Cafezal

A ciência por trás dos canéforas de qualidade

Propagação clonal e cuidado no manejo ajudaram a transformar as características sensoriais da espécie no Brasil

Durante décadas, os cafés canéforas, considerados de qualidade inferior, não pertenciam ao círculo exclusivo de grãos especiais – arábicas. Mais uma reviravolta feita pela ciência está mostrando ao mundo que o patinho feio dos grãos é, na verdade, um belo (e ainda jovem) cisne.

Em 2018, um dos primeiros canéforas de qualidade botou as asas de fora e meteu-se na prateleira da cafeteria paulistana Santo Grão com o sugestivo nome de “0% arábica”. Seu produtor, o capixaba Lucas Venturim, é atualmente referência nacional em qualidade da espécie. Antes, porém, robustas amazônicos e conilons capixabas ganhavam visibilidade em concursos de qualidade. A Semana Internacional do Café incluiu, em 2016, a categoria canéforas finos no concurso Coffee of the Year (COY). Em 2023, o conilon vencedor foi arrematado em leilão por R$ 10 mil a saca (60 kg).

Lucas Venturim (à esquerda) e seu irmão Isaac: quinta geração

Para alcançar esse marco, foi preciso muita pesquisa em laboratório e centenas de experimentos em campo para que outros cisnes nascessem – o desenvolvimento de um novo café pode levar quinze anos.

O sul do Espírito Santo, que produz conilons, e as Matas de Rondônia, origem dos robustas amazônicos, são as duas regiões que protagonizam essas transformações. A primeira é a segunda maior produtora de canéforas do mundo e, desde 1970, cultiva o conilon em larga escala. A segunda região produz o robusta amazônico – um híbrido de conilon e robusta – que surgiu na natureza ao longo do século XX.

Investimentos em ciência e tecnologia garantiram a entrada de ambas, em 2021, no rol das 15 Indicações Geográficas (IGs) do café – um registro que comprova, a partir de densos estudos, que os grãos de um delimitado território têm excelência na produção daquele produto. “Selos de origem ajudam a educar o consumidor”, ensina Georgia Franco, proprietária do Lucca Cafés Especiais, de Curitiba, que comercializa grãos de todas as origens brasileiras.

A transformação sensorial dos canéforas quebrou paradigmas, como o de que a genética da espécie era inferior, e concedeu-lhes prêmios. O caminho dos canéforas especiais, porém, é longo e está no início. “Falta divulgação e conhecimento sobre esses cafés”, analisa a barista e ex-campeã brasileira Silvia Magalhães, da torrefação SM Cafés, de São Paulo. “Precisamos aproximar as pessoas dos canéforas”, reforça Venturim.

Mas afinal, qual o papel dos cientistas nessa revolução de sabor? Eles atuam, basicamente, em duas frentes: no desenvolvimento de novos materiais genéticos e na aplicação de tecnologias de ponta no pós-colheita que, reservadas até então aos arábicas especiais, passaram a ser pensadas para os canéforas. E, em parceria com os cientistas, estão cooperativas, produtores e entidades representativas e técnicas. Com a crise climática ameaçando o futuro dos arábicas, robustas e conilons surgem como alternativas promissoras na produção de bebidas de alta qualidade.

Seca dos conilons em terreiro suspenso – Fazenda Venturim

Clonagem: um complexo quebra-cabeça

A tecnologia de melhoramento genético por clonagem em cafés não é nova. O primeiro programa brasileiro de propagação clonal em cafés foi lançado em 1970 pelo IAC (Instituto Agronômico de Campinas), e em 1985 para conilons pelo Incaper (Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural).

A virada de chave foi incluir parâmetros sensoriais e químicos na genética dos novos canéforas. “Hoje, o olhar não é só para a produtividade, mas também para uma boa bebida”, diz o agroecólogo e classificador de canéforas finos Tássio de Souza, do Incaper. A produtividade sempre guiou a seleção de materiais genéticos de café, ao lado de características como resistência a pragas e doenças, arquitetura das plantas e tolerância à seca, todas ainda fundamentais no desenvolvimento de novas cultivares – nome técnico para variedades cultivadas. “Para lançarmos um novo clone, ele deve atender critérios agronômicos antes dos sensoriais”, resume Souza. Foi assim que, em 2012, as cultivares diamante, jequitibá e centenária surgiram nos campos e laboratórios do Incaper, formando o primeiro time de canéforas de qualidade brasileiros – os experimentos começaram no início dos anos 2000, a partir de mais de 2 mil materiais genéticos.

Mas por que usar clones em vez de sementes? Para ter uniformidade e consistência no campo. “A planta clone tem genética idêntica à da matriz, de onde são retiradas as novas plantas, exatamente iguais”, explica Fábio Tancredi, pesquisador da Epamig (Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais), que conduz experimentos com conilons capixabas em seu estado. Já as sementes têm a combinação dos DNAs dos pais, originando indivíduos diferentes. Embora qualquer estudante de ensino médio saiba disso, pouca gente sabe que uma das principais diferenças entre arábicas e canéforas é, justamente, o processo de fecundação.

Arábicas se autofecundam, mas canéforas precisam de companheiros para gerar flores. Essa alogamia (fusão de gametas de indivíduos diferentes) tem consequências no campo, como produzir lavouras heterogêneas – com plantas sem padrão de altura, formato ou tamanho dos frutos –, o que dificulta a vida do produtor e não deixa saída a não ser a propagação clonal, para que haja eficácia no manejo dos grãos.

A reprodução clonal contribui para a qualidade. “A partir dos clones, replica-se o mesmo perfil sensorial dos cafés, pois o material genético é sempre o mesmo”, explica Enrique Alves, engenheiro agrônomo da Embrapa Rondônia (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária de Rondônia) e pioneiro na transformação sensorial dos robustas amazônicos. E existe algo que fascina cientistas e produtores. “Há mais possibilidades de modelar qualidade em canéforas do que em arábicas”, revela Lucas Louzada Pereira, do IFES (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo), doutor em engenharia de produção e referência em controle de qualidade. A base genética dos canéforas no Brasil é ampla, considerando as coleções dos bancos de germoplasmas – entre eles, IAC, Embrapa Rondônia e Incaper, que, em conjunto, têm mais de 1,6 mil acessos (amostras) – e as plantas selecionadas pelos cafeicultores.

“A expansão do cultivo no Espírito Santo foi, inicialmente, por plantas cruzadas naturalmente entre si”, recorda Louzada. Ao longo de décadas, isso levou ao estabelecimento natural de populações com alta variabilidade genética. Não é preciso ser matemático para vislumbrar quantas combinações de peças pode ter esse maravilhoso quebra-cabeça científico. E, quanto mais variabilidade genética, maior a diversidade sensorial.

Clonagem, porém, não é um trabalho simples. Um clone é definido como um indivíduo ou um grupo de indivíduos idênticos. Além disso, muitos clones de canéfora não cruzam entre si. Por isso, os cientistas reúnem clones em grupos de compatibilidade, e os viveiristas os comercializam em kits clonais – uma espécie de saquinho com as “pecinhas” (geralmente nove) de montagem da cultivar. O conhecimento da compatibilidade dos clones influencia diretamente as estratégias tecnológicas no campo.

Maturações diferentes, sabor da origem

A genética, afinal, não age sozinha. Boa parte da má reputação dos canéforas resulta de defeitos de manejo, e não de características genéticas. “Há um pacote tecnológico que vem com os novos clones”, lembra Alves. No Espírito Santo, um dos principais problemas detectados no começo dessa história foi a colheita do conilon. Temendo não encontrar mão de obra suficiente, os cafeicultores colhiam todos os frutos ao mesmo tempo. Muitos imaturos eram processados, desenvolvendo amargor na bebida que, aliado ao amargo da cafeína, consolidou a má fama dos canéforas. “Tivemos que mudar os conceitos de produção para quebrar essa caracterização”, explica Souza.

Uma das estratégias mais importantes de manejo é plantar em linha (fileiras) os clones com diferentes tempos de maturação (precoce, médio e tardio). Isso permite ao produtor ampliar o período de colheita e obter homogeneidade de frutos maduros. Combinadas com manejo de podas e irrigação, a produção de conilons de qualidade da Fazenda Venturim, em São Gabriel da Palha (ES), decolou. “Com colheita por derriça, conseguimos até 90% de maturação dos frutos”, diz Venturim. Em 2007, com os pais e irmãos, ele fez um planejamento de 100% de qualidade para a fazenda, à época com 16 hectares (hoje são 85 ha). Com menos verdes, os conilons passaram a expressar, sensorialmente, as particularidades da região de origem.

Também, até a década de 2010, o canéfora colhido costumava permanecer dias entre o campo e o secador. “Isso gerava fermentações negativas e, consequentemente, defeitos aromáticos na bebida”, explica Alves. Isso sem falar na secagem mecânica com fogo direto a altas temperaturas, descuido que criava, inclusive, compostos tóxicos que, mesmo assim, eram absorvidos pela indústria.

Vários estudos definiram o tempo de permanência dos canéforas na lavoura e para diversificar métodos de processamento. No Espírito Santo, investe-se atualmente em canéforas CDs (cerejas descascados) – cujo rendimento aumentou depois da diminuição no volume de verdes processados. “Foi um salto de qualidade”, afirma Venturim que, em 2012, adaptou a peneira e a rotação do despolpador, feito para arábicas, para dar conta do despolpamento do dobro de frutos. Outro salto sensorial nos conilons foi a fermentação controlada. “Ela agrega complexidade, é o melhor processamento para a consistência de qualidade e resulta em cafés completamente diferentes”, afirma o produtor, que pesquisa o processamento desde 2016.

Fermentação controlada de conilons, especialidade da Fazenda Venturim

Nas Matas de Rondônia, estudos revelam a multiplicidade sensorial adquirida a partir da fermentação controlada nos robustas amazônicos. Atualmente, nos concursos de qualidade locais, mais da metade dos inscritos estão nesta categoria. Ensaios científicos revelaram o tempo de fermentação adequado: robustas amazônicos levam o dobro de tempo para fermentar do que arábicas (10 a 20 dias). “Daqui há dez anos, vou poder escolher tomar um robusta amazônico de clone e processamento específicos”, projeta o pesquisador. Falar de processamentos com tecnologias de ponta hoje em dia parece óbvio, mas há uma década, sua aplicação nos canéforas chegou a ser contestada.

A grande virada

Os robustas amazônicos despertaram para a qualidade em 2012, quando Alves, especialista em arábicas, descobriu o protocolo sensorial para canéforas lançado em Uganda pelo Coffee Quality Institute, em 2010. O documento, criado pelo país de origem do robusta, foi o primeiro guia no mundo a definir padrões e procedimentos que autorizaram a entrada dos canéforas no nicho dos especiais. Tudo o que era feito nos arábicas de qualidade inexistia nos canéforas até então: combinação entre boa genética, conhecimentos do microclima da origem da planta e práticas cuidadosas de cultivo e processamento.

“O protocolo de Uganda norteou nosso caminho, pois a paleta sensorial e a forma de avaliação dos canéforas é diferente do protocolo para arábicas”, contextualiza o cientista. Naquele ano, Rondônia fez os primeiros ensaios científicos para implantar o plantio clonal dos cafés, processados tradicionalmente pelo método natural. Alves também entrou em contato com especialistas no Espírito Santo, que seguiam o mesmo protocolo sensorial, e a troca de conhecimentos se estabeleceu.

Os cientistas capixabas também buscavam, nas tecnologias usadas para arábicas especiais, o que podiam replicar nos conilons. Nesse processo, ajustes tiveram que ser feitos – e os pesquisadores ainda estão aprendendo a fazê-los. “Os arábicas são, sempre, nossa fonte de inspiração, mas não uma referência técnica a ser copiada”, ensina Alves.

Variedades são diferentes

Assim como espécies de café são diferentes, variedades de uma mesma espécie têm características distintas. No primeiro caso, canéforas têm, em geral, menos polpa que arábicas. Por isso, toleram mais tempo entre a colheita e a secagem sem adquirir defeitos. Essa resistência, porém, os torna mais sensíveis à seca, pois, com menos polpa e casca mais fina, não suportam as mesmas temperaturas aplicadas aos arábicas especiais. “É comum que canéforas mal secos percam qualidade entre dois e três meses de armazenamento, enquanto que, se bem processados, mantêm seu perfil sensorial por, no mínimo, oito meses”, detalha Tássio Souza.

Em busca de mais qualidade, os pesquisadores desenvolveram cultivares de conilons com casca e polpa mais espessas e sementes menores. Um exemplo é o clone A1, criado pelo Incaper. Segundo Souza, porém, ele não é muito desejado pelos cafeicultores por ter, em consequência dessas características, menor rendimento.

As diferenças entre robustas e conilons também exigem abordagens específicas. Além de dissemelhanças morfológicas, existem as agronômicas, fenotípicas, sensoriais e químicas: conilons têm plantas mais compactas, ramos mais curtos, folhas amarelo mais claro e frutos menores. Por outro lado, robustas são mais vigorosos e exigentes em relação à água e têm mais tolerância a certas doenças, como ferrugem e nematóides. “Sabemos que há certos tipos de fermentações que se adequam aos robustas mas que, se aplicadas ao conilon, não dão certo e vice-versa”, detalha Louzada.

Não há, porém, qualquer intuito de hierarquizar cultivares ou regiões em termos de qualidade, mas, sim, a vontade de vasculhar o que há por baixo desse gigantesco iceberg. “A maior força dos canéforas é sua capacidade de se adaptar pela matriz genética”, afirma Venturim. “Temos muito a descobrir sobre a dinâmica dos canéforas”, ensina o pesquisador do Incaper. “Não temos a bandeira de um estado: temos canéforas, que devem quebrar paradigmas e conceitos”, provoca Souza. “O canéfora está recebendo agora o mesmo cuidado que foi dispensado aos arábicas finos. Nosso papel é refinar esse conhecimento para o consumidor se divertir”, diz Louzada.

Para fora da porteira

Aos poucos, os novos canéforas avançam além da porteira. Sua diversidade sensorial tem atraído microtorrefações e indústrias, nacionais e internacionais. Muitas empresas brasileiras de café solúvel, além de torrefações estrangeiras, como a britânica Taylor’s of Harrogate, buscam no Espírito Santo conilons limpos na xícara. “Temos cooperativas certificadas, com leque aberto de comercialização na Europa”, comemora Souza.

Em 2019, a gigante nacional 3corações, em parceria com a Embrapa Rondônia e instituições como a Funai, lançou o Projeto Tribos, pacotinhos de cafés 100% robustas amazônicos que, hoje, são produzidos por mais de 130 famílias indígenas em 28 aldeias das cidades de Cacoal e Alta Floresta D’Oeste (RO).

Seca de robustas amazônicos de qualidade, em Cacoal (RO)

Em abril, o lançamento do café Colmeia foi resultado do trabalho de dez famílias liderado pela Nescafé, desde 2021, com conilons especiais das montanhas até o norte do Espírito Santo. “Ensinamos produtores a plantá-los em escala, para gerar melhor renda”, explica Rodolfo Clímaco, head de agricultura cafés da Nestlé Brasil.

Desde que inaugurou em 2020, no Rio de Janeiro, a carioca Fuzz Cafés vende on-line conilons capixabas e robustas amazônicos ao lado de arábicas. A estratégia da microtorrefação foca no público iniciante. “Eles ainda não conhecem a diferença entre as espécies”, explica o sócio Pedro Foster. “Canéforas finos têm características-base, como doçura equilibrada com amargor e corpo”, explica. “E amargor não é um aspecto indesejado para quem entra no universo dos especiais.”

Para revelar os novos sabores, também é preciso desapegar-se da torra feita para arábicas. “A abordagem tem que partir do zero, é outra matéria-prima”, alerta Foster. “Canéforas precisam de muito mais calor para desenvolver suas características sensoriais”, explica Silvia, que torra grãos da trader Farmers Coffees, de Venda Nova do Imigrante (ES). “Uso canéforas finos em blends para superautomáticas, porque dão corpo e muita cremosidade ao espresso, especialmente os fermentados”, comenta ela. “Quem sabe torrar bem, torra qualquer canéfora”, afirma Georgia, que também é instrutora da SCA.

Espraiando-se pelo país

Várias regiões brasileiras apostam no potencial qualitativo da espécie. Em Adamantina (SP), região cafeeira conhecida como Alta Paulista, extremo oeste do estado, o agrônomo Fernando Nakayama, pesquisador da APTA (Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios), toca experimentos desde 2008, em parceria público-privada com o IAC e indústrias de solúveis como a Cocam, para conseguir, em breve, volume e qualidade de canéforas para o mercado local. Além de Cocam, Nescafé, Cacique e Iguaçu, as maiores indústrias de solúvel do país, estão no estado paulista antenadas à questão da qualidade. “A Grande São Paulo consome, por dia, 25 milhões de xícaras”, contabiliza Nakayama.

Entre 1930 e 1980, a região alicerçou-se economicamente na produção de arábicas e, por isso, não produz canéforas em escala comercial, recebendo-os do Espírito Santo e de Rondônia. “Se tivéssemos o conhecimento atual, não teríamos escolhido arábicas para plantar”, reflete o agrônomo, referindo-se às condições de altitude, temperatura e solo, adequadas aos canéforas.

O projeto foca em clones capixabas e paulistas. A geada de 2011 “ajudou” a selecionar materiais genéticos e, hoje, há 16 novas cultivares clonais que seguiram para viveiros. Elas serão cruzadas com 60 clones de robustas amazônicos cedidos pela Embrapa Rondônia. “Enviamos amostras das áreas experimentais e conseguimos cafés acima de 80 pontos”, comemora ele. “Agora, queremos difundir essas vitrines tecnológicas para que os produtores tenham mais uma opção de renda e uma excelente oportunidade de negócios”, projeta.

Minas, tradicionalmente o maior produtor de arábicas do país, ainda não tem canéforas recomendados para cultivo. Por isso, desde 2009, a Epamig conta com instituições científicas parceiras para investigar a adaptação de clones de conilon para 292 municípios mineiros, especialmente na área que faz fronteira com ES e RJ, onde há abundância de terras degradadas pela pastagem, de baixo relevo e altas temperaturas, de onde podem brotar frutos da espécie a perder de vista. “Esses cafés podem ser uma opção de renda, atrair novos negócios e girar a economia da região”, diz Fábio Tancredi, que desde 2014 coordena o projeto de expansão do conilon da instituição. Após um encontro científico no Espírito Santo em 2018, ele decidiu buscar qualidade nos materiais que estão em teste nos jardins clonais de Oratórios e Leopoldina, na Zona da Mata mineira. Em fevereiro, o primeiro lote de mudas de dois conilons de qualidade cedidos pelo Incaper foi comercializado – sete mil, das 30 mil mudas projetadas para este ano. “Utilizamos a semelhança do clima como critério de seleção desses materiais”, explica o agrônomo.

Ao mesmo tempo, Tancredi avalia em campo 57 clones em busca de uma nova cultivar que possa ter a identidade mineira – ainda faltam oito anos de coleta de dados.

No Mato Grosso, pesquisadores do Empaer (Empresa Mato-Grossense de Pesquisa, Assistência e Extensão Rural) e da Embrapa Rondônia desenvolvem, há três anos, novos clones adaptados à região e que entreguem boa bebida – atualmente são 50, fruto do cruzamento de robustas amazônicos e mato-grossenses e que passam por testes sensoriais. A pesquisa faz parte do processo de revitalização da cafeicultura do Estado.

No extremo sul da Bahia, o cafeicultor Gustavo Sturm é uma verdadeira instituição de pesquisa. Agrônomo especialista em produção vegetal, Sturm cultiva canéforas desde 1998 na Fazenda Bom Retiro, em Teixeira de Freitas, e há anos aposta em qualidade. “Temos muitos materiais genéticos obtidos do Incaper e de viveiristas particulares”, explica ele, que em 2020 foi campeão do COY na categoria canéfora com um conilon natural de 85 pontos. Há pouco, plantou robustas amazônicos, renovou áreas de plantio e ampliou a estrutura de pós-colheita. “Queremos aliar produtividade e qualidade, e manter uma produção sustentável”, diz.

O produtor Gustavo Sturm, da Bahia

Há, ainda, robustas finos que começam a ser cultivados no Acre. Segundo Edgard Bressani, dono da exportadora Latitude Brazilian Coffees, foram 50 mil sacas produzidas em 2023 e, este ano, criou-se o primeiro concurso de qualidade. “Isso é fruto da ciência, da escolha de clones produtivos e com qualidade sensorial diferenciada.”

Quebrando mitos e projetando futuros

Para Louzada, a ciência é a principal aliada de produtores, torrefadores e consumidores ao jogar por terra vários mitos sobre os canéforas, que perduraram por décadas. A cafeína, tradicionalmente responsável pelo “indesejado” amargor dessas bebidas, deixou de ser a molécula-vilã graças à ciência. “A complexidade química do café vai muito além da cafeína, que não pode ser considerada determinante para a qualidade da bebida”, diz Alves.

As pesquisas vêm, também, minando a ideia de que menos cafeína em robustas ou conilons traz maior qualidade sensorial. “O clone 2314 oferece uma bebida maravilhosa, e tem 3% de cafeína”, relata Alves, referindo-se ao espectro dela encontrada nos canéforas, atualmente mais amplo (de 1,2% a 4%). Assim, a relação entre amargor e cafeína tem outros fatores na equação. “A bebida deve estar equilibrada com teores de açúcares e lipídios, este último, importante para a qualidade”, explica.

O clone 25 das Matas de Rondônia tem mais cafeína, sólidos solúveis e lipídeos, e seu equilíbrio químico pode ser parte importante para qualidade em cafés de modo geral (especialmente em canéforas). Algumas características são mais influenciadas pela genética e pouco dependentes da região em que são planta dos, como o teor de cafeína. “Outras podem mudar ligeiramente em relação ao ambiente, pelas características climáticas”, pondera Alves.

O manejo de plantio em linha também permitiu que produtores incluíssem novos materiais genéticos no campo. Segundo Alves, atualmente há experimentos com cafés das Matas de Rondônia que interagem na plantação com clones capixabas.

Além disso, os cientistas trabalham, em variedades já existentes, aspectos sensoriais que não haviam tido, antes, atenção. Para Louzada, é um sinal de que a diversidade de sabores dos canéforas de qualidade está só começando. O Brasil dispõe de redes de melhoramento de canéforas antigos, com bancos ativos de germoplasmas de mais de meio século em instituições como Incaper, Embrapa Rondônia e IAC. “Materiais genéticos que não corresponderam a quesitos como produtividade e resistência à doenças no passado podem ter características que contribuem para sua qualidade sensorial”, explica ele. Em fevereiro, uma seleção de robustas originais (“pais” dos robustas amazônicos), feita pela Embrapa-RO a partir do banco genético do IAC, foi provada por pesquisadores de vários estados.

Degustação com roda de sabores e mapa, do Lucca Cafés Especiais

Segundo estimativas, há mais de 300 mil genes adormecidos nas gavetas desses bancos. “É preciso retornar a essas coleções, revisitar áreas de produtores que ainda tenham diversidade de plantas e reavaliar esses materiais, porque talvez tenhamos deixado passar características interessantes”, aposta Alves. Entre elas, o já citado teor de cafeína, importante na fabricação de bebidas energéticas.

Para tornar a história mais complexa e fascinante, dependendo do ambiente, os clones se comportam de modo diferente. “Estudos já comprovam que clones respondem diferentemente ao pós-colheita, independentemente de sua composição molecular, microbiana e química. Cada planta tem seu microbioma, assim como temos nossa flora intestinal particular”, revela Louzada, que agora conduz estudos sobre cafés e terroir. “O Brasil é um território continental e nós ainda não explicamos nada em termos de terroir”, reflete.

Algumas plantas de canéfora conseguem, por exemplo, tolerar altitudes extremas. “Temos ensaios conduzidos a 1.100 m e produzindo superbem”, conta o pesquisador, citando o trabalho de Fábio Partelli, da UFES (Universidade Federal do Espírito Santo) e outros cientistas.

Alterar a percepção negativa sobre canéforas no Brasil tem um caminho escrito no gerúndio. “À medida que a ciência gera informação, o cafeicultor vai assimilando, a indústria vai entendendo e o consumidor começa a conhecer”, diz Alves.

“A mentalidade das pessoas está mudando, mas o processo é lento”, afirma Bressani, que também é embaixador dos robustas amazônicos. Há cinco anos, ele compra cerca de cinco mil sacas dos cafés das Matas de Rondônia para vender a países como Estados Unidos, Jordânia e China. “Peço o mesmo valor de um arábica especial, porque não é fácil para um produtor de canéfora produzir qualidade”, reitera.

Mas, para Louzada, ainda faltam baristas para seguir nessa trilha. “O canéfora tem uma bolha a ser rompida que é a do barista”, acredita, destacando que ainda são poucos os que usam canéforas em competições. O pesquisador também afirma a necessidade de quebrar a barreira do blend. “O consumidor tem direito de escolha”, diz, desmistificando a ideia de que canéforas não podem ser consumidos puros. “Há resistência do consumo puro em termos de sabor e qualidade. E o público ainda nem conhece essa bebida”, completa.

Para promover a diversidade e qualidade dos canéforas, Georgia vende microlotes de conilons do Espírito Santo e robustas finos de Rondônia ao lado de arábicas de origem. Nos cursos, prepara um cupping das duas espécies e fornece uma roda de sabores para guiar a experiência dos alunos. Ao final, indica num mapa a origem dos cafés provados. “Quero ter certeza de que meu cliente comprou canéfora porque gostou da bebida”, explica a empresária. “Nossa missão é mostrar o melhor de cada região, com sua diversidade, e deixar o público escolher”, ensina. “Quando alinharmos baristas, produtores e indústria, aí termos uma revolução”, ecoa Louzada.

Para saber mais: Como surgiram os robustas amazônicos?

Da Guiana Francesa, as primeiras mudas de arábica desembarcam no Pará, em 1727 – data oficial de entrada do café no Brasil. Relatos registram plantações incipientes de arábica, tempos depois, nas beiradas do Forte Príncipe da Beira, às margens do rio Guaporé, em Rondônia. Os grãos eram, então, trocados por prata. A cafeicultura comercial na Amazônia começa nos anos 1970 com a chegada de migrantes. Milhares ocuparam a região na ditadura militar (1964-1985), atraídos pelo slogan “integrar para não entregar”, estratégia oficial para incentivar a ocupação e o desenvolvimento amazônico (e de outros rincões), com a presença do Estado nessas regiões, divulgada como crucial à soberania nacional.

Em Rondônia, mineiros e paranaenses (estes, prejudicados pela geada de 1975) iniciaram plantios de arábica. E chegaram os capixabas com conilons – que, mais adaptados ao calor amazônico, predominaram. Na década de 1990, Embrapa-RO e IAC selecionaram materiais adaptados à região – como os robustas puros, que permaneceram na Embrapa e foram usados para melhoramento genético. Também, um programa do governo de incentivo ao plantio buscou essas sementes e distribuiu-as às toneladas. Robustas puros viraram plantas, que cruzaram com conilons adaptados. Nasciam, aí, os robustas amazônicos.

TEXTO Cristiana Couto

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