sobre os cafés arábica, sejam feitas seleções genéticas observando os parentes selvagens diretos dos arábicas cultivados
– familiares estes que, mais próximos, muitas vezes apresentam características mais favoráveis para o melhoramento de uma espécie cultivada do que os que são distantes.

Texto originalmente publicado na edição #85 (setembro, outubro e novembro de 2024) da Revista Espresso. Para saber como assinar, clique aqui.

TEXTO Cristiana Couto

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