Cafezal

A ovelha cafeicultora da família

Guiada pela intuição, Cristiane Zancanaro mudou os rumos do negócio familiar e pôs o Cerrado goiano no mapa do café especial

Há oito anos, a advogada Cristiane Zancanaro descobriu que estava grávida – do terceiro filho e do sonho de trabalhar com café especial. O pequeno Felipe foi concebido durante uma viagem ao Chile, quando ela e o marido, Daniel, conheceram as famosas vinícolas do país. Ao ver o cuidado no processamento das uvas viníferas, ela teve um estalo: aquilo também deveria ser feito com os grãos de café colhidos na propriedade da família, a Fazenda Nossa Senhora de Fátima, em Cristalina (GO).

À época, Cristiane comandava o departamento de recursos humanos do negócio dos Zancanaro. “Queria ser advogada e atuei por alguns anos, mas logo percebi que a advocacia é dos homens, que a justiça não é de Deus. Muitas vezes uma pessoa ganhava causas sem prova ou perdia porque o empregador era mais esperto. Isso me desestimulou demais. Por isso vim para a empresa familiar, para deixar as coisas certas. Fomos a primeira empresa rural do Brasil a ter ponto eletrônico”, lembra. Com o embrião do café na cabeça, no entanto, foi difícil pensar em voltar para o escritório.

Durante a licença-maternidade, Cristiane mergulhou de cabeça no café especial: entre visitas à fazenda com os três meninos e cursos no Coffee Lab, em São Paulo (SP), ela estava decidida a mudar de carreira. “A maternidade faz você ficar com os sentidos mais aguçados, mas eu acho que, mesmo se não tivesse ido ao Chile, teria encontrado o caminho do café. A gravidez me trouxe a sensibilidade de encarar um projeto como esse”, afirma.

Cristiane Zancanaro

O começo não foi fácil: da propriedade dos Zancanaro saem não só sacas de café, mas de milho, feijão e soja – e os frutos do cafezal eram tratados como grãos comuns, ou seja, eram armazenados com os outros produtos, sem grandes cuidados, misturando-se as variedades. Na primeira safra, ela lembra, eles tiveram que vender um lote inteiro mais barato porque o café havia sido armazenado, inadvertidamente, ao lado de um trator – ficou com gosto de borracha. “Fui aprendendo na marra. A gente tem essa vantagem por ser novata num negócio: nós gostamos de novas tecnologias, de novidades. Mas também erramos muito!”, comenta. Pouco a pouco, ela conseguiu convencer o conselho familiar a instalar o maquinário de beneficiamento dos grãos, além dos terreiros de secagem.

Cristiane ainda enfrentava outro problema nesse começo: a insegurança, remediada com uma boa dose de intuição. “Eu conversava com agrônomos, consultores, especialistas, mas sabia o que estava fazendo. É algo que ainda trabalho dentro de mim, essa autoconfiança. Às vezes a mulher não se valoriza nesse sentido. Quando vejo que sou a única mulher em uma reunião, penso: como vou falar algo contra todos esses homens? Mas eu sei do que estou falando. Muitas vezes, a explicação não está só na ciência, tem intuição. Eu me realizo muito no café especial porque vejo minha intuição aparecendo”, afirma.

Foi a intuição de Cristiane, afinal, que começou toda essa história: ao voltar do curso de barista no Coffee Lab, ela desconfiou que o café produzido em Cristalina já era especial. “Quando estávamos montando as estruturas de via úmida, pedi a meu gerente que separasse duas sacas para mim de cereja descascado: uma para secar na sombra, outra no sol. Os dois cafés tiveram mais de 85 pontos e a gente vendia como commodity! Perdíamos pelo menos 20% no valor. E isso é comum aqui na região: os produtores têm café bom, mas não sabem”, lamenta.

Café especial, no entanto, não se faz só de intuição: Cristiane contou com muita ajuda – e teve sabedoria para procurá-la. Por alguns anos, recebeu a consultoria do gerente de qualidade Carlos Alberto Vieira. Natural de Patrocínio (MG), ele tem três décadas de experiência com café do Cerrado Mineiro e foi essencial para a criação de processos de pós-colheita, aplicados na produção até hoje. 

“Ele percebia as semelhanças e diferenças do nosso microclima em comparação com o mineiro. Eram 25 anos de experiência com café, uma ajuda valiosa. Às vezes o produtor tem dificuldade em aceitar ajuda de fora, mas, quando você é novo no negócio e tem ciência de que não sabe tudo, tem coragem de chamar alguém como ele”, afirma Cristiane. O bom trabalho feito na Fazendinha, como Cristiane e os irmãos chamam a propriedade, fez com que a cafeicultora se tornasse pioneira na região: ela foi a primeira produtora rural a fazer exportação direta do estado de Goiás, com clientes na Austrália, Grécia e Inglaterra. “O pessoal da Secretaria da Fazenda nunca tinha emitido uma nota dessas, eles tiveram que criar um código, o contêiner ficou dias parado aqui”, lembra.

Reconhecimento

Cristiane entrou para o radar do café especial ao levar o troféu de primeiro lugar regional do Prêmio Ernesto Illy de Qualidade Sustentável do Café para Espresso, em 2015. Acenderam-se, então, os holofotes: ela apareceu em reportagens, foi convidada a participar de palestras e mesas-redondas, viu seu rosto estampado numa edição especial de microlotes da 3corações. De repente, a imagem da marca passou a ser associada a ela. Quem vê essa mulher bonita, vaidosa, de olhos vivos e riso fácil, nem imagina o tamanho da sua timidez.

“Até hoje não processei tudo isso. Fico muito nervosa quando tenho que aparecer, passo a semana reclusa, porque ainda não me considero uma personalidade do café. Eu ainda sei muito pouco. Sou muito exigente comigo mesma, quero ser cada vez melhor, e foi um choque quando começaram a me ouvir, me chamar para dar palestra. Ao mesmo tempo, é gratificante passar adiante o que já sei”, confessa. 

Além da própria timidez, Cristiane precisou lidar com uma forte resistência da família a toda essa atenção. “Eles não gostavam. Não deixavam postar fotos da fazenda no meu Instagram, só do cafezal, nada de foto aérea. Quem planta soja, feijão e milho não precisa de rede social para vender, o nome do produtor não precisa sair no pacote. Mas café é comunicação, é aproximar, dar conforto. Você precisa do boca a boca, da mídia. As coisas já mudaram muito, hoje eles entendem essa importância, mas enfrentei resistência”, lembra.

A caminhada de Cristiane pelo café especial é também uma história de afirmação do próprio espaço no negócio familiar: a cafeicultora sempre fala com muita reverência do pai, seu Gelci, e do irmão mais velho, Milton, engenheiro agrônomo responsável por toda a produção. Desde 2013, porém, o pós-colheita é responsabilidade dela. É ela quem sobe ao palco para receber os prêmios da illy, mas, mesmo assim, não era o nome dela que aparecia no certificado, porque a inscrição estadual da propriedade está no nome do pai. Em 2019, porém, isso mudou. 

Cristiane deu tratos à bola e pediu ao contador da empresa que fizesse uma inscrição no nome dela. Naquele ano, o café Zancanaro ficou em segundo lugar regional, e o nome no diploma era o dela. “Não fiquei em primeiro lugar, mas foi um reconhecimento extraordinário diante da minha família. Para mim foi um marco ocupar meu lugar dentro da empresa. Eu tinha medo de me indispor com meu pai e meu irmão, eles achavam que aquilo era só burocracia. Mas não é isso. É algo feito com carinho e amor, é a prova de que estou fazendo um bom trabalho. Por isso eu digo: não desistam dos seus sonhos”, afirma.

Legado

De olho na possibilidade de conseguir uma Indicação de Procedência e, eventualmente, uma Denominação de Origem para a região, Cristiane quer ver a cafeicultura prosperando em Goiás e no Distrito Federal. “É um sonho meu e de outros produtores, mas ainda precisamos de governança. Alguns acham que esse processo dá mais trabalho que retorno. De fato, o começo é difícil, demora, mas a região só tem a ganhar. Quando recebo algum mestre de torra que não gosta do meu grão verde, mando procurar os cafeicultores Álvaro Orioli, o Carlos Coutinho. Quanto mais o café especial for descoberto na região, mais fortes ficaremos”, planeja.

É também por isso que Cristiane investiu no sonho de torrar o próprio café: da fazenda saem três perfis de torra diferentes, exclusivos da marca. Os outros lotes são reservados para o comércio com torrefações Brasil afora: figuras como Fabiola Jungles e Leo Moço já passaram por ali. “É engraçado, o pessoal de Brasília começou a me procurar pra valer em 2020. Acho que, como o frete ficou complicado com a pandemia, eles se abriram para descobrir o que há na região”, avalia.

A relação com a capital federal, no entanto, já rendeu bons frutos – é ali que ela vive com a família e cultiva boa parte das conexões com o café. Em 2019, ela realizou um sonho: no campeonato Coffee in Good Spirits, a apresentação do barista brasiliense Daniel Viana arrematou o terceiro lugar e colocou o café de Cristiane no pódio de um campeonato oficial da Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA). Mas ela quer mais.

“Nos próximos anos, quero fazer um manejo de pré-colheita ainda mais detalhado, mapear melhor os lotes, produzir mais cafés com mais de 85 pontos. Outro sonho é abrir a fazenda à visitação, colocar vinhos da região para degustar. Também quero abrir o nosso benefício aos produtores vizinhos, é algo que estamos estudando. E, quem sabe, conseguir ser exportadora de café no futuro. Mas isso leva mais de dez anos!”, brinca. Cristiane é uma mulher de sonhos grandes.

A cafeicultura e o agronegócio, ela acredita, são atividades que continuarão na família Zancanaro. Alguns netos mais velhos de seu Gelci já estão trabalhando no negócio familiar, mas ainda é cedo para falar sobre o futuro dos meninos de Cristiane. “Os filhos veem quando você trabalha com amor e carinho. Os meus entendem o cuidado com a terra. A gente guia nesse sentido, traz aqui, ensina os nomes das plantas e das pragas, mostra as estruturas e condições que são dadas aos funcionários da fazenda, mas o caminho é deles”, afirma.

Conciliar a maternidade de três crianças com o cafezal, no entanto, não é tarefa fácil. Sobretudo em tempos de coronavírus: o caçulinha, Felipe, foi alfabetizado em meio à pandemia, estudando de casa – uma vitória para a família. “O sonho do meu mais novo é abrir uma cafeteria comigo, eu acho isso tão fofo!”, emociona-se. Diferentemente dos irmãos mais velhos, o menino já é apaixonado por café especial. Pudera: ele e a cultura nasceram na mesma época e mudaram, cada um à sua maneira, os rumos da vida de Cristiane.

TEXTO Clara Campoli • FOTO Rafaela Felicciano

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