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Alimento ou medicamento? O café no Brasil do século XIX
A bebida café sempre despertou discussões por conta de seus efeitos no organismo. Desde 0 século IX, estudiosos árabes debatiam suas propriedades terapêuticas, e já concordavam que era uma bebida excitante, que promovia um estado maior de atenção. O mais famoso médico islâmico naqueles tempos, Rhazes, considerava que a bebida fazia bem ao estômago. Um século depois, Avicena, cujos textos médicos tornaram-se padrão nas universidades medievais do Ocidente, escreveu que o café fortalecia os membros e secava as “umidades” da pele.
Discussões desse tipo atravessaram séculos e mares, conforme a bebida se expandiu. Ao chegar à Europa, no século XVII, o café e suas propriedades medicinais também foram debatidas pelo continente. Ao chegar em Veneza, em 1624, os grãos torrados do Iêmen foram primeiramente vendidos em boticas ou apotecas, como eram denominadas as farmácias. Em 1640, o apotecário inglês John Parkinson afirmava que o café aliviava dores de cabeça, seguido, em 1705, pelo médico e químico francês Louis Lémery.
As considerações médicas sobre a bebida ganharam novos ares com a consolidação da química moderna no século XIX. E, a partir da década de 1830, o cultivo do grão no Vale do Paraíba ganha relevância social, política e econômica no Brasil. Assim, os médicos do Rio de Janeiro não ficaram de fora desses debates. Durante o Império, existiam apenas duas faculdades de Medicina no país (Bahia e Rio de Janeiro), e as novidades científicas chegavam a elas vindas principalmente da França.
Os primeiros estudos sobre a bebida na capital do Império surgem como teses médicas, em 185o, refletindo os desenvolvimentos da química e adaptando-os ao contexto brasileiro. Se no início do século XIX o consumo da bebida, reservado à elite, ainda não era um costume, em meados do XIX os médicos cariocas já relatam a transformação dos hábitos alimentares na corte, como o de tomar café após o jantar. A ação estimulante do café não despertou dúvidas entre os estudiosos cariocas, que a consideravam uma bebida “intelectual” e “social”. O que, porém, despertou controvérsias – na esteira das discussões na Europa – foram seu valor como alimento e sua propriedade de curar doenças.
A partir de 1850, também, o Rio de Janeiro foi castigado por sucessivos surtos e pandemias. O grão, no parecer dos estudiosos, parecia ser um remédio poderoso na cura de doenças, especialmente das febres. Antes da ideia de que as doenças poderiam ser causadas por microorganismos – o que só se estabeleceria no fim do XIX, – as febres eram um tema controverso desde a Antiguidade. Agrupadas em um “conjunto amplo e difuso de manifestações patológicas” e compreendidas ora como sintomas, ora como uma enfermidade em si (como bem descreveu o historiador da ciência brasileiro Ricardo Cabral de Freitas), as febres eram uma questão de saúde pública.
Quanto ao seu tratamento, os médicos seguiam os preceitos seculares da teoria humoral. Em seu corpo teórico, essa complexa teoria preconizava o equilíbrio do corpo como meio de preservar a saúde, e a
alimentação era um dos pilares fundamentais para essa manutenção, funcionando mesmo como um medicamento. Por isso, existiam dietas específicas, formuladas ao doente a partir de parâmetros como idade, gênero, atividade e temperamento.
Era necessário, porém, ajustar a teoria humoral ao clima tropical do Brasil, já que as doenças e os alimentos eram bem diferentes dos do Velho Continente, onde a teoria humoral foi praticamente dominante por quase dois milênios. Esses ajustes eram mais desafiantes com a introdução dos conhecimentos químicos, que também instigaram o desenvolvimento de novas teorias sobre nutrição. Trocando em miúdos, as discussões sobre saúde e alimentação eram um tema complexo e controverso, ajustando antigas teorias a quadros científicos modernos.
Nesse cenário de relações centenárias entre dieta, saúde, clima e temperamentos, os médicos cariocas “encaixaram” o café como opção de tratamento das febres tropicais.
As investigações do caráter alimentar da bebida também foram importantes, e ganharam relevância conforme seguiam-se as descobertas da química. Central nas explicações sobre a natureza, a utilização e a produção dos alimentos, a química moderna buscava explicar os fenômenos nutricionais. E o café, entre tantos outros produtos, foi investigado pelos químicos. Em 1819, por exemplo, o alemão Friedlieb
Runge isolaria a cafeína dos grãos.
A ideia moderna de que o café era um alimento estava relacionada, principalmente, à sua quantidade de nitrogênio, visto como um elemento importante na construção dos tecidos, músculos e órgãos do corpo.
Uma das experiências mais famosas e que provocou os médicos brasileiros foi feita com mineiros na Bélgica, em 1850, e apresentada em Paris. Em linhas gerais, a experiência indicava que, embora os mineiros tivessem uma dieta insuficiente em alimentos ricos em nitrogênio, eles mantinham boa saúde pelo consumo regular de café. A bebida, indicava o estudo, suprimiu-lhes a sensação de fome, além
de ter fortalecido neles o sistema nervoso.
Seguindo de perto experiências como essa – devido às parcas condições laboratoriais naquele tempo, foram poucos os experimentos –, alguns médicos cariocas concluíram que a infusão do café era nutritiva.
Outros debatiam acaloradamente uma das teorias em voga, formulada por químicos franceses, que considerava o café um “alimento de poupança”, e, preconizava que, embora a bebida não nutrisse o organismo, era capaz de impedir-lhe a desnutrição. Isso porque, ao estimular o corpo, o café fazia com que ele utilizasse melhor as reservas disponíveis, sem outras ingestões alimentares.
Por mais que houvesse divergências entre os estudiosos brasileiros sobre o papel nutritivo do café, prevalecia o consenso de que ele fazia bem à saúde: estimulava o sistema nervoso, acelerava a circulação e a respiração, “apressava” o movimento nutritivo e “fortificava” o estômago – sendo um excelente digestivo. Assim, a bebida contribuía para a alimentação, ao ativar o espírito, estimular o raciocínio e a imaginação e “reparar as forças enfraquecidas” por uma alimentação insuficiente.
Mas, ainda no final do século, mesmo com os novos conhecimentos químicos, alguns médicos cariocas enfatizavam os ensinamentos da antiga medicina: considerar o clima, além de idade, sexo e profissão do doente para recomendar o que se podia ou não ingerir. Por isso, do ponto de vista tanto médico quanto nutritivo – visões que já se tornavam menos dependentes entre si –, os médicos cariocas recomendaram a bebida para todos os brasileiros, já que, num clima quente como o do país, as pessoas tinham menos energia e as funções do organismo (como a digestão), diminuídas, indicando a necessidade da ação excitante do café.
O café é um bom exemplo na história da alimentação de como visões antigas são, muitas vezes, readequadas, incorporando novos conhecimentos para a formulação de um novo quadro teórico, uma nova forma de pensar os fenômenos da vida – neste caso, a nutrição.
Cristiana Couto é jornalista, historiadora e doutora em história da ciência. É autora, entre outros, de Arte de Cozinha – Alimentação e dietética em Portugal e no Brasil (sécs. XVII-XIX). Coordena o conteúdo da Espresso. Coluna publicada na Espresso #83 (março, abril e maio de 2024).
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