Um brasileiro na Bolívia
Minha experiência na Bolívia começou em meados de 2015. Eu não tinha a mínima ideia do que ia encontrar, mesmo depois de diferentes vivências cafeeiras em diversas partes do Brasil e da Argentina. Tive um rico aprendizado em Buenos Aires, que começava a entrar de fato na onda dos cafés especiais. Minha passagem por lá foi muito rica, principalmente na pioneira Coffee Town, que contava com cafés de vinte países.
Quando a Coffee Town resolveu iniciar o projeto de abrir a primeira franquia de grãos especiais, em Santa Cruz de La Sierra, surgiu a oportunidade de uma nova fase: começar uma cafeteria do zero em uma cidade que ainda não estava preparada para tal. Na Bolívia existe o hábito do consumo de café destilado, torrado com açúcar e preparado em um filtro de metal com uma concentração muito alta. O resultado é uma bebida bem escura e densa diluída em água quente. É bem comum ver pessoas de todas as idades tomando essa bebida no fim da noite, sentadas na praça principal da cidade.
Quando apresentamos o menu com opções de diferentes métodos e diferentes origens, como Etiópia, Quênia e Papua Nova Guiné, alcançamos um público curioso que passou a propagar e alavancar as vendas na cafeteria; e isso despertou também o mercado da região.
Nesse período, tive o privilégio de conhecer uma família produtora e exportadora de café, a Agricafe Bolívia, que também conta com uma torrefação, Cafe Buena Vista, a maior do país em café gourmet. Fui convidado a trabalhar com eles no controle de qualidade.
Em 2016, eu me mudei para Caranavi, cidade ao norte de La Paz que tem o título de capital cafetalera de Bolivia. Na Bolívia, 95% do café produzido é do Estado de La Paz, de uma zona denominada Yungas, e 5% de Santa Cruz, onde a Agricafe também conta com algumas fazendas na cidade de Samaipata. Nova cidade, novo trabalho, novos desafios. Acostumado a ver fazendas gigantescas no Brasil, estruturas enormes, nos primeiros dias em Caranavi me mostraram uma realidade que eu sabia que existia em alguma parte do mundo, mas nunca tinha imaginado presenciar.
Nos últimos dez anos, a Bolívia reduziu em aproximadamente 70% sua produção de café, basicamente pela falta de conhecimento no cultivo. Costuma-se dizer que não existe cafeicultura na Bolívia e sim extrativismo. As plantações tradicionais, conhecidas como “café ecológico”, estão completamente destruídas e podemos ver cafeeiros com mais de 4 metros de altura sem folhas nem grãos. Eles têm apenas o esqueleto. Para contornar a situação, a Agricafe criou um programa chamado Sol de Mañana, um modelo de cultivo mais técnico e sustentável em que os produtores recebem workshops e toda a assistência necessária para aumentar a qualidade e a produtividade, passando assim a poder viver do café. Em 2017, o programa teve um grande êxito e produtores alcançaram uma média de 86 pontos. Alguns superaram os 90.
Como chefe de controle de qualidade, meu trabalho era supervisionar processos, secagem e provar todos os lotes que passavam pela planta, fossem eles de produção própria ou comprados, tanto em cereja, pergaminho seco ou pergaminho úmido. Cada dia era uma surpresa. Havia cafés com perfis africanos, de extrema complexidade, porém em quantidade muito pequena, 30 kg ou até 10 kg de cada lote.
Para driblar a escassez de café, a solução é qualidade: rastreabilidade, controle de secagem, temperatura, tempo de fermentação, controle de colheita e variedade. Hoje contamos com produção de variedades exóticas, como geisha, java, SL28, SL34, e outras que seguem em experimentos. Na última safra, tivemos excelentes resultados com algumas dessas variedades, chegando aos 95 pontos.
A Bolívia é tida como originariamente exótica, cujos cafés têm valores mais altos. Atualmente exportamos para algumas das principais torrefações do mundo. Na última colheita, tivemos a visita de Miki Suzuki, barista da Maruyama Coffee (Japão), que veio fazer provas e escolher o café que usaria no WBC 2017 – Campeonato Mundial de Barista.
O trabalho teve a ajuda de Hidenori Izaki, japonês, campeão mundial de 2014, que também veio nos visitar e é assessor de Miki. Ela escolheu um geisha da Fazenda Las Alasitas e alcançou o segundo lugar no WBC, colocando o café da Bolívia entre os melhores do mundo na competição.
Quando a colheita acaba, meu desafio continua em La Paz: torrar e provar café, acima dos 3.500 metros de altitude, em um clima seco com quase 0% de umidade e temperatura média de 10 graus, totalmente o oposto de Caranavi, com seu clima amazônico.
Além da supervisão da colheita e do trabalho com as exportações, faço controle e visitas aos clientes de café torrado. Acredito que o mercado de cafés especiais surgiu na Bolívia uns cinco anos antes que no Brasil. Quando o assunto é espresso, por exemplo, ainda escuto que a compactação desnivelada resultará em uma xícara mais cheia que a outra. Em contrapartida, aprendo a cada dia sobre preparar café em alta altitude e nesse meio-tempo espero ansioso por ver a evolução dos cafés na nova safra, além de qualidade e produtividade. A Bolívia tem biodiversidade e condições perfeitas para a produção de cafés melhores a cada ano. O desafio, portanto, é que mais pessoas tenham acesso ao café boliviano!
*Andreson Ramos é barista. Nascido na Bahia, é barista há oito anos, e ficou em terceiro lugar no 13º Campeonato Brasileiro de Barista. Atualmente é provador e chefe de controle de qualidade na Agricafe Bolivia.
(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso referente aos meses março, abril e maio de 2018 – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).
Deixe seu comentário