Mercado

Em meio ao tsunami, como ficará o consumo de café?

Impossível não falarmos do impacto que a pandemia do coronavírus teve e ainda terá no nosso mercado de café especial. Nas próximas páginas conheça o retrato baseado em pesquisas e dados que mostram  por que acreditamos que, agora sim, estamos mergulhando em uma onda forte, incerta e repleta de novos desafios

“Hoje eu acordei com uma vontade danada de tomar café.” Quantos brasileiros levantam todos os dias com essa memória afetiva de uma xícara da nossa bebida predileta depois da água. Entre os lares brasileiros, 98% têm o hábito de tomar diariamente a bebida que resulta desse fruto que chega à mesa de milhões de consumidores depois de passar por processos bem específicos no campo e de industrialização.

A questão é que – como muitos produtos – o café tem variedades, tipos e classificação que o separam em categorias. A forma como ele é colhido, o processamento na lavoura, a secagem no terreiro, depois a seleção e todos os sabores que ele terá a partir da torra alteram o caminho que esse grão vai tomar até chegar à xícara de algum apreciador.

A história de cada cafeicultor nas mais de vinte regiões produtoras do País e, indo além, nos mais de cinquenta países que cultivam café no mundo importa, e muito, pois dá vida a 1,6 bilhão de xícaras diárias consumidas em todo o globo. Muito além da quantidade de produção, porém, que abastece milhões de pessoas no mundo, o café tem separações por qualidade, o que define seu preço ao torrefador e ao consumidor – se quisermos encurtar bem essa cadeia. E é sobre esse nicho de mercado – o café especial – que vamos falar. De acordo com a Euromonitor International. em 2019 o mercado de cafeterias com serviço de cafés e chás especiais movimentou no mundo  64 bilhões de dólares. Com dados promissores de crescimento para os próximos anos, o café, e o mundo, sofreu uma ruptura sem precedentes.

As três ondas do café

O café – como hábito de consumo – vive três ondas pelo mundo. É importante conhecer a história recente. Por volta de 1945, pós-II Guerra Mundial, o crescimento econômico do Ocidente impulsionou a primeira onda do café, que era visto como produto para dar energia, em volume, sem preocupação com qualidade, apenas com o intuito de criar o hábito dentro das casas; desse movimento fazem parte marcas atuais como Keurig Green Mountain (Keurig Dr Pepper), Mondelez, D.E. Master Blenders, Nestlé, entre outras.

O conceito do café especial foi mencionado pela primeira vez em 1974, pela norueguesa Erna Knutsen. A segunda onda, representada pelo nascimento das marcas Starbucks e Peet’s Coffee, começa exatamente nessa década, com foco no espresso e nas bebidas que derivam dele. A necessidade de ter parâmetros e consistência leva ao preparo mais homogêneo de receitas mundiais e ao desenvolvimento de equipamentos próprios para isso. O incentivo é para o consumo fora de casa, com ênfase nas origens e nas torras, com certa visão para a qualidade. Em 1982 nasce a Associação Americana de Cafés Especiais e, em 1998, a entidade semelhante na Europa.

A terceira onda surge somente em 2003, assim batizada pela norte-americana Trish Rothgeb, em artigo da The Flamekeeper, newsletter da Roasters Guild. O intuito da fundadora da Wrecking Ball Coffee Roasters, especialista em torra,  era dar nome a um movimento de cafeterias independentes, entre elas Blue Bottle, Intelligentsia e Stumptown (hoje todas já vendidas para Nestlé e JAB Coffee), que traziam métodos de preparo filtrados e alta qualidade no produto e no serviço ao cliente. A identificação da fazenda, da época da colheita, do tipo de processo do café, da data da torra, da variedade e das notas do produto são mais do que só a origem trazida pela segunda onda.

Muito se debate sobre a chegada de uma quarta onda. Especialistas como a própria criadora do termo da terceira onda, Trish Rothgeb, porém, em entrevista à jornalista Janice Kiss para a Espresso, em 2018, avaliaram que a terceira onda estava no auge, com o amadurecimento da geração que a construiu e com o fortalecimento do mercado de café de qualidade.

O consumo global da bebida especial crescia a 10% ao ano, segundo dados da Organização Internacional do Café (OIC), impulsionado sobretudo pelo estilo de vida dos jovens, que levavam em consideração a qualidade do produto, o benefício para a saúde e o cuidado com o meio ambiente. “Algumas pessoas falam em quarta onda, mas é um tanto precipitado. Não vejo mudanças no comportamento do consumidor que possam fundamentar a origem de um novo movimento”, analisa Trish. Mas, e agora? A bolha do café especial, que já precisava ser estourada e alcançar mais consumidores em todo o mundo, se viu frente a frente com a pandemia da Covid-19.

A xícara estilhaçou

Em dezembro de 2019, o mundo começou a ter as primeiras notícias de que um novo vírus avançava sobre a cidade chinesa de Wuhan. Em poucos meses a Covid-19 chegou a todos os continentes e, em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou a pandemia.

Comércios fecharam em quase todas as partes do mundo e, por consequência, o hábito de tomar café sofreu grandes alterações. Assim como os demais movimentos e ondas de consumo, o café entrará numa nova onda a partir de 2020.

As cafeterias fechadas, os supermercados abertos para compras essenciais e a incerteza de quanto tempo ficaremos em casa fez com que o brasileiro comprasse mais café. Os dados da Associação Brasileira da Indústria de Café (Abic) indicam um crescimento de 35% na compra do produto no mês de março de 2020. Ao mesmo tempo, pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA) com seus membros de torrefações e cafeterias apontou queda média de 76,25% na venda do produto, com redução de até 100% em negócios entre os mais impactados.

“O nicho dos cafés de excelência é formado majoritariamente por pequenas cafeterias especializadas e microtorrefações. O fechamento das cafeterias provocou um estrago devastador nesses negócios e também respingou nas torrefações, que fornecem café a elas. Muitos deram férias, utilizaram-se da redução de jornada e salários concedida pela MP 936, ou mesmo demitiram seus funcionários”, aponta Vanusia Nogueira, diretora executiva da BSCA.

O aumento inicial na demanda, indicado pela pesquisa da Abic, não pode ser analisado como um dado de permanência pelo momento que vivemos em março com a chegada da pandemia. No mundo, a Organização Mundial do Café (OIC), em seu relatório de abril, já previu uma redução no crescimento do consumo mundial: “Após um aumento inicial na demanda, haverá proporcionalmente menos demanda nas próximas semanas e meses, à medida que os consumidores diminuírem os estoques mantidos em casa”, aponta o relatório.

Segundo esse mesmo relatório, “um efeito mais profundo sobre a demanda global de café pode ser esperado como resultado de uma recessão global desencadeada pelos efeitos diretos e indiretos da pandemia da Covid-19. A renda familiar reduzida pode se traduzir em menor demanda por café em termos de volume. Além disso, os consumidores sensíveis ao preço podem substituir o café de maior valor por marcas de menor valor. É provável, no entanto, que a elasticidade da demanda de café seja baixa, especialmente em países de alta renda e mercados tradicionais com altas taxas de consumo per capita”.

Nessa última frase entra o perfil do Brasil. Somos o maior consumidor de café do mundo em número de xícaras: tomamos em média 839 por ano/per capita (2019). Como temos altas taxas de consumo de café tradicional, poderemos ter mudanças de hábito passando a consumir cafés de menor valor ainda, mas não deixaremos de tomar a bebida. Segundo José Sette, diretor executivo da Organização Internacional do Café (OIC), “o consumo fora de casa teve uma queda grande, mas que pode ser compensada pelo consumo dentro do lar”. Pesquisas recentes da Associação de Cafés Especiais (SCA) durante a pandemia também apontam para os impactos na cadeia do café e nos negócios em todo o mundo e mostram que o consumo migrou para casa,  o que ocasionou uma queda de mais de 50% na maioria dos negócios de cafeterias, chegando a até 90% em algumas respostas.

Cafeterias e pesquisa

O fechamento das cafeterias expôs um grande gargalo. Como estávamos em contato com esse consumidor? Quais são os números reais desse mercado de café especial no Brasil? Pesquisas futuras dirão se realmente ele é um caminho sem volta. Será que realmente, depois disso, alguém que passou a tomar bons cafés vai retornar ao nível anterior de sabor? Especialistas do setor dizem que o paladar não retrocede. Queremos adoçar nossos dias com bons produtos e estar em um ambiente de coletividade como uma cafeteria. Parte dos frequentadores ia às cafeterias para trabalhar, dar uma pausa no dia e também para encontrar amigos. Há substituição para esses hábitos? Temos percebido que também não.

Segundo Jeffrey Young, CEO da Allegra Group e fundador dos Coffee Festivals pelo mundo: “O setor de hospitalidade é um dos setores mais afetados da nossa economia. Esses ambientes, no entanto, como nossas cafeterias e restaurantes locais, estão predominantemente ligados à nossa socialização e a muito envolvimento da comunidade local”. Em pesquisa realizada no país, a maioria dos britânicos declarara que, depois da família, o que mais faz falta é ir a uma cafeteria.

Para levantarmos dados do nosso mercado, a Espresso realizou uma pesquisa com cafeterias pelo Brasil que teve um total de 150 respostas sobre a realidade desses estabelecimentos, de março até maio, quando, em muitas cidades, muitas lojas ainda permaneciam fechadas.

Com o intuito de pensar soluções para este momento e buscar alternativas, entrevistamos diferentes perfis de negócio para entender quais serão os desafios. Nos gráficos, é possível analisar as respostas. O que nos chama atenção é que 79% das cafeterias não usavam delivery, por terem o ticket médio baixo, pelas taxas de entrega serem altas, pelo tipo de cardápio e perfil do estabelecimento e ainda porque 84% delas não têm e-commerce. Durante a pandemia, 71% optaram por iniciar o delivery e adaptar os produtos para esse tipo de entrega, e 37% começaram a vendas pelo e-commerce. Dessas cafeterias, 86% pretendem retornar com o atendimento híbrido local, delivery e vendas on-line.

Analisando a pesquisa mundial da Associação de Cafés Especiais (SCA), com 860 respostas, também é possível identificar que a maioria dos negócios declara que vai precisar investir em meios digitais (57%). De acordo com a Euromonitor, apesar de o café ser um item essencial em muitas culturas, como no Brasil, por exemplo, as cafeterias vão precisar entender esse novo cenário de distanciamento social e buscar formas de chegar ao cliente que vai ficar mais em casa, trabalhar de casa e evitar estar presente em ambientes em que se sinta inseguro.

A quarta onda trará novos hábitos

O mercado brasileiro de café especial é muito novo, tem, no máximo, vinte anos de atuação e o primeiro grande crescimento aconteceu há menos de três anos, com a chegada de novas marcas e cafeterias.

A pesquisa realizada pela Espresso revelou que a maioria entende que o retorno do consumidor será lento, gradativo e até doloroso, mas que há uma oportunidade de falar sobre o produto e buscar novas formas de chegar ao cliente.

Segundo Jozenilda Costa, da Floriano Café, de Teresina (PI), “o  isolamento social está me ensinando que devo simplificar o serviço na cafeteria. Tenho essa missão de fazer meu cliente entender que vivemos novos tempos. Teremos que aproveitar este momento para pensar em formas de atrair mais consumidores para o mundo do café especial”.

Outros pontos de destaque são a preocupação com o atendimento seguro, com os funcionários e com a qualidade do trabalho. Georgia Franco de Souza, do Lucca Cafés Especiais, completou dezoito anos de cafeteria no mês de junho e, com 28 funcionários e muita história no café especial, explica que lançou mão de diversos recursos para manter o negócio: recorreu à MP 936, ampliou as vendas on-line em 50%, optou pelo delivery e ainda realizou cursos on-line. Segundo ela: “,vão sobreviver aqueles que respeitam e valorizam parcerias. Esse posicionamento é facilmente percebido pelo cliente.  Credibilidade acima de preço”.

Segundo a pesquisa da Espresso, infelizmente, 30% das cafeterias não conseguiram manter seus funcionários, 67% optaram pela MP 936, enquanto 38% pediram empréstimo a alguma instituição financeira. Muitos também declaram ter pedido auxílio e ainda não tiveram retorno, o que pode até ocasionar mais fechamentos de cafeterias. O texto do empresário Vitor Sapolnik, da Caffè Latte, de São Paulo (SP), viralizou nas mídias sociais com quase 2 milhões de visualizações: “Tivemos que fechar as portas no dia 20 de março. No nosso caso, como no da maioria dos negócios da região central de São Paulo, o delivery e o take-away não funcionam. Colocamos todos os funcionários no programa de suspensão do contrato de trabalho, iniciativa do governo, que garantiu o emprego de milhões de pessoas, pelo menos neste primeiro período da crise. Mas os nossos compromissos financeiros não são somente estes. O capital de giro, quase todo concentrado nos recebíveis de cartões e tickets, se esgotou. Sempre trabalhamos com uma reserva financeira, para imprevistos. Nunca precisamos de crédito bancário nestes quinze anos de atuação. Mas neste momento, não tivemos opção.”

As lições que podemos tirar deste momento, ainda incerto, é que o café como hábito nacional já está consolidado. Não houve queda no consumo, mas sim alteração de rotina o que ocasionou a mudança para dentro de casa. Com o retorno gradual das atividades dos comércios de alimentação fora do lar, o cliente das cafeterias vai  voltar aos poucos, mas vai evitar ficar dentro do ambiente no início, sendo essencial para os negócios buscar novas formas de atendimento rápido e, em alguns caos, na calçada, nos casos das lojas de rua, para não perder o cliente e começar a ganhar fluxo de caixa.

Segundo material oficial do Sebrae, “o consumidor deve conhecer as boas práticas do setor para se sentir confiante para voltar à rotina de consumo”. Sendo o café um produto importante na nossa rotina, Diego Amaro, da Amaro Café, de Americana (SP), afirma: “O  hábito de consumo mudou e acredito que quem se adaptar o mais rápido possível vai conseguir continuar seu negócio”.

Para Fernanda Pizol, da Abigail Coffee Company, de Campinas (SP), “as pessoas vão precisar das cafeterias para se curar do isolamento, encontrar as pessoas, um amigo querido para um café. O café é uma bebida social, e nada mais gostoso que um bom café numa cafeteria que você goste”. Seguiremos, resistiremos e teremos que enfrentar essa nova realidade. Café, logo persisto.

(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso referente aos meses junho, julho e agosto de 2020 – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).

TEXTO Mariana Proença • FOTO Daniel Ozana/Studio Oz

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