Café & Preparos

O amadurecimento de Negra Li

Às vésperas de completar 25 anos de carreira, a cantora se prepara para apresentar ao público um álbum repleto de letras autorais e reflexivas 

Brasilândia é um bairro na zona norte de São Paulo onde nasceu Liliane de Carvalho, mais conhecida como Negra Li. Apesar da condição financeira limitada de seus pais, a cantora e atriz se lembra de uma infância feliz. “Havia coisas que gostaria de ter ou comer e não podia. Contudo, a maior lembrança que tenho é de correr pra cima e pra baixo e de brincar bastante. De ser uma criança que aproveitava o mundo da periferia”, destaca. 

A música entrou devagarinho na sua vida por meio da mãe, a quem descreve como “superafinada”, e de seu pai, que tocava sax na igreja. Nas rodas dos coleguinhas da escola e na rua, ela já era requisitada para cantar. Mas foi nos cultos que recebeu o primeiro elogio. “Meus pais são evangélicos. Na igreja que frequentávamos, não havia apresentação: todo mundo cantava no seu lugar”, relembra. “Eu costumava ir especialmente aos domingos e ficava cantando os hinos. As pessoas que ficavam ao meu lado é que me ouviam. Certo dia, uma irmã me disse que eu cantava bem. Eu me lembro de me questionar: será mesmo?”. 

Como na casa da família não havia aparelho de som, apenas rádio, a pequena Liliane não tinha muita informação a respeito de música. Costumava somente ouvir um pouco de rap no walkman e discman dos irmãos mais velhos, quando os aparelhos estavam livres. “Meus irmãos escutavam muito Racionais MCs, Planet Hemp e Gabriel o Pensador”, lista. “O fato é que eu tinha tudo a ver com o rap, sem saber. Na escola, era contestadora e adorava as aulas de História. Lembro-me de questionar os professores sobre os motivos da escravidão do negro, sobre o que era negroide, entre outros pontos”.

“O rap me escolheu”

Foi na escola, aos 15 anos, que a carreira de Negra Li começou a acontecer. Um aluno da sala de aula que tinha um grupo de rap ouviu a colega cantando. “Na época eu não sabia inglês e cantava Whitney Houston tipo ‘embromation’”, diverte-se. O colega fez um convite a ela para que entrasse no seu grupo como backing vocal. O começo foi recheado de aventuras e perrengues. “Não raro a gente cantava para três pessoas ou somente para o DJ. Eu andava muito pela madrugada, passando frio. Ficava doente frequentemente. Até que percebi que não havia mais condições de continuar dessa forma e avisei a todos que seria a minha última apresentação”.

Aquele não seria um show qualquer, era para abrir uma apresentação do RZO, o Rapaziada da Zona Oeste. O grupo de rap brasileiro – fundado em 1980, no distrito de Pirituba, e que revelaria outros grandes nomes do segmento, como Sabotage – encantou-se com o talento da jovem. Ela foi convidada a se juntar à trupe. O ano era 1996. “Por isso digo que eu não escolhi o rap: foi o rap que me escolheu”, emociona-se. 

Para ela foi uma oportunidade maravilhosa ingressar na arte e na música por meio do rap e do hip-hop. “Isso a partir de um grupo tão respeitado como o RZO, o segundo mais famoso da época, depois dos Racionais MCs”, orgulha-se. 

“A minha disciplina na música veio deles. Eram muito dedicados, ensaiavam diariamente. Eu observava como conduziam as coisas com seriedade e responsabilidade. Da necessidade de ensaiar para cantar direito. A forma como compunham as rimas. Enfim, foi uma escola para mim”, garante.  

Do rádio para o cinema

Negra Li tem dificuldade de se definir musicalmente. Depois do rap, ela transitou pela MPB e pelo pop nos quatro álbuns que fazem parte da sua discografia: Guerreiro, Guerreira (2005), Negra Livre (2006), Tudo de Novo (2012), e Raízes (2018). “Eu acabo me aproximando mais do pop por conta da diversidade de músicas que eu canto. Mas aqui, no Brasil, é bem difícil uma gôndola para mim”, analisa. 

Em 2005, veio a oportunidade de resgatar uma antiga paixão, a interpretação. “Quando estava na escola, havia pedido à minha mãe para me matricular em um curso de interpretação”, diz. 

O primeiro convite no segmento foi o filme Antônia, de Tata Amaral, que depois viraria série de duas temporadas. Era estrelado pela cantora ao lado de Cindy Mendes, Leilah Moreno e Quelynah. “Foi maravilhoso não apenas pela oportunidade de atuar, mas pela representatividade, assim como minha personagem, Preta, uma mulher negra vinda da periferia e que cantava rap. É quase um documentário, e foi gravado inteiro na Brasilândia, onde nasci”, relembra. 

As semelhanças não paravam por aí. “Assim como a personagem, minha mãe era crente. Anos mais tarde, a vida imitou a arte e eu também me tornei mãe de uma menina. Ainda hoje, ouço que esse projeto foi o divisor de águas para muita gente”, pontua.  

Nos anos seguintes, Negra Li faria musicais e outros filmes, como 400 contra 1 – Uma história do Crime Organizado (2010) e O Segundo Homem (2020), ainda sem data prevista para o lançamento. Esse longa-metragem trata de um Brasil distópico, em que o porte de armas está liberado. “Faço uma detetive que é parceira de Cleo (Cleo Pires)”, adianta. 

Compartilhando aprendizagens

Às vésperas de completar 25 anos de carreira, Negra Li se encontra em estúdio, finalizando o repertório do seu próximo álbum, período marcado pelos camps – diminutivo para songwriting camps, ou acampamentos de composição. Neles compositores de diferentes estilos se unem para parcerias. “Os camps são feitos com todos os cuidados. Todos fazem teste de Covid antes da participação. O resultado tem sido bem bacana”, entrega.

As letras e as músicas refletem uma Negra Li mais madura e tocada pela pandemia. “Foi um período de me conhecer melhor, de refletir sobre o futuro e meus objetivos de vida. O público poderá me conhecer mais profundamente, pois estou falando das minhas perspectivas, visões, ideias e sentimentos, além de temas como amor e sexualidade”, afirma. “É quase como se fosse um documentário, pois também será possível visualizar diferentes momentos da minha trajetória. Infelizmente, é somente isso que posso adiantar sobre o projeto neste momento”, despista. 

Momento que também é seguido de novos sonhos para o futuro, como continuar os estudos de piano, interrompidos pela rotina corrida de shows. “Acredito que sucesso mesmo é fazer o que você ama e não parecer que está trabalhando. Eu vivo do que amo há muitos anos, consegui formar minha família trabalhando com música. Sou muito grata”, diz.

Ela revela que suas perspectivas de futuro mudaram completamente após a maternidade. Negra Li é mãe de Sofia (11 anos) e Noa (3), frutos do casamento com o músico Júnior Dread. 

TEXTO Leonardo Valle • FOTO Gui Gomes

Deixe seu comentário