Cafezal

“Há uma distância entre produção científica e sua aplicação industrial”

Referência mundial em pós-colheita de cafés especiais, o pesquisador Flávio Borém aplica tecnologia inovadora não só no campo, mas nos grãos que vende em sua cafeteria, em Lavras (MG)

Com fala mansa e didática nas palestras que profere, o engenheiro agrônomo Flávio Meira Borém, da Universidade Federal de Lavras (UFLA), prende a atenção de um público diverso. Mas o cientista mineiro, doutor em produção vegetal e com quase 30 anos de pesquisas em cafés especiais, também atrai a comunidade científica global com os artigos que publica. Seu trabalho, porém, não fica preso ao papel, já que Borém leva o conhecimento que produziu na universidade para o campo, como consultor especialista em pós-colheita de grãos de qualidade.

Autor de Tecnologia pós-colheita e qualidade de cafés especiais, lançado em 2023, e editor-chefe da Coffee Science, revista técnico-científica de cafeicultura, Borém não para de quebrar paradigmas. Como em 2015, no Re:co Symposium, evento internacional com líderes e especialistas da indústria de especiais. Em sua exposição, o cientista demonstrou que a consistência e a qualidade dos cafés depende da integridade das membranas celulares dos grãos, qualquer que seja o método de processamento, quebrando o paradigma de que cafés naturais são inferiores em qualidade. Entre suas inovações recentes está uma linha de cafés especiais – um, com alto teor de cafeína e outro, com atividade antioxidante (a partir de frutos imaturos) –, que serve na Borém Cafés Especiais, cafeteria e torrefação que abriu há pouco mais de dois anos em Lavras (MG). O próximo projeto é desenvolver um secador para cafés especiais. A seguir, a entrevista remota com Flávio Borém.

Espresso: Em seu livro, você destaca a relevância da composição do solo na qualidade do café. O que descobriu sobre essa relação?

Borém: Não há consenso entre pesquisadores da verdadeira contribuição de fertilidade e nutrição das plantas no sensorial da bebida. O que há de novo é a ampliação da visão do papel dos solos. Recentemente, encontrei trabalhos dos especialistas em solos José Marques Júnior e Diego Siqueira, da Unesp de Jaboticabal, sobre a mineralogia da argila. Argila é uma fração do solo (que tem, ainda, areia e silte) composta por minerais. O que importa não é só a quantidade da argila, mas também a qualidade dela, que cria uma interface entre os sistemas solo e planta, absorvendo fósforo e fazendo trocas catiônicas, por exemplo. Ou seja, tudo passa através dela.

Tradicionalmente, a microbiologia do solo é considerada o ponto mais importante para a qualidade, mas tudo o que existe no solo depende, originalmente, da rocha de origem e dos fenômenos geológicos que a formaram. Com isso, temos a fertilidade e a nutrição do solo.

Fiz um trabalho na Mantiqueira para o pedido da D.O. e esses dados foram disponibilizados para a equipe do Marques – que coletou, novamente, os solos no mesmo ponto geográfico. Cruzamos esses dados e o resultado foi um mapa de qualidade da argila. Descobrimos que a tipologia da argila é o principal componente na distribuição espacial da qualidade do café.

E: O que isso significa, na prática?

B: A partir desse mapeamento tipológico, identificamos em fazendas, ou áreas maiores, terroirs com maior potencial para cafés especiais, além de podermos recomendar variedades – o que não quer dizer, necessariamente, que o café terá mais qualidade, pois essa construção acontece ao longo de todos os processos. Porém, a formação de precursores no café depende da tipologia da argila. Esse conhecimento é uma ferramenta poderosa de precisão nas recomendações agronômicas, permitindo tomadas de decisão melhores. Com ela, ganhamos em manejo, redução de custo de produção e potencialização da qualidade sensorial dos grãos.

Já temos dados reais do uso dessa prática em São Tomé das Letras [Minas Gerais]. Lá, os produtores já conheciam um talhão famoso por produzir especiais. Depois do mapeamento, identificamos outros, dos quais eles nunca imaginaram obter qualidade.

E: Há outra quebra de paradigma sobre a tipologia da argila do solo, não é?

B: É a famosa relação altitude e qualidade. Dependendo da argila, produz-se especiais mesmo em altitudes mais baixas. É aí que a coisa muda: se a argila é favorável, o café bebe bem mesmo em altitudes entre 900 e 1.000 m. A tipologia da argila tornou-se mais relevante do que a latitude, que sempre deve ser considerada. Atualmente, 60% a 70% da resposta sobre porque há áreas melhores e piores para o cultivo está na tipologia da argila.

Até recentemente, a metodologia para conhecer solos vinha dos Estados Unidos e da Europa. Mas os solos de lá são de clima temperado, e a metodologia não era assertiva para climas tropicais como o nosso. O diferencial da equipe do Marques e da empresa parceira Quanticum é ter uma metodologia científica genuinamente brasileira, já patenteada, para aferir a tipologia de solos tropicais. Pode-se com ela, por exemplo, emitir certificados com o tipo de solo em que o café foi produzido, o que é um diferencial de marketing, e usá-la para créditos de carbono.

E: Você diz que análise de risco é uma ferramenta pouco explorada em projetos de pós-colheita. Por quê?

B: Quando produtores e técnicos tomam uma decisão, intuitivamente fazem uma análise de risco. Mas grandes empreendimentos de outros setores já usam uma matriz de análise de risco para tomadas de decisão. Aparentemente assertivas, as decisões na cafeicultura, feitas na base da opinião, têm custo ou risco altos, e não estão sendo claramente avaliadas. Por praticamente 30 anos, as coisas foram assim. Certa vez, ao elaborar respostas sobre que decisões podiam ser tomadas pelos produtores, percebi que estava fazendo uma análise de risco, e coloquei essa lógica no papel. Essa matriz de análise de risco que montei auxilia, simplificadamente, tomadas de decisão mais assertivas.

E: Como funciona essa matriz?

B: Ela é personalizada, pois considera uma fazenda, em tal região, como um sistema. Cada produtor vai responder de uma maneira. A matriz avalia riscos econômicos, riscos biológicos e impactos no aspecto do grão e na qualidade da bebida. Quanto menor for o risco de deterioração do café, do ponto de vista microbiológico e sanitário, e maior for a sua uniformidade, maior a chance de eu recomendar determinada tecnologia. É simples e assertiva.

E: Existem várias nomenclaturas para os processamentos do café, dependendo da região, do país e da literatura consultada. Que saída você encontrou para esclarecer esse conhecimento?

B: As pessoas criam nomes diferentes para os mesmos processamentos. Respeito jargões diferentes, pois isso é cultural. Mas, dependendo para quem se fala, a confusão pode ser enorme. Com base nisso, olhei para a anatomia do fruto. Método de processamento significa como o café chega ao setor de secagem. Há mais de 200 anos, deu-se o nome de via seca ao fruto que ia diretamente da colheita ao terreiro. Se ele chega ao terreiro misturado (verde, maduro, seco), é uma via seca com uma mistura de frutos.

Mesmo que ele passe pelo lavador, que separa o grão pelo estádio de maturação antes da secagem, o método ainda é chamado de via seca. Então, quem entra no mundo do café aprende que via seca é um processo que utiliza água! Daí, tenho que explicar que o processamento ainda carrega esse nome por motivos históricos.

Daí, pensei: e se eu chamar isso de secagem do fruto integral? Independentemente do seu estádio de maturação, um dos processamentos é a secagem da fruta inteira, com todos os seus componentes anatômicos (chamam genericamente esse método de unwashed coffee, dry method, via seca ou café natural). Comercialmente, prevalece a designação café natural. Tecnicamente, seria interessante chamá-lo integral, como arroz integral, porque não se tirou nada do fruto. Tudo começa, então, pelo entendimento da anatomia do fruto. A partir disso, não há discussão: o café integral (maduro, verde, seco ou passa) é levado para secar. Se houve colheita seletiva, ele tem homogeneidade e pode ser um natural de maior qualidade, porque o diferencial está no tipo de colheita.

Na literatura internacional, a maioria refere-se ao natural como café de baixa qualidade. É uma concepção histórica, pela qual o Brasil ficou conhecido – considerando o café natural como a secagem do fruto integral ou a mistura de frutos com diferentes maturações. Mas há naturais tanto de altíssima qualidade quanto de baixíssima qualidade.

E: E como você simplificou essa nomenclatura?

B: O café tem, basicamente, quatro tecidos: a pele, que é epiderme ou exocarpo (e não casca), o mesocarpo, o pergaminho e a semente. Portanto, só há quatro método de processamento, dependendo do que se remove ou se mantém no fruto que vai para a secagem. Se ele chegou ao setor de secagem com semente, pergaminho e um pouco de mel, passou por um método de processamento que removeu o exocarpo e, parcialmente, o mesocarpo, e que leva o nome de honey (CD, semi washed ou semi dry). Esse é o café em pergaminho – ou com mel, mucilagem ou parte do mesocarpo, não importa: tecnicamente, é o mesmo no mundo inteiro.

Pode-se, também, remover todo o mel ou mucilagem, e o café seca só com pergaminho. Como se remove essa mucilagem? Por fermentação ou mecanicamente. Só há esses dois jeitos. Pronto, separamos e descrevemos os processamentos. Na Indonésia, há mais um método: o café chega em pergaminho, há uma meia seca para
retirá-lo e a secagem é finalizada só com a semente. É o quarto processo. Assim, há uma simplificação técnica na comunicação do método de processamento. Ninguém vai discutir o nome daquele tecido – mucilagem, mel ou mesocarpo.

E: Existe, quimicamente, diferença entre polpa e mucilagem?

B: Depende da referência utilizada para descrever a composição química do mesocarpo. O café é uma drupa, parecida com o pêssego e a ameixa, e, por definição, tem por característica um mesocarpo carnoso – a polpa. Há técnicas que removem a polpa (mesocarpo) do café, mas não há como removê-la separadamente da pele (exocarpo) do café, que é muito fina. Então, na prática, o que acontece quando há despolpamento? A remoção do exocarpo, de parte do mesocarpo e dos feixes vasculares. A esse conjunto de tecidos, historicamente, deu-se o nome de polpa, mas, do ponto de vista botânico e anatômico, não é. A rigor, polpa é só mesocarpo.

Quando o fruto é verde, esse mesocarpo é um tecido único. Mas, quando acontece a maturação, há uma ação da pectina do exterior para o interior do fruto que deixa o mesocarpo mais liquefeito na porção externa e mais mucilaginoso, com mais pectina, próximo ao pergaminho. Por isso, muitos acreditam em dois tipos de mesocarpo. Mas o tecido é um só.

Ao analisarmos esta “polpa” (exocarpo, parte do mesocarpo e feixes vasculares), sua composição química é a mesma. Mas, se isolarmos o mesocarpo (que é a “mucilagem”), a composição química é outra. A riqueza da polpa e de suas aplicações abre possibilidades para outros usos além da sua utilização, depois de apodrecida, como adubo. No chá de cáscara, por exemplo, a polpa toda está lá.

E: Você investiga os usos potenciais da polpa?

B: Durante uma de minhas pesquisas, percebi que a polpa tinha uma característica diferente da cáscara. O termo cáscara, ou chá de cáscara, vem da Bolívia. Lá, as mulheres que separam o café vendem as sementes, mas ficam com a polpa, que secam ao sol e bebem. Essa popular infusão da polpa seca ao sol é, tecnicamente, uma infusão desidratada do café cereja. Essa cáscara é preta. Mas com a tecnologia que desenvolvemos e patenteamos, ela fica vermelha. Com ela, faço um chá: quem prova jura que está chupando a cereja do café. Fiz testes e cheguei a uma infusão dessa casca, dessa pele com polpa, que é um chá do café cereja. Já estamos na fase de pré-industrialização para lançá-lo como bebida pronta, um ready to drink.

E: Em 2022, numa parceria público-privada (PPP), você desenvolveu uma técnica para utilizar frutos verdes na produção de cafés especiais. Outra quebra de paradigma?

B: É uma inovação. Desenvolvi na UFLA uma tecnologia para produzir um café especial com maior atividade antioxidante, nutracêutico, com quase 50% de café imaturo. Com essa patente, que está licenciada por uma empresa multinacional [Syngenta], estamos produzindo café com altíssima atividade antioxidante. Além de os frutos imaturos serem benéficos à saúde, como sua ação antioxidante, utilizá-los é aproveitar cafés de uma fazenda, já que nenhuma produz só especiais. Com esse novo manejo pós-colheita, há um upgrade econômico, pois cafés imaturos que iriam para a indústria tradicional passam a ser especiais. Além de adiantarmos a colheita, há perda menor de frutos.

E: Durante muito tempo acreditou-se que secadores mecânicos não produziam qualidade em cafés. Isso já caiu por terra?

B: No meio científico, há muito tempo. A ciência vem trazendo muitas contribuições para o setor, mas há uma distância grande entre a produção do conhecimento científico e sua aplicação industrial. Mas, veja que inovador: recentemente, recebi o convite de uma empresa do Paraná, que faz equipamentos de alto nível, para desenvolver, em parceria, um secador destinado à produção de especiais. Começamos a colocar o projeto no papel.

E: Por que essa concepção mudou?

B: Principalmente pelo desenvolvimento de novos conhecimentos. Na cafeicultura, a inovação nos equipamentos é precária, pois a indústria brasileira investe pouco em secagem de cafés. Os equipamentos são praticamente os mesmos há décadas. Quando muito, há empresas de fora do setor que lançam novidades – como automação em controle do sistema de secagem. Isso ajudou, porque as duas principais causas de perda de qualidade do café na secagem artificial são danos térmicos e os causados por taxa de secagem elevada.

Na secagem em terreiro, leito suspenso ou estufa, o maior risco são as variações climáticas. Umidade relativa muito alta e secagem muito longa podem comprometer a qualidade. Secador pode produzir especiais? A princípio, sim, desde que se compreenda a mecânica, o fluxo de ar e o controle de temperatura (o café deve estar a, no máximo, 40°C), para que a secagem esteja nos parâmetros recomendados. Se a secagem em camas africanas ou estufas for lenta, a chance é bem maior.

Há, assim, sistemas de baixo risco e que precisam de pouco conhecimento e, de outro lado, equipamentos que podem colocar o café em alto risco se não soubermos manejá-los bem. Se o equipamento tem condições técnicas e o produtor sabe usá-lo, pode-se produzir qualidade. Se isso não fosse verdade, países da América Central e a Colômbia, que praticamente não conseguem secar cafés ao sol, não teriam grãos especiais.

Uma boa combinação é fazer uma parte da secagem ao sol, em terreiro, e terminá-la num secador. Nossa vantagem é termos muitas áreas de clima seco e com muito vento. Assim, no início da secagem, a água evapora facilmente com insolação e vento. Depois, economiza-se energia com finalização por secagem artificial, reduzindo o risco de expor o produto a alterações climáticas.

Mas, e se existir um secador que dispense terreiro e produza cafés especiais? Hoje em dia, não há como incentivar grandes áreas de secagem ao sol em terreiro, não é viável. Produtores pequenos, médios ou grandes estão passando por uma crise de sucessão familiar e de disponibilidade de mão de obra. Esse é meu projeto: abrir a mente das pessoas para um secador pensado para especiais, que não vai garantir, mas vai permitir a produção de lotes com qualidade consistente, dispensando terreiro. É o sonho de todo produtor. A previsão é analisar os primeiros protótipos e instalar nas fazendas os primeiros equipamentos para comercializá-los até 2026.

Interior da Borém Cafés Especiais, cafeteria e torrefação da família

E: Em 2021, você abriu uma torrefação e cafeteria em Lavras, a Borém Cafés Especiais. Que cafés você torra e oferece?

B: A Borém é uma forma concreta das pessoas terem acesso a tudo o que aprendi e escrevi. Nossa missão é oferecer saber, sabor e saúde no mesmo lugar. Há dois grandes grupos de café torrado. Um que faz com que externalizemos nossa percepção e outro com o qual buscamos um diálogo conosco. No primeiro grupo estão cafés raros, reservas e microlotes e, no segundo, cafés aconchegantes, adocicados e levemente ácidos. Estes são, respectivamente, nossos cafés das linhas Reserva e Clássica. Temos ainda a linha Saúde, especiais com maior teor antioxidante ou com maior ou menor teor de cafeína, para quem tem questões de saúde com ela. Pessoas que frequentam academia e ciclistas costumam tomar cafeína sintética, que é um perigo para a saúde. Oferecemos, então, um blend de arábica e canéfora com cafeína prontamente disponível. Elas bebem um café de verdade, especial e ganham uma dose considerável de cafeína. Pretendo trazer, em breve, conhecimento acessível sobre torra para desmistificar esse universo, onde há muita informação empírica e sem questionamentos. Minha natureza é questionar: não é à toa que sou pesquisador.

Quer ler mais sobre o assunto? Acesse aqui a continuação da entrevista com Flávio Borém.

Texto originalmente publicado na edição #83 (março, abril e maio de 2024) da Revista Espresso. Para saber como assinar, clique aqui.

TEXTO Cristiana Couto • FOTO Divulgação

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