Lugar de mulher é onde ela quiser
A liderança feminina na cadeia produtiva do café ganha visibilidade com a atuação das mulheres em diferentes frentes, quebrando barreiras e abrindo mercados
A agricultura começou feminina, quando as mulheres passaram a semear o que antes era coletado na natureza. Elas continuam no campo, mas essa atividade que mudou a vida da humanidade e se tornou um expoente econômico – caso do agronegócio no Brasil – passou a ser um setor representado por homens. A cafeicultura segue o modelo. “Há 28 anos, quando comecei a buscar grãos nas fazendas brasileiras, o papel da mulher era servir café”, afirmou Anna Illy, diretora da empresa italiana illycaffè, durante a Semana Internacional do Café (SIC), em Belo Horizonte (MG), no ano passado.
Mas Ana também é testemunha de uma mudança que buscou visibilidade e liderança ao longo do tempo. “Hoje muitas produtoras estão à frente dos seus negócios”, comentou. Esse empoderamento a que ela se refere ganhou representatividade há sete anos com a criação da Aliança Internacional das Mulheres do Café (IWCA-Brasil), rede formada por mulheres envolvidas em toda a agroindústria do café. “É um trabalho lento e longo, mas fundamental para as mulheres saírem da invisibilidade”, afirma a presidente Josiane Cotrim. A entidade lançou em parceria com a Embrapa o livro Mulheres do Café, que retrata o trabalho de cafeicultoras nos principais estados cafeeiros do País.
A ideia de que o homem representa a cadeia produtiva, porém, não é uma particularidade brasileira. O mestrado da antropóloga norte-americana Sabine Parrish sobre a divisão de gênero nas cafeterias especiais dos Estados Unidos mostrou que as gorjetas eram menores quando as mulheres estavam no comando das máquinas de espresso. “Há uma falsa ideia por parte dos consumidores de que os homens são melhores em tecnologia”, diz. Sobre a baixa participação feminina em campeonatos, ela deparou com o clássico estereótipo de que “o homem é mais competitivo”. “Conclusões equivocadas que demoram uma eternidade para ser desfeitas”, diz Sabine.
Na avaliação de Regina Madalozzo, professora do Insper, em São Paulo, essa distorção de competências também acontece nas empresas. A diferença, segundo ela, é que essa discussão no mundo executivo é mais antiga. Regina é cocoordenadora do Panorama Mulher 2018, pesquisa do Insper em parceria com a consultoria Talenses que analisou os dados de 920 companhias com sede no Brasil, na América do Norte e na Europa. Os resultados mostram baixa presença feminina em cargos de liderança, como vice-presidência, diretorias e conselhos. Na avaliação de Regina, o incentivo à igualdade de gênero deve ser tratado como política institucional. “Tanto faz se a empresa é grande ou pequena, se é de café ou de outro ramo”, diz.
Em comemoração do Dia Internacional da Mulher, compartilhamos as histórias de cinco profissionais que quebraram barreiras e refletem o trabalho de milhares de mulheres do café.
Resiliência para seguir em frente
Foram necessários vinte anos para que Sara Maria Chalfoun, pesquisadora da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig), pudesse ver entrar no mercado o resultado da pesquisa que havia coordenado. Ela e sua equipe trabalharam no isolamento do fungo Cladosporium cladosporioides – apelidado de “fungo do bem” – para que ele pudesse ser utilizado no controle biológico de microrganismos prejudiciais ao café. Sara explica que o fungo estava presente na natureza, destacava-se por estar associado às bebidas de qualidade, mas os tratamentos fitossanitários aplicados às plantações sumiram com ele. “A pesquisa foi voltada para a sua reintrodução no ambiente”, informa. Uma empresa do setor vai lançar o produto com essa finalidade ainda neste ano.
Sara comanda uma biofábrica dentro Universidade Federal de Lavras (UFLA) que deu origem também a uma plataforma de pesquisas. Numa comparação com o passado, ela acredita que as oportunidades para as mulheres na área de pesquisa melhoraram muito. De acordo com o relatório Gender in the Global Research Landscape, hoje as mulheres produzem metade da ciência no Brasil. Parte dessa constatação é fruto da própria vivência. Sara entrou para a faculdade de Engenharia Agronômica, curso raro para moças na época, em 1968. “Imagine um ambiente adverso e hostil. Eu o enfrentei”, afirma.
Carreira de executiva também se faz no campo
Parece que Mariana Caetano foi guardando tudo o que observava no pai, Reinaldo Caetano, um pequeno cafeicultor de Araguari (MG). Ele fundou uma das primeiras cooperativas de crédito da região e trabalhou para a denominação de origem do Café do Cerrado. Certo dia, ele levou Sara para conhecer a BM&FBovespa, atual B3 (Brasil, Bolsa, Balcão). Na época, a filha fazia faculdade em São Paulo. “Quando vi todas aquelas operações, decidi: é com isso que vou trabalhar”, lembra. Começou a estudar Relações Exteriores enquanto cursava Letras e estava certa de que seguiria carreira em multinacional. Mas o café bateu à sua porta.
Mariana Caetano se tornou diretora agrícola da Guima Café, união das fazendas São Lourenço, Brasis e Santa Rita, no Cerrado Mineiro, pertencente ao Grupo BMG. Há doze anos, quando chegou, havia muito a ser feito. Foi preciso implantar uma série de certificações internacionais, processo de gestão e compliance, entre outras medidas. Com o tempo, Mariana passou a cuidar de tudo, da linha de insumos e tratores à estratégia comercial. Se alguém duvidou da capacidade dela por ser mulher, ela diz não ter percebido. “Se aconteceu, consegui desarmar com conhecimento e experiência”, diz.
Empreender é não se dar por vencida
Paula Dulgheroff só queria cumprir o estágio necessário para o curso de Tecnologia em Alimentos. Assim, bateu à porta da empresa de máquinas de café do ex-cunhado, em Uberlândia (MG). Era preciso que alguém extraísse espressos para mostrar ao cliente como o equipamento funcionava. Aí, tudo mudou. Paulinha, como é conhecida, encantou-se pelo universo dos cafés, investiu em cursos de barismo e análise sensorial, estudou por conta própria, fez pesquisa de campo e trabalhou em cafeterias fora do País. Paula vem desbravando esse mercado há doze anos. No começo, pouco se falava ou se sabia sobre bebida de qualidade. A essa altura ela já tinha a certeza de que do café não largava mais. Ao lado do marido comprou a empresa onde trabalhou e a batizou de Mundo do Café. Além das máquinas, ela instalou uma torrefação e uma pequena cafeteria como vitrine para o negócio.
A empresa atende clientes que estão à procura de máquinas, grãos e cursos em Goiânia, Brasília e Belém, no Pará. Paulinha diz ter valido muito a pena insistir no café especial, mesmo quando a bebida não era muito bem-aceita. “Não foi fácil, mas não lamento as dificuldades que tive”, diz.
Revolução se faz em qualquer idade
Aos 72 anos, dona Ceci Faria rompeu preconceitos. Quando a região das Matas de Minas tinha fama de produzir cafés ruins, ela venceu o Cup of Excellence, em 2000, competição desenvolvida por Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA), Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil) e Alliance for Coffee Excellence (ACE). Ela levou a premiação com um microlote de catuaí de 94.6 pontos e inspirou os cafeicultores do seu distrito, Dom Corrêa, no município de Manhuaçu (MG), a seguir seus passos. “Café gosta de cuidado desde a apanha até chegar à xícara”, diz. Mas experiência no ramo também conta. Dona Ceci aprendeu o trabalho com os pais, teve lavoura com o marido e passou o gosto da cafeicultura para alguns dos onze filhos. Foi com os grãos das terras do filho Vicente que levou a premiação.
Era dona Ceci, porém, quem cuidava de tudo enquanto ele trabalhava como engenheiro de qualidade em outra cidade. O prêmio fez com que Vicente e as irmãs Júlia e Célia enxergassem um potencial de negócio na propriedade, que comercializa grãos para Japão, Coreia, China e para a illycafé, tradicional compradora. Até pouco tempo, tudo ficava sob a supervisão de dona Ceci, que se afastou da rotina pesada por conta dos 91 anos. O que ela mais gosta, além de cuidar de café? “De ganhar concurso”, diz o filho.
Faça planos sem abrir mão da intuição
Daqui a dois meses, Daniela Capuano vai receber uma das mais importantes premiações da França (“Melhor artesão da França”, na tradução para o português), como torradora. Criado no início do século passado, o concurso foi uma forma de “proteger” 230 profissões consideradas artesanais, entre elas açougueiro, confeiteiro, marceneiro, etc. Para a mineira, o prêmio é uma marca importante na sua carreira de doze anos, sete dos quais vividos em Paris e Estrasburgo, onde trabalha atualmente. Ele comprova que valeu a pena seguir sua intuição.
Daniela começou a trabalhar como barista em Belo Horizonte, enquanto estudava Design Gráfico. A faculdade acabou, as propostas de trabalho pouco lhe interessavam e ela preferiu seguir com o café especial. Participou de concursos, prestou consultorias e mudou de país depois de receber um convite de trabalho. “Na época havia poucos lugares que serviam café de qualidade em Paris.”
Participar da construção desse caminho lhe permitiu muitas experiências, trabalhos em cafeterias, e fez dela uma torradora, que hoje está à frente de uma antiga empresa que inaugurou uma nova fase com a implantação da torrefação. Sonhos para o futuro? “Ver mais mulheres do setor em melhores posições, com tomadas de decisão.”
(Texto originalmente publicado na edição impressa da Revista Espresso referente aos meses março, abril e maio de 2019 – única publicação brasileira especializada em café. Receba em casa. Para saber como assinar, clique aqui).
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